Resenha: A expressão das formas indiretas de racismo na infância

Judson Rocha Jr.

Vários estudos realizados com adultos têm mostrado que as expressões de racismo estão cada vez mais sutis, indiretas e menos negativas abertamente (Racismo ambivalente, Racismo simbólico, preconceito sutil, Racismo aversivo). Contudo, há uma carência de estudos que analisem as formas mais sutis e indiretas de racismo na infância. A tradicional explicação dada pelos psicólogos desenvolvimentistas cognitivos é que as crianças tornam-se menos preconceituosas após os sete anos de idade, graças a aquisição de novas estruturas cognitivas por parte da criança e pelo amadurecimento das já existentes (vale salientar que tais estudos analisam mais a expressão do preconceito – atitude – do que a discriminação e o racismo – comportamento) . Mas então isso não explicaria presença de atitudes preconceituosas nos adultos.
A pesquisa tem como objetivo demonstrar que, a partir de certa idade, as crianças não reduzem o a expressão do preconceito, mas esta apenas muda em certos contextos a expressão desse preconceito, tornando-se mais indiretas.
Uma explicação alternativa é a de que as crianças não deixariam de exprimir preconceito, mas, graças à interiorização das normas sociais dos adultos em relação à não discriminação aberta dos Negros ou de outras minorias estigmatizadas, se tornariam mais sutis ou veladas na expressão de seu racismo.
Realizaram-se então três estudos com o objetivo de verificar o efeito da idade na expressão das formas indiretas de racismo em crianças brancas. Os resultados então confirmaram a hipótese das autoras: o responsável direto pela mudança no modo de expressão do racismo – e não a sua eliminação – parece ser o processo de interiorização de normas sociais e a capacidade de geri-las em função dos contextos, processos e capacidades já presentes nas crianças mais velhas – a partir dos oito anos – como demonstrado em um dos estudos.

Referência: França, D. e Monteiro, B. A expressão das formas indirectas de racismo na infância. Análise Psicológica, 22, 4, 705-720, 2004

Resenha: Os estereótipos e o viés lingüístico intergrupal

Diogo Araújo

Muitos estudos revelam que o tipo de linguagem utilizada para descrever o comportamento de membros do ingroup e do outgroup contribui para a transmissão e persistência dos estereótipos. Pereira e cols. (2003) conduziram um estudo experimental que buscou verificar os efeitos do viés lingüístico intergrupal nas avaliações realizadas por participantes de etnias branca e negra, na cidade de Salvador, Bahia.

Viés Lingüístico Intergrupal
A hipótese do viés lingüístico intergrupal é de que uma mesma ação pode ser codificada em diferentes níveis de abstração, variando de acordo da pertença do protagonista da ação ao in ou ao outgroup de quem julga, e da dimensão axiológica da ação, sendo ela considerada desejável ou indesejável. Semin e Fiedler (1988 ) desenvolveram um modelo de categorias lingüísticas que distinguem quatro níveis de abstração:
1) os verbos descritivos;
2) os verbos interpretativos;
3) os verbos referentes a estados duradouros;
4) os adjetivos.

Os verbos descritivos referem-se objetivamente ao comportamento observado, delimitando claramente o inicio e o fim da ação, não dando espaço para avaliações de positividade ou negatividade (ex: correr, fechar, pegar). Os verbos interpretativos já trazem um componente semântico positivo ou negativo na avaliação do comportamento, mas também delimitam temporalmente a ação (ex: ofender, matar, aplaudir). Os verbos de estado duradouro atribuem estados internos bastante permanentes, sendo muito difícil visualizar um início e um fim deste estado (ex: desejar, amar, odiar). Os adjetivos se caracterizam pela forte atribuição disposicional dos comportamentos, e que estas tendências são de grande estabilidade, pouco sensíveis às contingências externas.
O viés lingüístico intergrupal possui atualmente duas explicações: uma baseada em aspectos motivacionais e outra em aspectos cognitivos. Na perspectiva motivacional, o viés contribui para a proteção do ingroup, avaliando de forma abstrata os comportamentos positivos do ingroup e de forma concreta os comportamentos negativos, elevando a auto-estima em relação ao outgroup. Na perspectiva cognitiva, o que influencia nas respostas são as expectativas do individuo sobre a ação executada, avaliando abstratamente o que é esperado e concretamente a ação que contraria as expectativas.
O estudo realizado por Pereira e cols. (2003) baseou-se na perspectiva motivacional do viés lingüístico intergrupal, realizando quatro experimentos.

Experimento 1
Participaram deste experimento 87 pessoas, escolhidas por critério de conveniência em locais de grande circulação. Foram aproveitados 83 questionários. A avaliação da etnia dos participantes foi realizada pelas quatro entrevistadoras. 59,0% dos participantes foram do sexo masculino, 39,8% do sexo feminino e não foi possível identificar o sexo de um dos participantes. 21,7% dos participantes possuíam o primeiro grau, 47,0% o segundo grau e 33,8% o terceiro grau.
As entrevistadoras apresentaram um caderno com o desenho de seis cenas, representando uma criança realizando ações socialmente positivas (devolver a carteira perdida de um transeunte; participar de uma roda de capoeira; ajudar uma senhora idosa a atravessar a rua) e negativas (dirigir-se a um grupo sentado em uma mesa de bar; ficar à espreita em uma praia, esperando uma oportunidade para cometer um furto; atingir com um tapa uma outra criança de menor estatura e idade), para serem avaliados de acordo com as quatro categorias lingüísticas integrupais propostas por Semin e Fiedler (1988 ) selecionando uma entre quatro frases relacionadas com a cena observada. Dois conjuntos de desenhos foram utilizados, um com a criança de etnia branca e outro com a criança de etnia negra. Foram formados, então, quatro grupos experimentais:
1) participantes de etnia branca, avaliando personagens de etnia branca, em cenas socialmente positivas e negativas;
2) participantes de etnia branca, avaliando personagens de etnia negra, em cenas socialmente positivas e negativas;
3) participantes de etnia negra, avaliando personagens de etnia branca, em cenas socialmente positivas e negativas;
4) participantes de etnia negra, avaliando personagens de etnia negra, em cenas socialmente positivas e negativas.
Neste experimento, os resultados não condizeram com o que se encontra na literatura, pois não foi alcançada uma significância estatística suficiente para se afirmar o efeito da etnia na avaliação das cenas negativas ou positivas. Porém, se observarmos apenas as médias, vemos que os brancos avaliaram positivamente sua etnia de forma mais abstrata (dentro do que se espera na literatura), enquanto os negros não fizeram distinção de etnia nas cenas positivas. Nas cenas negativas, os brancos que não apresentaram diferença de avaliação entre as etnias, e os negros, contrariando totalmente o esperado, avaliaram as cenas negativas com a criança negra de forma mais abstrata do que as cenas com a criança branca.

Experimento 2
A amostra consistiu em 88 participantes. 47,4% homens e 52,3% mulheres. Média de idade de 29,6 anos. 11,4% com o primeiro grau, 46,5% com o segundo grau, e 42,1% com o terceiro grau. Os critérios de seleção e categorização da amostra foram os mesmos utilizados no experimento 1.
O procedimento utilizado foi semelhante ao do experimento 1, diferindo em que a avaliação foi feita por frases formuladas pelos próprios participantes. As frases foram codificadas por três juízes de acordo com os graus de abstração do modelo de categorização lingüística de Semin e Fiedler, e avaliadas quanto ao grau de positividade e negatividade das frases, considerando-se também frases neutras.
Como no primeiro experimento, não se estabeleceu significância estatística que corroborasem completamente as hipóteses, mas grosso modo, analisando apenas as médias, tanto brancos e negros fizeram avaliações positivas condizentes com a literatura: mais abstratas para o ingroup e menos para o outgroup. Porém, nas avaliações negativas, houve uma total inversão em relação ao esperado, pois tanto brancos como negros avaliaram o ingroup de forma mais abstrata e o outgroup de forma menos abstrata.

