Manuela Moura
O artigo “Sobreviver ao medo da violação: constrangimentos enfrentados pelas mulheres”, dos autores Margarida Berta, José H. Ornelas e Susana G. Maria é fruto de uma pesquisa muito interessante que visou estudar quais as possíveis causas, efeitos e conseqüências que o medo da violação tem no cotidiano da sociedade e na vida das mulheres principalmente.
Estudos mostram que, em comparação com o homem, a mulher possui menos probabilidade de ser agredida. Porém, são elas quem mais sentem medo de serem violadas. Então, estes autores se propõem a estudar de onde vem a ansiedade vivida pelas mulheres diante do sentimento de insegurança social.
Clemente & Kleiman (1977, cit. Por Stanko, 1993) suscitam basicamente duas explicações: a primeira é baseada nas características atribuída as mulheres de que elas são seres frágeis e dependentes, enquanto que o homem é socialmente visto como alguém que não sabe expressar sentimentos, portanto mais rígidos ou socialmente vistos como “fortes”. A segunda explicação baseia-se em um tipo de crime específico que afeta particularmente as mulheres: o crime de violação.
Os mesmo autores citados acima enfatizam a necessidade de pesquisar sobre esse crime de gênero feminino, uma vez que este afeta a maioria das mulheres, quer elas tenham sido vítimas ou não, mas que ainda assim se sentem ameaçadas.
Pesquisas mostram que depois do homicídio, o abuso sexual é o crime mais temido pelas mulheres. Porém, o medo de violação é mais vivido pelas mulheres do que pelos homens, e pode-se supor que este medo está associado ao caráter sexual inerente a ele. Portanto, percebe-se que essas mulheres, além de serem as mais temerosas, são também as mais cuidadosas, adotando com maior freqüência medidas de prevenção.
Day (1994) postula que o quê as mulheres mais temem são os meios públicos (rua), sítios isolados, sair no turno da noite, ter a visibilidade limitada, passar por locais ou situações desconhecidas e por pessoas estranhas. Infelizmente, não há nenhuma garantia de que essas medidas irão proteger, mas muitas vezes acabam por inibir a liberdade das mulheres e restringir o acesso a meios comunitários. Então, conforme essa teoria, a violação não apenas apresenta conseqüências para a sobrevivente, mas acabam por condicionar a vida das mulheres em geral.
Existem alguns fatores interdependentes no espaço social que acabam por compor um pano de fundo para tal medo. São exemplos desses fatores: “a existência do crime de violação propriamente dito (sua prevalência e deficiente resposta legal e social em face de este crime), assim como o assédio e todo o tipo de incivilidades públicas percebidas como intrusivas; a própria cultura social e seus valores que incluem a desigualdade dos papéis sexuais e sociais de ambos os gêneros; as conseqüências da violação; os mitos sociais sobre o crime em questão; a educação; e a comunicação social”.
Todos estes fatores potencializam a interiorização de valores por parte de homens e mulheres e, conseqüentemente, obrigam à adoção de comportamentos constrangedores e limitantes por parte das mulheres.
É importante pensar que a liberdade para se viver em segurança deveria ser um direito de todos os cidadãos, porém este tipo de crime culmina na construção de um controlo social, suscitando nas mulheres o sentimento exacerbado de medo, ansiedade e apreensão.
Esses sentimentos de ansiedade e insegurança não devem ser tomados como algo particular, e sim como uma construção social, fato que causa um impacto considerável na sociedade e na vida dos cidadãos como um todo.
Riger e Gordon (1981) vão defender que o medo de violação se origina e é continuamente reforçado pela história, religião, cultura, instituições sociais que fazem parte do cotidiano de todas as mulheres. Estes mesmos autores trazem que a violação é motivada pelo poder e domínio exercidos nas sobreviventes, e não pelo desejo sexual. Sendo assim, apenas pode-se vislumbrar uma mudança nessa sociedade patriarcal e oprimida através de transformações nas instituições sociais e culturais.
Para investigar essas e outras questões importantes, os autores dessa pesquisa se basearam na metodologia de Investigação Participada Feminista (IPF), contando com as contribuições da Psicologia para a compreensão da violência contra as mulheres enquanto um problema social, decorrente do abuso de poder por parte dos homens, cujo processo de socialização incentiva.