Experimento 3
Este experimento difere dos anteriores quanto a amostra, pois os participantes são crianças de uma escola particular. Também houve mudanças no procedimento, sendo utilizado um instrumento computadorizado para a exibição das cenas e coleta de dados. Participaram do experimento 40 crianças. 52,5% participantes do sexo masculino, 47,5% do sexo feminino. A média de idade foi de 9,9 anos.
Novamente não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre as médias das avaliações. Deixando de lado este critério, as médias mostraram uma avaliação positiva mais abstrata do ingroup por parte dos brancos, acontecendo o contrário na avaliação feita pelos participantes de etnia negra. Na avaliação das cenas negativas, a avaliação dos brancos que contrariou a hipótese, sendo mais abstrata para o ingroup, enquanto os negros avaliaram o outgroup de forma mais abstrata.

Experimento 4
Neste experimento, participaram 21 crianças com média de idade de 10,8 anos, sendo selecionados e categorizados da mesma forma que no experimento 3. Os equipamentos e procedimentos utilizados foram semelhantes ao do experimento 3, diferindo na forma de coleta da avaliação das cenas, sendo através de um relato livre.
Observou-se neste experimento uma diferença significativa na avaliação das cenas positivas, havendo interação entre a etnia do participante e do personagem. Nas cenas negativas, a influencia da etnia foi apenas marginal. A análise das médias revela que a avaliação feita por brancos e negros a esperada pela hipótese do viés lingüístico intergrupal. Na avaliação negativa, só os participantes de etnia negra avaliaram de forma congruente à hipótese.

Conclusão
Apesar deste estudo não ter encontrado resultados compatíveis com a hipótese do viés lingüístico intergrupal, ele permite algumas reflexões, principalmente quanto as peculiaridades da população brasileira e baiana. Além de possíveis problemas metodológicos na condução do estudo, deve-se também esclarecer se a população investigada difere de forma saliente quanto aos valores considerados importantes e identidade social e étnica em relação a populações de outros países onde foram realizadas outras pesquisas. Estudos sobre a linguagem e as relações intergrupais são de grande relevância, porém devem contemplar a grande complexidade do fenômeno, acentuando-se ainda mais a importância do acumulo de conhecimento pela comunidade cientifica.

Referência: Pereira, M. E. ; Fagundes, A. ; Silva, J. e Takei, R. Os estereótipos] e o viés lingüístico intergrupal. Interação (Curitiba), 7, 1, 127-140, 2003.

Resenha: A imagem da enfermagem frente aos estereótipos: uma revisão bibliográfica

Leandro Rocha

O texto aborda a problemática dos entraves criados na relação enfermeira-paciente em função dos estereótipos negativos que os cliente podem vir a assumir em relação à enfermagem. A pesquisa bibliográfica realizada pelo autor remete ás origens históricas de preconceitos referentes à categoria profissional. Principalmente pelo fato de a profissão ter sido exercida durante uma grande parte da história por mulheres e, ainda, por tratar-se de um trabalho manual, foi sendo considerada como ofício de menor valor pela sociedade.
Nota-se que a atribuição da profissão a mulher antecede uma abordagem estritamente científica a respeito do tema. A concepção predominante, principalmente durante a idade média (1979 apud Paixão) era a de que a própria natureza estabelecia a separação entre a enfermagem como uma atividade feminina e a medicina como masculina. A atribuição dos créditos pela cura à figura do médico relegava as enfermeiras uma posição menor, pois seus cuidados com o paciente não conduziriam à cura do mesmo. No período medieval, em função da reforma protestante, países que adotaram o protestantismo como religião dispensaram as freiras católicas que exerciam às funções de cuidados características das enfermeiras. A ausência de pessoas para desempenhar essa função coube então a mulheres mal remuneradas, mal preparadas e de moral duvidosa, que não tinham outra opção como meio de vida, que não fosse a de tomar o lugar das freiras. A população começou a evitar os hospitais por causa disso, preferindo, muitas vezes, ficar doente em casa.
Com o passar do tempo a enfermagem foi ganhando uma nova perspectiva à medida que o trabalho das enfermeiras foi sendo remunerado. A aderência simbólica da imagem de quem antes cuidava diretamente dos doentes sem receber nada em troca à imagem do dinheiro não foi bem recebida pela população. A soma desses fatores levou a enfermagem a ser vista como uma atividade essencialmente feminina – há referência no texto de que até a década de 1970 as enfermeiras eram selecionadas diretamente nas escolas e a convocação priorizava pessoas do sexo feminino ( 1997 apud BATISTA; BARREIRA).
A pesquisa bibliográfica revela, ainda, que a atividade da enfermeira, apesar de essencial, estaria sempre subordinada à do médico. Consequentemente, quanto maior a disponibilidade da enfermeira para seguir ordens, melhores profissionais estas seriam. Por esta mesma interpretação chega-se à dedução de que quanto menor a autoridade das enfermeiras, mais sobressalente se tornaria o ato médico. A veiculação de uma imagem estereotipada da categoria na mídia, apelando para o erotismo alocou por muito tempo as profissionais da área na categoria de símbolos sexuais, mas de forma depreciativa, induzindo a uma desconsideração da atividade realizada.

Conclusão
Estudo e identificação dos estereótipos negativos presentes no imaginário popular a respeito das enfermeiras parecem ser as principais ferramentas para alterar esse quadro e combater o preconceito vigente delineando estratégias para a valorização e afirmação do trabalho da categoria. Simultaneamente, o adequado tratamento da imagem desta levará à uma maior credibilidade junto à sociedade e ao merecido prestígio.

Referência: Santos, C. e Luchesi, L. A imagem das enfermeiras frente aos estereótipos: uma revisão bibliográfica.Proceedings of the Brazilian Nursing Communication Symposium, 2002, São Paulo, Brasil

Resenha: Estereótipos sexuais aplicados às nadadoras

Fernanda Brito

Quais fatores interferem no grau de masculinidade ou feminilidade atribuído às pessoas? A opção por uma prática esportiva certamente é um importante fator, principalmente por modificar o corpo, facilitando muitas vezes a identificação e a classificação dos atletas e dos não-atletas. O artigo apresenta um estudo feito para explorar a aplicação de estereótipos sexuais às nadadoras, avaliando se há um impacto na percepção de dois grupos de pessoas que diferem quanto ao envolvimento com o desporto. Adota-se o pressuposto de que pessoas não envolvidas com a natação tendem a aplicar estereótipos sexuais em função do biotipo das atletas.
Atualmente a questão acima não é mais vista de forma unidimensional, como pólos opostos de um mesmo plano. Os construtos de masculinidade e de feminilidade são vistos como bidimensionais, ou seja, numa escala psicométrica um indivíduo pode obter dois escores independentes. Estes dois escores independentes dão origem a quatro grupos tipológicos: Masculino, Feminino, Andrógino e Indiferenciado.
Desta nova concepção surge o conceito de androginia psicológica que se traduz pelo desenvolvimento simultâneo e equilibrado de características masculinas e femininas por uma mesma pessoa. Este conceito corrobora para uma melhor compreensão dos padrões de comportamento, uma vez que indica uma maior flexibilidade comportamental: melhor ajustamento às diferentes situações sociais que exigem de uma mesma pessoa tanto características masculinas quanto femininas. Por exemplo, estudos demonstram que em relação ao engajamento em atividades apropriadas e inapropriadas ao sexo, os grupos andrógino e indiferenciado não apresentam diferenças significativas em comparação aos grupos masculino e feminino que tendem a se engajar em atividades apropriadas ao seu sexo e evitar as inapropriadas.
Neste sentido, a escolha de mulheres pela prática de desportos com predomínio de características masculinas como agressividade, competitividade e de homens por desportos que requerem suavidade e leveza favorecem a aplicação de estereótipos sexuais. Isto ocorre porque as características do desporto associado ao sexo do praticante contrariam a desejabilidade social que está pautada nas construções sociais do que é masculino e feminino.
O instrumento utilizado no artigo foi o Inventário de Papéis Sexuais de Bem (BSRI) compostos por três escalas: feminina, masculina e neutra. A escala neutra é composta por itens desejáveis e indesejáveis para ambos os sexos. As variáveis do estudo foram o grau de envolvimento com o desporto e o sexo dos participantes. De modo geral, não houve diferenças quanto ao sexo na aplicação de estereótipos sexuais, a não ser pela tendência das mulheres em considerar as nadadoras com maior quantidade de características neutras, podendo indicar que na percepção das mulheres as nadadoras não são tão femininas, o que foi constatado também no grupo que não possuía envolvimento com o desporto.

Essa percepção distorcida pode ser explicada pelo desconhecimento do esporte e pelo biotipo das nadadoras que contrariam os padrões estéticos designados à feminilidade. Além disso, a preocupação com a aparência física e a atratividade sexual potencializa nas mulheres a aplicação de estereótipos sexuais para toda e qualquer mulher que se afaste desses padrões culturalmente femininos. Fica como sugestão para próximos estudos, uma melhor investigação sobre o grau de impacto desses estereótipos sexuais na decisão de uma adolescente por esportes de características predominantemente masculinas, e sobre a possível existência de conflitos entre biótipos de atletas e padrões culturais que podem impedir o início ou prosseguimento de uma carreira desportiva.
Referência: Giavoni, A. Estereótipos sexuais aplicados às nadadoras. Revista Brasileira Ciência e Movimento,10, 2, 27-32.

Resenha: A influência de ser atleta na identidade social de portadores de deficiência física

Leandro Muniz

Os portadores de deficiência física formam um grupo quantitativamente inferior no espaço comunitário e são alvos de preconceito, que é pautado por um pejorativo processo de estereotipização. Os estereótipos influenciam de forma tenaz nas avaliações que as pessoas fazem sobre os comportamentos das outras e podem ser compreendidos como uma maneira que o indivíduo tem de simplificar o mundo. Eles são bastante resistentes às mudanças, podendo torna-se um grave complicador das relações humanas quando fundamentados por conteúdos de acepção injusta e maledicente. Entretanto, a prática esportiva colabora para o arrefecimento do modo de pensar estimatizador e categórico que os portadores de deficiência física defrontam.
O esporte proporciona aos seus praticantes uma visibilidade positiva e bastante reforçada de heroísmo, superação e força. A prática esportiva trama um terreno para o convívio, em que vantajosas relações pessoais tornam possível ao portador a capacidade de dirimir formas de pensar preconceituosas sobre suas ações no mundo.
Ao se entender que as ações cotidianas dos portadores de deficiência física não passam despercebidas e que existem diferenças perceptivas referentes aos modos de operar no mundo dos portadores não atletas, dos portadores atletas, dos não-portadores não atletas e dos não-portadores atletas, foi possibilitada a análise de fatores importantes para a compreensão de como a prática do desporto é profícua para a construção de uma identidade social sólida do grupo de portadores de deficiência física.
O portador que opera com certa independência nas tarefas sociais mostra uma identidade social mais positiva, o que promove a diluição das posturas preconceituosas referentes à maneira de vê-lo como uma pessoa de exagerada dependência. Os indivíduos necessitam de uma identidade social que se traduza em um “sentimento de nós”, de reconhecerem-se importantes no espaço coletivo.
O portador atleta é considerado como uma pessoa persistente diante das barreiras presentes na vida, autônomo, incluso de forma proveitosa nas relações sociais, capaz de viver intensamente e de agir mais normalmente que o portador não atleta. No entanto, sofre mais rejeições que os não portadores e é freqüentemente alvo de preconceitos. Mesmo com a extrema idealização da condição de ser atleta, o estigma preconceituoso é mais premente que a possibilidade da redução deste pela identificação daquele como esportista.
Com efeito, em algumas circunstâncias a imagem de atleta supera a visão categórica negativa da deficiência. A prática esportiva influencia de modo claro nos julgamentos dos grupos, há uma avaliação mais positiva do portador de deficiência física quando ele é um atleta. A “cultura do esporte” abre campo para a interação do portador com o coletivo e permite que ele entre em acordo com os valores e normas do grupo de pertença. O esporte, dessa forma, é fundamental para a afirmação de uma identidade social mais valorizada.
A investigação elaborada por Fialho e Pereira (2006) é importante para auxiliar na construção de práticas interventivas e processos de inclusão. Ao considerar que existe um processo de estereotipização, e não que os estereótipos são imutáveis e indissolúveis, a pesquisa possibilita, a partir dos dados obtidos, o avanço para a produção de medidas redutoras de preconceitos. Pensar que a mobilidade e a mudança de uma posição social tornam-se possíveis quando a estrutura de crenças permite o movimento livre do grupo que o portador de deficiência física pertence progride um deslocamento grupal mais vantajoso.
É também através de um empenho cognitivo inquiridor que se incentiva a adoção de julgamentos mais igualitários, que muito dirimem modos de pensar categóricos e estigmatizados. O espaço do esporte abre-se para a recriação da vida do portador de deficiência física atleta, em que ele se entende capaz de superar dificuldades e reclamar seus direitos.

Referência:
Fialho, K. ; Pereira, M. E. . A influência de ser atleta na identidade social de portadores de deficiência física. Psicologia Argumento, Curitiba, v. 24, p. 67-78, 2006.

Resenha: Victoria’s Dirty Secret: how sociocultural norms influence adolescent girls and women