Existem cinco itens que são importantes na definição da metodologia de investigação feminista que contribuíram para o presente estudo: “1º) há uma focalização no gênero (feminino) e na desigualdade social que esta condição acarreta; 2º) procura-se dar voz às experiências pessoais e cotidianas das mulheres (ou mesmo de outros grupos marginalizados); 3º) paralelamente ao objeto propriamente dito da investigação, encontra-se um compromisso social, para que uma real mudança ocorra nas condições opressoras sob as quais o grupo em estudo se encontra; 4º) a reflexão dos próprios investigadores sobre questões que abordam o gênero, raça, classe social e orientação sexual podem influenciar o processo de investigação, daí que; 5º) se abandone, de algum modo, a tradicional investigação positivista, que apóia uma relação formal entre investigador e “investigado”, dando lugar a um ênfase participativo por parte do último na própria construção da investigação” (Cosgrove & McHugh, 2000).
Este estudo, ao se basear nessa perspectiva, tem em si uma expectativa de catalisar mudanças sociais e de proporcionar a conscientização do fenômeno social do medo da violação. Sendo assim, tal pesquisa mostrou-se importante na medida em que se propõe a alertar, refletir e esclarecer acerca de um tema que se encontra no âmago da cultura e da sociedade.
Por fim, para melhor esclarecer quais os princípios norteadores desta pesquisa, faz-se importante mencionar quais as questões de investigação utilizadas. São elas:
1. De que modo o crime de violação afeta a vida das mulheres em geral?
2. Que comportamentos de prevenção as mulheres em geral adotam ou não para evitar este crime?
3. Que tipo de constrangimentos provoca ou não o crime de violação nas mulheres em geral?
4. A que níveis as mulheres em geral sentem ou não a sua liberdade condicionada por causa do medo da violação?
5. Qual a origem do medo da violação?
Metodologia do estudo
Foram selecionados 18 participantes do sexo feminino com idades compreendidas entre os 19 e os 25 anos. Todas elas eram universitárias no Instituto Superior de Psicologia Aplicada.
Para avaliar as respostas das participantes foi elaborado um instrumento baseado na escala “Fear of Rape Scale” (Fors) validada por Senn e Dzinas (1996). Este instrumento tem por objetivo conhecer a realidade do medo da violação e os condicionamentos que a sua existência provoca na vida das mulheres, a partir das experiências das participantes. Tal instrumento abarca dez itens. São eles:
1) Qual o crime que mais temem?
2) Na condição de mulheres, qual o crime que pensam que mais as afetam?
3) (referida a violação) O que vos faz sentir?
4) (violação não referida) E a violação, já pensaram sobre isso?
5) Qual o local/locais onde pensam haver uma maior probabilidade de acontecer? E em que altura do dia?
6) O que fazem ou deixam de fazer por causa desse crime? (precauções em casa/ rua/transportes públicos/relações sociais/altura do dia)
7) De que modo pensam que o medo da violação afeta a vossa liberdade?
8 ) De onde pensam ter surgido esse medo?
9) Esta abordagem dos condicionamentos que afeta a liberdade das mulheres parece-lhes pertinente? Em que medida?
10) Que outras idéias gostariam de acrescentar acerca deste tema?
Por fim, o procedimento utilizado foi a construção de quatro grupos de debate, contando com um total de 18 participantes. O enquadre do encontro foi definido por contato telefônico. Estes grupos eram coordenados por uma facilitadora, cuja função era resumir as idéias que foram sendo expostas; questionar o grupo sobre o que foi relatado; facilitar e promover idéias, colocar os tópicos de diversas formas; procurar saber se alguém pretendia acrescentar algo às questões que foram sendo levantadas; incentivar as pessoas menos participativas a expressar as suas idéias e promover opiniões, não emitindo juízos de valor.
Discussão dos resultados
Os resultados foram muito interessantes, corroborando em sua maioria a teoria. Grande parte das participantes neste estudo parecia ter uma opinião formada e estarem esclarecidas quanto às realidades e mitos da violação. Entre os diversos mitos existentes, elas pareciam ter conhecimento sobre o mito da mulher provocar a violação através de comportamentos ousados, do uso de um vestuário provocador, por circular em horários tardios, bem como o mito de que os violadores cometem o crime pela gratificação sexual.
Boa parte das participantes apontou na condição de mulheres o crime de violação como aquele que mais temem para si, como para aqueles que a rodeiam, e não o sexual.
Algumas delas consideram, ainda, que em face de uma situação percebida como perigosa, automaticamente pensam no risco de violação. Elas demonstraram possuir uma consciência comum de vulnerabilidade sexual e, conseqüentemente, em relação aos crimes de caráter sexual.