Vanessa Carvalho

O artigo teve base numa pesquisa realizada por Erin J. Strahan e Anne E. Wilson da Universidade Wilfrid Laurier, Adéle Lafrance da Universidade de Toronto, Nicole Ethler, Steven J. Spencer e Mark P. Zanna da Universidade de Waterloo. O intuito foi de estudar as influências das normas socioculturais para mulheres adolescentes e adultas, tendo como foco de interesse os padrões de beleza.
Os autores iniciam o texto fazendo um levantamento de algumas pesquisas envolvendo o tema. Dentre dados obtidos em estudos anteriores é dito que a insatisfação das mulheres com seu corpo é conseqüência das normas socioculturais de aparência ideal. Essas normas trariam a noção de que a valorização da mulher estaria atrelada a sua aparência física.
No primeiro tópico “Papel das mensagens da mídia na imagem corporal das mulheres”, Strahan et al. tratam da influência da mídia na divulgação dos quase inatingíveis padrões de beleza e peso ideais o que vem gerando diversas críticas. Citando, Hofschire e Greenberg (2002), os autores mostram que as imagens expostas pela mídia estão negativamente relacionadas a satisfação com o próprio corpo e diretamente ligadas com a internalização de corpo ideal. Apesar de muitas pesquisas trazerem essas evidências, os autores também apontam que outros pesquisadores têm opiniões opostas. São destacados como riscos da influencia da mídia: aparecimento de distúrbios alimentares e comparação a padrões irreais.
Strahan et al. se voltam para a proposição de que as normas socioculturais podem afetar a auto-imagem das mulheres pelo aumento do nível no qual baseiam sua auto-estima em aparência física. Reforçando a relevância desse estudo, é feita uma referência a Crocker (2002) que considera arriscado quando a auto-valorização se baseia em contingências externas, porque gera busca por aprovação dos outros.
Os autores apresentam como uma peculiaridade de seu estudo, a investigação de uma contingência externa específica para auto-valorização: a aparência física. Eles propõem que normas socioculturais de aparência levam as mulheres a crer que seu valor depende de sua aparência.
Segundo Strahan et al. a modelo criado para a pesquisa se baseou em estudos anteriores que demonstraram que imagens refletindo padrões de beleza, comumente levam as mulheres a sentir-se insatisfeitas com seu corpo. Eles fazem uma interessante referência a Fredrickson e Roberts (1987) que afirmaram que as mulheres aprendem socialmente que seu valor se deve à aparência física, dando importância à perspectiva de uma terceira pessoa. A partir dessa base teórica, a hipótese de Strahan et al. é de que as imagens da mídia refletindo normas socioculturais de aparência, podem gerar nas mulheres a preocupação se estão suficientemente magras ou atraentes aos olhos de outras pessoas. Outra justificativa dada pelos autores para a relevância de estudos como este é que se confirmadas as hipóteses, o fato pode representar arriscadas implicações para as mulheres.
O processo da pesquisa, segundo apresentado pelos autores, foi dividido em duas etapas principais: “Estudo 1” e “Estudo 2”. Durante o “Estudo 1”, Strahan et al. apontam como objetivo, realizar o exame do impacto que a apresentação de imagens com padrões típicos de aparência ideal poderiam gerar com relação a satisfação das mulheres quanto a seu corpo, bem como quanto a sua preocupação com a percepção dos outros. De acordo com os autores, a pesquisa teve foco nas mulheres por considerá-las mais susceptíveis aos efeitos negativos dos padrões de beleza.
Ao descrever o método utilizado, os pesquisadores reataram que o verdadeiro objetivo da pesquisa era ocultado com o pedido de que os participantes tentassem lembrar ao máximo possível os detalhes das imagens exibidas. Essa estratégia parece válida considerando que permite evitar a interferência de algumas variáveis. Além disso, é um meio de garantir a atenção dos participantes.
Conforme apresentado no artigo, foram escolhidas como participantes apenas mulheres da graduação de psicologia. Estas foram distribuídas entre grupo experimental e grupo controle. Na condição controle, foram exibidos comerciais neutros e que não continham pessoas, seguindo o modelo de pesquisas anteriores. Por sua vez, na condição experimental, foram mostrados comerciais neutros intercalados com comerciais que segundo autores, apresentavam normas socioculturais relacionadas a aparência. Um deles se relaciona com o título do texto e consiste numa peça publicitária da grife de lingeries Victoria’s Secret. Após assistir aos comerciais, as participantes eram informadas de que haveria um intervalo antes de testar sua memória. Neste intervalo, é que ocorria a verdadeira coleta de dados por meio de questionários.
No artigo, os resultados foram agrupados em “Aparência como base para auto-valorização”, “Satisfação com o corpo” e “Preocupação com a percepção dos outros”. De acordo com relato de Strahan et al. os resultados corroboraram com sua hipótese, porque as participantes do grupo experimental basearam mais sua auto-estima na aparência que aquelas do grupo controle. Eles também apontam que um teste sobre a influência para outras dimensões da auto-valorização (além da aparência), mostrou que outros fatores como desempenho acadêmico e apoio familiar não foram afetados, embora o domínio “aprovação dos outros” o tenha. Com relação a essa observação dos autores, é importante lembrar a particularidades de cada situação e sujeito, pois questões relacionadas a baixa auto-estima quanto a aparência, em alguns casos podem ter proporções a ponto de interferir em outras dimensões da valorização pessoal.
A respeito da “satisfação com o corpo”, os autores também apresentam um resultado conforme esperado, porque as participantes do grupo experimental demonstraram menos satisfação com seu corpo. Além disso, também foi mais saliente nesse grupo a preocupação com a opinião dos outros. Sendo assim, pode-se dizer que o resultado geral, foi consistente com as formulações prévias dos pesquisadores, a partir da observação de que a auto-valorização estava mais relacionada a aparência quando normas socioculturais estavam em destaque.
A segunda etapa do estudo, “Estudo 2”, foi realizada com estudantes de escolas públicas. Neste caso, os autores apresentaram como objetivo, a investigação da possibilidade de reduzir os impactos da veiculação de padrões de beleza, por meio de uma intervenção nesse intento. A partir dessa intervenção, Strahan et al. esperavam que os participantes se sentissem desafiados a reduzir legitimidade das normas socioculturais de aparência, contestando a idéia de que seguir esses padrões traria aceitação social.
Durante essa etapa, os pesquisadores relatam ter utilizado como participantes homens e mulheres adolescentes, sem deixar muito claro o motivo para a mudança de perfil comparando-se com as participantes do “Estudo 1”, principalmente no que diz respeito a mudança de faixa etária e inclusão dos homens (no “estudo 1” apresentados como dispensáveis para essa pesquisa). Não se sabe até que ponto, essa mudança pode ter interferido nos resultados.
A descrição do método demonstra que neste caso, também houve tentativa de ocultar os objetivos da pesquisa. Na condição de controle, a intervenção se voltava para questões de incentivo ao voluntariado. Na condição experimental, era esperado que a intervenção levasse os participantes a se basear menos na aparência em sua auto-avaliação, além de que se mostrassem mais satisfeitos com seu corpo e menos preocupação com a percepção dos outros.
Segundo Strahan et al., a intervenção foi formulada em duas etapas: “sessão 1” e “sessão 2”. Durante a “sessão 1” foi realizada um discussão sobre o ideal de beleza para homens e mulheres, nesta discussão os facilitadores apresentavam exemplos e enfatizavam o quanto certos padrões são irreais, além dos riscos que a tentativa de atingi-los pode significar. Na “sessão 2”, os participantes eram estimulados aplicar os conhecimentos expostos e incitados ao debate sobre o tema. É importante considerar que a eficiência desse formato de intervenção depende da predisposição e perfil de cada um, mas de um modo geral, parece ter sido bem formulado.
Os autores apontam que o teste dos efeitos da intervenção foi feito uma semana depois. Esse procedimento por um lado permite avaliar a consistência da intervenção, mas talvez possa reduzir a garantia da correlação com dados obtidos. Durante essa etapa da pesquisa Strahan et al., relatam que aos participantes era dito que iriam avaliar campanhas publicitárias, utilizando modelos. Os resultados esperados a partir dos instrumentos eram: rejeição às normas socioculturais de aparência e menos internalização da forma física ideal.
Como resultados do grupo experimental, os autores apontam que homens e mulheres pareceram rejeitar mais a legitimidade dos padrões de beleza em comparação com os participantes do grupo controle.
Sobre a investigação da “aparência como base para auto-valorização”, Strahan et al. relevam que era esperado na condição experimental, que os participantes utilizassem menos a aparência como base de sua valorização. Os resultados foram de acordo com essa hipótese para as mulheres, embora os garotos pareçam não ter sido afetados pela intervenção. No entanto, os autores lembram que no grupo controle a comparação entre homens e mulheres, mostrou que as garotas baseavam mais sua auto-estima em aparência que os garotos.
Com relação a “satisfação com o corpo”, a hipótese formulada pelos pesquisadores era de que os participantes se apresentariam mais satisfeitos com seu corpo na condição experimental e que esse resultado seria mais saliente para as garotas. Novamente, o apresentado coincidia com o esperado e os garotos demonstravam ter sido menos afetados pela intervenção.
As expectativas dos autores sobre “preocupação com a percepção dos outros” seguiam raciocínio semelhante aos itens anteriores. Deste modo, foi relatado por eles que o esperado era que os participantes, principalmente as mulheres, na condição experimental demonstrariam menos preocupação com a opinião dos outros. Neste caso, a hipótese sobre as garotas também foi corroborada pelos resultados e entre os garotos não houve diferença significativa entre o grupo experimental e o grupo controle.
De modo geral, a partir do exposto por Strahan et al., comparando os resultados entre homens e mulheres do grupo controle foi observado que os garotos aceitavam menos as normas socioculturais de beleza. Esse dado é apresentado como justificativa para o fato da intervenção não ter gerado resultados significativos para os homens. Segundo autores, a intervenção pode não ter afetado os garotos pelo fato destes, serem mais imunes as normas socioculturais. Entretanto, é válido flexibilizar as causas dos resultados, pois conforme afirmado pelos próprios autores podem haver inúmeras outras explicações, inclusive de que o modelo utilizado não se adequou a participantes masculinos.
Ao realizar um auto-questionamento sobre a aplicabilidade dos resultados, Strahan et al. reconhecem que a depender de características particulares nem todas as mulheres reagem da mesma forma a exposição de padrões socioculturais de aparência física. A proposta é de que ainda assim, a maioria das mulheres legitimam os padrões de aparência ideal. Esse elemento, pode estar relacionado ao fato já citado pela referência a Fredrickson e Roberts (1987) de que as mulheres são socializadas aprendendo que devem buscar a adequação aos padrões de beleza. Além disso, ocorre a ainda vigente percepção da mulher como objeto sexual que desconsidera fatores como carreira e inteligência como atributos valoráveis.
A partir dos resultados obtidos, os autores apontam possíveis implicações para as mulheres. Dentre elas, é afirmado que a exposição a mensagens de normas de beleza podem levar as mulheres a basear mais sua auto-estima em aparência e como a maioria não se encaixa nos padrões, a tendência é que se auto-avaliem negativamente. Citando Crocker (2002), os autores reforçam os riscos para o bem-estar, além dos comportamentos auto-destrutivos que podem ser adotados por conta desses padrões.
Strahan et al. ressaltam que poucas opções são deixadas as mulheres porque se não se submetem aos riscos de tentar seguir os padrões, por outro lado, correm o risco da rejeição social. Os autores concluem o artigo, afirmando que embora os resultados do “Estudo 1”, apontem a tendência feminina a se auto-valorizar pela aparência e legitimar normas socioculturais de beleza, após a exposição a imagens que apresentam tais padrões, ainda pode haver esperança. Essa seria justificada pelos resultados do “Estudo 2” que mostram que um trabalho de intervenção pode trazer mudanças de comportamento.

Conclusão

Os resultados apresentados nesta e em pesquisas anteriores reforçam a necessidade de contestação da veiculação de peças publicitárias, dentre outros veículos da mídia, que refletem normas socioculturais de aparência física. Mostra-se necessário que o próprio consumidor pressione uma mudança de postura da indústria.
Vale ressaltar que algumas empresas começam a utilizar-se da quebra de padrões como uma estratégia de marketing. Mesmo que se trate de mera estratégia para atrair simpatia dos consumidores, e não um valor real da empresa pode-se considerar que se tratam de iniciativas positivas. Os resultados especificamente do “Estudo 2”, mostram que é válido valer-se de campanhas utilizando contra-estereótipos no intuito de sensibilizar quanto as fantasiosas noções de padrões de beleza.

Referência: Strahan, E. J., Lafrance, A., Wilson, A. E., Ethler, N., Spencer, S. J. & Zanna, M. P. Victoria’s Dirty Secret: How Sociocultural Norms Influence Adolescent Girls and Women. Personality and Social Psychology Bulletin, 34, 288-301, 2008.

Resenha – Sobreviver ao medo da violação: Constrangimentos enfrentados pelas mulheres

Manuela Moura

O artigo “Sobreviver ao medo da violação: constrangimentos enfrentados pelas mulheres”, dos autores Margarida Berta, José H. Ornelas e Susana G. Maria é fruto de uma pesquisa muito interessante que visou estudar quais as possíveis causas, efeitos e conseqüências que o medo da violação tem no cotidiano da sociedade e na vida das mulheres principalmente.
Estudos mostram que, em comparação com o homem, a mulher possui menos probabilidade de ser agredida. Porém, são elas quem mais sentem medo de serem violadas. Então, estes autores se propõem a estudar de onde vem a ansiedade vivida pelas mulheres diante do sentimento de insegurança social.
Clemente & Kleiman (1977, cit. Por Stanko, 1993) suscitam basicamente duas explicações: a primeira é baseada nas características atribuída as mulheres de que elas são seres frágeis e dependentes, enquanto que o homem é socialmente visto como alguém que não sabe expressar sentimentos, portanto mais rígidos ou socialmente vistos como “fortes”. A segunda explicação baseia-se em um tipo de crime específico que afeta particularmente as mulheres: o crime de violação.
Os mesmo autores citados acima enfatizam a necessidade de pesquisar sobre esse crime de gênero feminino, uma vez que este afeta a maioria das mulheres, quer elas tenham sido vítimas ou não, mas que ainda assim se sentem ameaçadas.
Pesquisas mostram que depois do homicídio, o abuso sexual é o crime mais temido pelas mulheres. Porém, o medo de violação é mais vivido pelas mulheres do que pelos homens, e pode-se supor que este medo está associado ao caráter sexual inerente a ele. Portanto, percebe-se que essas mulheres, além de serem as mais temerosas, são também as mais cuidadosas, adotando com maior freqüência medidas de prevenção.
Day (1994) postula que o quê as mulheres mais temem são os meios públicos (rua), sítios isolados, sair no turno da noite, ter a visibilidade limitada, passar por locais ou situações desconhecidas e por pessoas estranhas. Infelizmente, não há nenhuma garantia de que essas medidas irão proteger, mas muitas vezes acabam por inibir a liberdade das mulheres e restringir o acesso a meios comunitários. Então, conforme essa teoria, a violação não apenas apresenta conseqüências para a sobrevivente, mas acabam por condicionar a vida das mulheres em geral.
Existem alguns fatores interdependentes no espaço social que acabam por compor um pano de fundo para tal medo. São exemplos desses fatores: “a existência do crime de violação propriamente dito (sua prevalência e deficiente resposta legal e social em face de este crime), assim como o assédio e todo o tipo de incivilidades públicas percebidas como intrusivas; a própria cultura social e seus valores que incluem a desigualdade dos papéis sexuais e sociais de ambos os gêneros; as conseqüências da violação; os mitos sociais sobre o crime em questão; a educação; e a comunicação social”.
Todos estes fatores potencializam a interiorização de valores por parte de homens e mulheres e, conseqüentemente, obrigam à adoção de comportamentos constrangedores e limitantes por parte das mulheres.
É importante pensar que a liberdade para se viver em segurança deveria ser um direito de todos os cidadãos, porém este tipo de crime culmina na construção de um controlo social, suscitando nas mulheres o sentimento exacerbado de medo, ansiedade e apreensão.
Esses sentimentos de ansiedade e insegurança não devem ser tomados como algo particular, e sim como uma construção social, fato que causa um impacto considerável na sociedade e na vida dos cidadãos como um todo.
Riger e Gordon (1981) vão defender que o medo de violação se origina e é continuamente reforçado pela história, religião, cultura, instituições sociais que fazem parte do cotidiano de todas as mulheres. Estes mesmos autores trazem que a violação é motivada pelo poder e domínio exercidos nas sobreviventes, e não pelo desejo sexual. Sendo assim, apenas pode-se vislumbrar uma mudança nessa sociedade patriarcal e oprimida através de transformações nas instituições sociais e culturais.
Para investigar essas e outras questões importantes, os autores dessa pesquisa se basearam na metodologia de Investigação Participada Feminista (IPF), contando com as contribuições da Psicologia para a compreensão da violência contra as mulheres enquanto um problema social, decorrente do abuso de poder por parte dos homens, cujo processo de socialização incentiva.
Existem cinco itens que são importantes na definição da metodologia de investigação feminista que contribuíram para o presente estudo: “1º) há uma focalização no gênero (feminino) e na desigualdade social que esta condição acarreta; 2º) procura-se dar voz às experiências pessoais e cotidianas das mulheres (ou mesmo de outros grupos marginalizados); 3º) paralelamente ao objeto propriamente dito da investigação, encontra-se um compromisso social, para que uma real mudança ocorra nas condições opressoras sob as quais o grupo em estudo se encontra; 4º) a reflexão dos próprios investigadores sobre questões que abordam o gênero, raça, classe social e orientação sexual podem influenciar o processo de investigação, daí que; 5º) se abandone, de algum modo, a tradicional investigação positivista, que apóia uma relação formal entre investigador e “investigado”, dando lugar a um ênfase participativo por parte do último na própria construção da investigação” (Cosgrove & McHugh, 2000).
Este estudo, ao se basear nessa perspectiva, tem em si uma expectativa de catalisar mudanças sociais e de proporcionar a conscientização do fenômeno social do medo da violação. Sendo assim, tal pesquisa mostrou-se importante na medida em que se propõe a alertar, refletir e esclarecer acerca de um tema que se encontra no âmago da cultura e da sociedade.
Por fim, para melhor esclarecer quais os princípios norteadores desta pesquisa, faz-se importante mencionar quais as questões de investigação utilizadas. São elas:
1. De que modo o crime de violação afeta a vida das mulheres em geral?
2. Que comportamentos de prevenção as mulheres em geral adotam ou não para evitar este crime?
3. Que tipo de constrangimentos provoca ou não o crime de violação nas mulheres em geral?
4. A que níveis as mulheres em geral sentem ou não a sua liberdade condicionada por causa do medo da violação?
5. Qual a origem do medo da violação?