Alguns outros medos foram citados em menor freqüência, sendo alguns deles o medo frente às situações de risco passadas, enquanto outras associaram maiores níveis de medo à possibilidade de vitimação. O medo de violação parece estar relacionado com as conseqüências deste crime a vários níveis, encontrando-se enraizado na sua ansiedade como conseqüência da violação.
Também foi levantada que a possibilidade da violação acontecer por parte de conhecidos e no seio familiar não é uma realidade que lhes é alheia. O violador pode ser alguém conhecido da vítima, quer seja um companheiro de circunstância, amigo, colega, alguém com quem a vítima manteve ou mantém uma relação amorosa, inclusive em contexto de relação extra-conjugal.
Uma grande parte das participantes considerou maior probabilidade da violência contra as mulheres também ocorrer no contexto privado, como por exemplo, o lar. Em contrapartida, foi dado um número menor de respostas quanto à consideração da maior probabilidade de vitimização ser em local público, como na rua, ou em locais descampados/isolados, ou em locais escuros, em parques de estacionamento, em becos, em parques e principalmente quando se encontram sós.
Essas mulheres acabam por adotar comportamentos de precaução em casa, freqüentemente trancando as portas e janelas, verificando quem é quando lhe batem à porta, não abrindo a porta a estranhos, optando por utilizar alarmes.
No que tange às precauções adotadas quando estão na rua, tanto de caráter de evitação, como em estratégias de coping, percebe-se que a maioria das mulheres escolhe por trancar as portas do carro e fechar os vidros, tomar precauções quanto ao local onde estacionam o carro, procuram estar mais em estado de alerta, tanto na rua como nos transportes públicos, em face de situações entendidas como perigosas mudam de passeio, aproximam-se de zonas com mais gente ou de locais /alguém que lhes transmita segurança, quando se sentem ameaçadas correm ou apressam o passo, caminham para sítios mais iluminados ou, ainda, utilizam objetos de defesa como medida de proteção.
Day (1999), através do estudo anteriormente referido, sugeriu que a aparência, a raça e o preconceito social, podem determinar quais os homens que são temidos como potenciais ofensores. Bem como os delinqüentes que são sempre alvos de suspeita e de insegurança, sendo classificadas como pessoas perigosas.
O medo da violação é visto como limitador da liberdade por metade das participantes, causando-lhes em algum nível o sentimento de constrangimento e de limitação ao andarem sozinhas, de se movimentarem livremente, assim como consideram interferir em suas relações interpessoais, na escolha de emprego, na escolha do vestuário e ao nível do comportamento em geral.
Por fim, com base numa pressuposta diferenciação biológica, as mulheres eram/são vistas como seres delicados e vulneráveis. As normas culturais de violência e atitudes sexistas contribuem para os crimes de caráter sexual, dado que a socialização dos papéis sexuais conduz ao desenvolvimento de mitos sobre o crime de abuso sexual que resultam das atitudes sociais face às mulheres e da violência interpessoal (White & Humphrey, 1991, cit. Por White & Humphrey, 1997; Fonow et al., 1992).
Conclusão
As mulheres parecem encarar a violação como o crime que mais temem, sobrevivendo às sua ameaça adaptando estratégias que lhes permitam sentirem-se mais seguras.
Os fatores sociais que culminam no medo de violação são a cultura social que abarca a identidade do gênero e os papéis sociais e sexuais, bem como a desigualdade entre esses, a educação, as conseqüências reais do crime de violação, os mitos sociais sobre a violação que acabam por distorcer a percepção da sua realidade, a comunicação social; e, por fim, a prevalência do crime de violação, assim como as experiências de assédio no cotidiano dessas mulheres.
Sendo assim, a violação, e o receio freqüente em face desse crime, deixará de ser prevalente quando for alcançada a igualdade entre gêneros e quando estes deixarem de ser encarados como uma dimensão não muito importante na estrutura da sociedade, atendendo aos seus membros como indivíduos e não como pertencentes a um grupo sexual.
Por fim, faz-se necessário promover uma sensibilização pública focada no esclarecimento daquilo que constitui a igualdade entre gêneros e seus papéis sociais, bem como uma conscientização social que vise potencializar essa mudança. É preciso também apresentar contextualização adequada das realidades acerca da violência sexual, dispersando mitos, dissipando a culpabilização das sobreviventes e, desse modo, minimizando a ansiedade das mesmas perante o ato de violação.
Referência: Berta, M., Ornelas, J e Maria, S. Sobreviver ao medo da violação: Constrangimentos enfrentados pelas mulheres. Análise Psicológica, 25, 1, 135-147, 2008.
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