Metodologia do estudo
Foram selecionados 18 participantes do sexo feminino com idades compreendidas entre os 19 e os 25 anos. Todas elas eram universitárias no Instituto Superior de Psicologia Aplicada.
Para avaliar as respostas das participantes foi elaborado um instrumento baseado na escala “Fear of Rape Scale” (Fors) validada por Senn e Dzinas (1996). Este instrumento tem por objetivo conhecer a realidade do medo da violação e os condicionamentos que a sua existência provoca na vida das mulheres, a partir das experiências das participantes. Tal instrumento abarca dez itens. São eles:
1) Qual o crime que mais temem?
2) Na condição de mulheres, qual o crime que pensam que mais as afetam?
3) (referida a violação) O que vos faz sentir?
4) (violação não referida) E a violação, já pensaram sobre isso?
5) Qual o local/locais onde pensam haver uma maior probabilidade de acontecer? E em que altura do dia?
6) O que fazem ou deixam de fazer por causa desse crime? (precauções em casa/ rua/transportes públicos/relações sociais/altura do dia)
7) De que modo pensam que o medo da violação afeta a vossa liberdade?
8 ) De onde pensam ter surgido esse medo?
9) Esta abordagem dos condicionamentos que afeta a liberdade das mulheres parece-lhes pertinente? Em que medida?
10) Que outras idéias gostariam de acrescentar acerca deste tema?
Por fim, o procedimento utilizado foi a construção de quatro grupos de debate, contando com um total de 18 participantes. O enquadre do encontro foi definido por contato telefônico. Estes grupos eram coordenados por uma facilitadora, cuja função era resumir as idéias que foram sendo expostas; questionar o grupo sobre o que foi relatado; facilitar e promover idéias, colocar os tópicos de diversas formas; procurar saber se alguém pretendia acrescentar algo às questões que foram sendo levantadas; incentivar as pessoas menos participativas a expressar as suas idéias e promover opiniões, não emitindo juízos de valor.

Discussão dos resultados
Os resultados foram muito interessantes, corroborando em sua maioria a teoria. Grande parte das participantes neste estudo parecia ter uma opinião formada e estarem esclarecidas quanto às realidades e mitos da violação. Entre os diversos mitos existentes, elas pareciam ter conhecimento sobre o mito da mulher provocar a violação através de comportamentos ousados, do uso de um vestuário provocador, por circular em horários tardios, bem como o mito de que os violadores cometem o crime pela gratificação sexual.
Boa parte das participantes apontou na condição de mulheres o crime de violação como aquele que mais temem para si, como para aqueles que a rodeiam, e não o sexual.
Algumas delas consideram, ainda, que em face de uma situação percebida como perigosa, automaticamente pensam no risco de violação. Elas demonstraram possuir uma consciência comum de vulnerabilidade sexual e, conseqüentemente, em relação aos crimes de caráter sexual.
Alguns outros medos foram citados em menor freqüência, sendo alguns deles o medo frente às situações de risco passadas, enquanto outras associaram maiores níveis de medo à possibilidade de vitimação. O medo de violação parece estar relacionado com as conseqüências deste crime a vários níveis, encontrando-se enraizado na sua ansiedade como conseqüência da violação.
Também foi levantada que a possibilidade da violação acontecer por parte de conhecidos e no seio familiar não é uma realidade que lhes é alheia. O violador pode ser alguém conhecido da vítima, quer seja um companheiro de circunstância, amigo, colega, alguém com quem a vítima manteve ou mantém uma relação amorosa, inclusive em contexto de relação extra-conjugal.
Uma grande parte das participantes considerou maior probabilidade da violência contra as mulheres também ocorrer no contexto privado, como por exemplo, o lar. Em contrapartida, foi dado um número menor de respostas quanto à consideração da maior probabilidade de vitimização ser em local público, como na rua, ou em locais descampados/isolados, ou em locais escuros, em parques de estacionamento, em becos, em parques e principalmente quando se encontram sós.
Essas mulheres acabam por adotar comportamentos de precaução em casa, freqüentemente trancando as portas e janelas, verificando quem é quando lhe batem à porta, não abrindo a porta a estranhos, optando por utilizar alarmes.
No que tange às precauções adotadas quando estão na rua, tanto de caráter de evitação, como em estratégias de coping, percebe-se que a maioria das mulheres escolhe por trancar as portas do carro e fechar os vidros, tomar precauções quanto ao local onde estacionam o carro, procuram estar mais em estado de alerta, tanto na rua como nos transportes públicos, em face de situações entendidas como perigosas mudam de passeio, aproximam-se de zonas com mais gente ou de locais /alguém que lhes transmita segurança, quando se sentem ameaçadas correm ou apressam o passo, caminham para sítios mais iluminados ou, ainda, utilizam objetos de defesa como medida de proteção.
Day (1999), através do estudo anteriormente referido, sugeriu que a aparência, a raça e o preconceito social, podem determinar quais os homens que são temidos como potenciais ofensores. Bem como os delinqüentes que são sempre alvos de suspeita e de insegurança, sendo classificadas como pessoas perigosas.
O medo da violação é visto como limitador da liberdade por metade das participantes, causando-lhes em algum nível o sentimento de constrangimento e de limitação ao andarem sozinhas, de se movimentarem livremente, assim como consideram interferir em suas relações interpessoais, na escolha de emprego, na escolha do vestuário e ao nível do comportamento em geral.
Por fim, com base numa pressuposta diferenciação biológica, as mulheres eram/são vistas como seres delicados e vulneráveis. As normas culturais de violência e atitudes sexistas contribuem para os crimes de caráter sexual, dado que a socialização dos papéis sexuais conduz ao desenvolvimento de mitos sobre o crime de abuso sexual que resultam das atitudes sociais face às mulheres e da violência interpessoal (White & Humphrey, 1991, cit. Por White & Humphrey, 1997; Fonow et al., 1992).

Conclusão
As mulheres parecem encarar a violação como o crime que mais temem, sobrevivendo às sua ameaça adaptando estratégias que lhes permitam sentirem-se mais seguras.
Os fatores sociais que culminam no medo de violação são a cultura social que abarca a identidade do gênero e os papéis sociais e sexuais, bem como a desigualdade entre esses, a educação, as conseqüências reais do crime de violação, os mitos sociais sobre a violação que acabam por distorcer a percepção da sua realidade, a comunicação social; e, por fim, a prevalência do crime de violação, assim como as experiências de assédio no cotidiano dessas mulheres.
Sendo assim, a violação, e o receio freqüente em face desse crime, deixará de ser prevalente quando for alcançada a igualdade entre gêneros e quando estes deixarem de ser encarados como uma dimensão não muito importante na estrutura da sociedade, atendendo aos seus membros como indivíduos e não como pertencentes a um grupo sexual.
Por fim, faz-se necessário promover uma sensibilização pública focada no esclarecimento daquilo que constitui a igualdade entre gêneros e seus papéis sociais, bem como uma conscientização social que vise potencializar essa mudança. É preciso também apresentar contextualização adequada das realidades acerca da violência sexual, dispersando mitos, dissipando a culpabilização das sobreviventes e, desse modo, minimizando a ansiedade das mesmas perante o ato de violação.

Referência: Berta, M., Ornelas, J e Maria, S. Sobreviver ao medo da violação: Constrangimentos enfrentados pelas mulheres. Análise Psicológica, 25, 1, 135-147, 2008.

Resenha: Representação social de crianças acerca do velho e do envelhecimento

Greice Santos

O estudo buscou descrever as representações sociais de dois grupos de crianças residentes em um dos bairros afastados do centro comercial da cidade de Janiru/SP.
A autora toma por base a teoria das representações sociais proposta por Serge Moscovici e cita estudos que as apresentam como norteadoras dos comportamentos dos indivíduos na sociedade.
Ela traz a idéia de que as representações sociais resultam tanto de circunstâncias materiais de cada sociedade quanto de seus sistemas de valores e crenças e que podem mudar de uma sociedade para outra e dentro de uma mesma sociedade através do tempo, auxiliadas muitas vezes pelas descobertas científicas que são divulgadas pela mídia e incorporadas pelo senso comum e que passam a integrá-las.
Os estudos apresentados evidenciam que as representações sociais do velho e do envelhecimento predominantes são formadas principalmente por aspectos negativos relacionados às perdas biológicas, de laços sociais e de desempenho no trabalho; acompanhadas dos aspectos positivos da sabedoria e da experiência, numa aparente compensação pelas perdas citadas. A autora destaca, no entanto, que coexistem em nossa sociedade diferentes imagens de velhos como, por exemplo, aqueles que procuram manter-se ativos e jovens, aproveitando a vida dentro de suas limitações; em oposição àqueles doentes, solitários, pobres e abandonados.
Segundo a autora, as representações sociais estruturam o mundo em que estamos inseridos e sua presença na vida dos indivíduos se faz desde a primeira infância. Sendo assim, elas seriam responsáveis pela forma como as crianças vêem o mundo e se posicionam nele com repercussões para toda a vida do indivíduo.
Os resultados do estudo apontaram uma diversidade de conteúdos aparentemente incoerentes nas representações que as crianças investigadas têm dos velhos e do envelhecimento. A autora atribuiu esse fato às diferentes fontes de informações que dispõe essas crianças, devido à realidade em que estão inseridas e sugere que, se essa heterogeneidade for reforçada, talvez essas crianças cresçam vendo o velho e o envelhecimento de formas menos preconceituosas e estereotipadas.
Ela destaca ainda que sua intenção nesse estudo não foi comparar as representações dos dois grupos de crianças mas sim descreve-las; e incentiva novos estudos nesse sentido, pois acredita que eles permitem obter pistas sobre o modo como os indivíduos atuam e se relacionam com os velhos e com sua própria velhice.
Referência: Lopes, E. e Park, M. Representação social de crianças acerca do velho e do envelhecimento. Estudos de psicologia (Natal), 12, 141-148, 2007

Resenha: Crenças de senso comum sobre medicamentos genéricos vs.medicamentos de marca: Um estudo piloto sobre diferenças de género

Contribuição: Laís Marques

O estudo conduzido por Figueiras e cols.(2007) acerca das crenças de senso comum sobre medicamentos genéricos na população portuguesa reflete um aumento da divulgação e comercialização dos mesmos no país, o que é uma realidade correlata ao Brasil.

O aspecto econômico atrelado aos medicamentos genéricos é de alta relevância, entretanto, os autores do artigo apontam para estudos que demonstram insegurança para com esses e maior confiança na eficácia dos medicamentos de marca. Contudo, os genéricos vêm se popularizando, e vêm mostrando uma aceitação crescente.

Segundo Figueiras e cols.(2007), as crenças de senso comum atreladas aos medicamentos genéricos são permeadas pelas “… características individuais, crenças subjectivas sobre o tratamento e representações da doença do consumidor…” (Figueiras, Marcelino e Cortes, 2007, p.427).

Ao incluir as representações da doença, os autores atribuem um valor também à gravidade da mesma, que será uma das variáveis do presente estudo. Dessa maneira, quanto mais grave for a enfermidade em questão, menor será a confiança num tratamento à base de medicamentos genéricos.

Um dado interessante, trazido por Figueiras e cols (2007), aponta que, em estudos anteriores (Carroll, Wolgang, Kotzan e Perri, 1988 ) doentes que embora tivessem passado por experiência bem-sucedida com medicamento genérico, tinham uma menor probabilidade de voltar a usar este tipo de remédio em casos de doenças mais graves ou crônicas.

A adesão aos medicamentos genéricos perpassa, então, o meio social, através do qual os indivíduos irão adquirir experiências, vivências, que estão nas origens das crenças. Somado a isso, as representações sociais das doenças, e sua gravidade, também são veiculadas nesse âmbito (social).

É possível que, com o aumento crescente de informações acerca dos genéricos, algumas especulações quanto à sua eficácia ou efeitos colaterais sejam modificadas, contudo estamos ainda muito presos à prescrição médica, a qual se dá acentuadamente a favor dos medicamentos de marca. A contribuição dos profissionais de saúde, sobretudo dos médicos, na divulgação dos genéricos, é, dessa maneira, imprescindível, uma vez que, a margem de influência de um profissional como esse é bastante alta, sobretudo em setores mais carentes da população.

Corroborando com essa hipótese, um dado trazido da leitura de Figueiras, Marcelino e Cortes, (2007), pelos autores do artigo, indica que indivíduos com menos escolaridade têm crenças mais negativas quanto aos genéricos. Essa freqüência maior de crenças negativas também é encontrada em pessoas mais velhas.

Na leitura de outros estudos, os autores identificaram também diferenças quanto ao gênero envolvendo queixas somáticas e preocupação com a saúde. Por conta disso, decidiram por investigar, no estudo em questão, as diferenças de gênero associadas
às crenças sobre a medicação (genérica e de marca) para quatro doenças específicas, com graus de gravidade distintos.

Como resultados, eles obtiveram que: a concordância com a prescrição de medicamentos genéricos é inversamente proporcional à gravidade da doença; que os homens tendem a concordar mais com o uso de genéricos para doenças leves e que as mulheres associam mais fortemente o uso de medicamentos de marca às doenças mais graves.

A concordância com a prescrição de genéricos de uma forma geral, entretanto, chamou a atenção dos pesquisadores. Isto, por conta da implementação desses medicamentos ser recente em Portugal. Dentre as possíveis explicações, Figueiras e colaboradores elencaram: o fato de um participante da pesquisa poder dar respostas que ele acredita que são as esperadas; a disponibilidade de informação acerca dos genéricos e o custo menor, que é um fator bastante atrativo.

Quanto às diferenças de gênero encontradas no estudo, Figueiras e cols.(2007), sugerem a influência das diferentes formas de avaliação da saúde nessa esfera.

As mulheres, por apresentarem mais queixas e recorrerem mais aos cuidados médicos que os homens, acabam tendo uma percepção de gravidade das doenças diferenciada. Como a gravidade é um fator central na decisão entre um medicamento genérico e um de marca, e este fator tem conotações distintas para os dois gêneros, pode-se atribuir certa influência deste aspecto (gênero) nos resultados. Contudo, os pesquisadores marcam que, por se tratar de um estudo piloto, essas relações devem ser interpretadas com certo cuidado.

O estudo sobre as crenças acerca dos medicamentos genéricos reflete uma preocupação atual envolvendo a repercussão desses remédios na população. Na realidade portuguesa, os índices encontrados foram positivos, o que reflete a popularização desses fármacos devido à informação disponibilizada, sobretudo na mídia, e a redução de custos com a saúde.

Os medicamentos genéricos também vêm se popularizando no cenário brasileiro devido à sua divulgação e baixo custo. Contudo, por conta das diferenças entre as populações brasileira e portuguesa, esses resultados não podem ser generalizados para a nossa realidade.

Dessa forma, a leitura do artigo deixa uma enorme curiosidade a respeito do que poderia ser encontrado no Brasil, sobretudo, por conta de uma série de representações negativas do sistema de saúde. Esse cenário envolve, além de outros fatores, as implicações que o custo dos tratamentos traz para pessoas de renda mais baixa, para as quais o impacto econômico da utilização de remédios genéricos ou de marca é bastante acentuado.

Referência: Figueiras, M. J., Marcelino, D., Cortes, M. A., Horne, R. e Weinman, J. Crenças de senso comum sobre medicamentos genéricos vs.medicamentos de marca: Um estudo piloto sobre diferenças de género. Análise Psicológica, 25, 3, 427-437, 2007

Resenha: Propaganda contra-intuitiva e dissolução de estereótipos

Flávia Mendonça Protásio

Baseando-se no grande raio de abrangência da comunicação através da TV, a propaganda contra-intuitiva surge como uma proposta de releitura das mensagens levadas aos telespectadores a fim de diluir ou quem sabe até suprimir os estereótipos difundidos. Há uma expectativa de incitar o telespectador quanto às suas fontes de conhecimento, sugerindo a utilização não só do senso comum, mas também do senso crítico na avaliação da informação transmitida. Assim, é válido afirmar que a propaganda contra-intuitiva visa operacionalizar o desenvolvimento do pensamento, passando de uma esfera superficial a uma esfera de pensamento crítico, reflexivo.
Em seu artigo, Francisco Leite aponta a expressão “propaganda contra-intuitiva”, adotada por Peter Fry para descrever as propagandas que rompem com os padrões, como uma tentativa de desafiar a intuição, ou seja, o senso comum, e que se propõe a uma nova avaliação a respeito dos objetos estereotipados. Trata-se de um olhar diferenciado para as outras realidades nas quais estão inseridos os indivíduos vítimas de comportamentos preconceituosos. O que se assemelha à proposta da pesquisadora e socióloga Jane Elliot em seu documentário Olhos Azuis, ao proporcionar uma inversão de papéis entre “percebedor” e “alvo”. Com isso, Elliot permitiu que os que se encontravam no lugar de vantagem pudessem experimentar a perspectiva do alvo e assim contribuir para a supressão desses estereótipos.
Além da inserção de representantes de grupos estereotipados, a propaganda contra-intuitiva se propõe a promover-lhes um novo patamar, atribuindo-lhes uma nova posição antes jamais experimentada. A campanha pela “Real Beleza” desenvolvida pela empresa DOVE é um bom exemplo dessa tentativa inovadora. Ao mostrar a beleza da mulher gordinha, da ruiva, da negra, dentre outras, a propaganda promove um novo conceito a respeito desses grupos estigmatizados, incluindo-os nos “padrões” de beleza. Entretanto, é preciso muita cautela, uma vez que esse processo também pode surtir efeitos contrários, contribuindo para a produção do sentido reverso das informações presentes na propaganda.
Ainda tomando como exemplo a propaganda da DOVE, tem-se que ao invés de uma tentativa de formatar as informações já fixadas, colocadas em xeque pelo comercial, em prol de uma reconstrução do conceito de beleza, pode-se fazer uma leitura dessa propaganda onde essas mulheres são negadas enquanto referenciais de beleza. É o efeito reverso que foi denominado por Wegner (1994, apud Leite) de ricochete e nada mais é do que a ausência de motivação para suprimir um dado estereótipo, causada por estados de sonolência ou distração, levando o indivíduo a reforçar tais pensamentos preconceituosos. Diante disso, o autor se propôs a discutir se seria realmente válido investir nas propagandas contra-intuitivas enquanto mecanismo de supressão de estereótipos.
De maneira simplista, os estereótipos podem ser concebidos como crenças compartilhadas socialmente sobre atributos típicos de um dado grupo. Dependendo da classificação dessas crenças enquanto centrais ou periféricas na vida do indivíduo, o seu processo de dissolução pode exigir grandes esforços. Na tentativa de estabelecer estratégias de atuação, o autor faz uso de um modelo teórico de supressão sugerido pelo cientista social Daniel Wegner, o qual pressupõe a existência de dois processos: monitoração e reorientação. A utilização do mecanismo de monitoração do pensamento permitiria ao indivíduo um acesso ao conteúdo mental, de forma que se tornasse mais fácil controlá-lo. Concomitantemente, o indivíduo experimentaria a reorientação da consciência, o que permitiria afastar deliberadamente os pensamentos indesejados ao destinar sua atenção a qualquer outro pensamento distrator. Não obstante, a eficácia desses mecanismos ainda é questionada.
Aqui vale apontar para dois fatores que justificam a força da propaganda enquanto ferramenta estratégica na formação e transformação da opinião pública: força da justificativa e contínua exposição. “A propaganda pela sua base estratégica de sempre renovar seu discurso de sedução, capta tendências e as disseminam de forma pioneira contribuindo para a construção de novos reflexos sociais e culturais.” (Leite, 2008). As informações armazenadas na memória são de extrema importância na tomada de decisão, promovendo constantemente a reconfiguração na estrutura cognitiva do indivíduo. A apresentação de um estímulo ativa o sistema de interação entre crenças e estereótipos, interferindo no comportamento que o indivíduo apresenta perante o foco de sua avaliação. Uma vez que se apresente um estímulo novo e positivo, por exemplo, em relação aos negros, pode haver uma modificação nas informações armazenadas pelos telespectadores, influenciando na alteração dos seus comportamentos em relação aos representantes desse grupo.
. Dessa forma, é preciso pontuar as propagandas contra-intuitivas como “uma tendência que considera em seus enredos comerciais as diversas políticas de representação identitária ao projetar na sua narrativa outros sentidos para a percepção dos estereótipos negativos socioculturais” (Leite, 2008). Ainda que possuam certas limitações, as propagandas contra-intuitivas são de grande importância no que diz respeito à estimulação do questionamento a respeito das informações transmitidas, o que visa aflorar no telespectador também o senso crítico.

Referência: Leite, F. Comunicação e cognição: os efeitos da propaganda contra-intuitiva no deslocamento de crenças e estereótipos. Ciência & Cognição, 13,1, 131-141, 2008