Resenha – Normas, justiça, atribuição e poder: uma revisão e agenda de pesquisa sobre filas de espera

Rafael Oliveira

Adotando a premissa de que a fila de espera é um sistema social e que do ponto de vista psicológico expõe os usuários a uma série de fenômenos do comportamento, o artigo faz uma síntese dos estudos e pesquisas em psicologia social sobre o tema e aponta suas principais lacunas. Para tanto, utiliza o nível de análise individual, o que se convencionou chamar de psicologia social psicológica. Deste modo, a situação da fila de espera é analisada do ponto de vista de temáticas como normas, justiça, atribuição e poder.

Natureza das filas de espera e seus tipos
As filas podem ser divididas em presenciais e não-presenciais, únicas e múltiplas. Essa divisão, no entanto, se refere à organização espacial da fila. Por detrás desses tipos jaz uma natureza comum regida pelo princípio igualitário, qual seja, o de que quem chega antes deve ser atendido antes. As relações e irrupções deste princípio vão dar substrato empírico para as análises teóricas.

Normas e influência social
São definidas genericamente como conjunto de regras compartilhadas que guiam o comportamento dos indivíduos de forma implícita. Podem ser descritivas (exemplo a ser seguido) ou injuntivas (sansões informais, implícitas). As intrusões nas filas são vistas como quebra do principio igualitário (norma) gerando perda individual (tempo) e/ou ultraje moral. Outros componentes são analisados neste tópico, como o efeito da normalização (justificativa para explicar o comportamento do infrator) e os processos internos que envolvem a apatia diante da situação inesperada.

Justiça
A percepção de justiça se dá em três níveis: o modo como as pessoas avaliam a eqüidade da distribuição dos bens (distributiva); avaliação do processo adotado para distribuir os recursos (processual); como a decisão sobre a alocação de recursos é implementada (interacional). Na relação com os dois primeiros níveis os estudos mostram relatos de que as filas preferenciais (idosos, gestantes) podem ser vistas como injustas. O terceiro nível aponta para dois tipos de espera: a funcional e a cerimonial, esta última causando mais desconforto. Para a psicologia não importa se a justiça ocorreu ou não de fato, mas sim a percepção de justiça pelos envolvidos.

Atribuição de causalidade
Conceito bastante difundido em psicologia social fundamenta que as pessoas usam teorias para explicar os acontecimentos em causas internas ou externas. No caso específico das filas, a atribuição de demora aparece como fator fundamental de insatisfação de usuários nas filas e influenciam emoções, atitudes e comportamentos em três dimensões: se o provedor pode prevenir os problemas nas filas e controlar os efeitos (controlabilidade); quem ou o quê é responsável pelo problema (lócus); probabilidade de que os problemas se repitam (estabilidade). Quando o usuário considera o problema como controlável, estável e com lócus externo as reações são geralmente mais negativas.

Poder e status
As questões de poder estão relacionadas às avaliações de justiça e determinam quem pode esperar mais ou menos e o quanto é possível reclamar da espera. O tópico ainda discute a crença compartilhada (principalmente no Brasil) de que se atribui mais poder a quem se faz esperar, e como situações de espera podem definir relações de poder decidindo quem deve esperar e quem deve ser esperado. Deste modo o cidadão em fila é tratado na maioria das vezes pelo sistema de atendimento como mero passageiro de uma linha humana, sentindo-se humilhado, enganado e desamparado. Apesar disso, a fila é entendida como uma forma democrática de organização social.

Questões e Lacunas
Existe algum tempo máximo ou uma posição limite na fila em que se permite guardar lugar? Os estudos sobre intrusão devem levar em consideração o tipo de ambiente, vestimenta do intruso, idade e justificativa adotada para intrusão. Como os usuários reagem a situações percebidas como injustas? Devem ser feitos estudos que avaliem a distância social entre os atores (atendentes e usuários). Qual o efeito de caixas inoperantes na atribuição às causas de demora? Esses são apenas alguns dos direcionamentos apontados no artigo.

Considerações finais
O artigo se destaca por conseguir conjugar de forma sintética elementos teóricos com um problema prático da vida urbana. Constitui-se de fato numa agenda que pode ser usada por professores de graduação tanto para ensinar os conceitos de psicologia social como para incentivar os alunos a observação prática dos mesmos, seja testando os resultados já encontrados ou investigando as lacunas existentes. De todo modo, depois da leitura do artigo esperar numa fila nunca mais será a mesma experiência.

Referência: Iglesias, F. e Günther, H. Normas, justiça, atribuição e poder: uma revisão e agenda de pesquisa sobre filas de espera. Estudos de psicologia (Natal), 12, 1, 3-11, 2007

Resenha – trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?

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Andréia da Cruz Oliveira

1. A Escola

“Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,
é também criar laços de amizade,
é criar ambiente de camaradagem,
é conviver, é se ‘amarrar nela’!
Ora, é lógico…
Numa escola assim vai ser fácil
estudar, trabalhar, crescer,
fazer amigos, educar-se,
ser feliz.”.
Paulo Freire

Para Gomes (2002), a escola é uma instituição formadora de saberes sociais, escolares e culturais. O processo de construção da identidade social é profundamente marcado pela cultura escolar, por este motivo, muitos estudiosos vêm se debruçando sobre este assunto no intuito de compreender como a escola se constitui num espaço importante na construção do complexo processo de humanização. O interesse de alguns educadores nas relações raciais articulados à cultura e educação é crescente. Muitos temas como: a representação do negro nos livros didáticos, o silêncio das questões raciais, etc. antes ignorados, começam a fazer parte da produção teórica educacional. Uma das formas de compreender as relações raciais e sua ligação com o universo simbólico, seria através de um olhar mais amplo sobre a educação no processo de humanização, sem esquecer dos processos educativos não escolares.
A autora propõe um caminho para poder captar as impressões e representações do negro sobre o próprio corpo articulados com as experiências escolares: através do desenvolvimento de uma escuta atenta pelos educadores à fala dos negros sobre suas vivências corpóreas dentro e fora da escola. Este enfoque corrobora com os achados da sua tese de Doutorado: Corpo e cabelo com ícones de construção da beleza e da identidade negra nos salões étnicos de Belo Horizonte. (Gomes, 2002), por meio de 28 entrevistas com mulheres e homens negros, verificou-se no discurso de todos os participantes a importância da trajetória escolar na construção da identidade negra, reforços dos estereótipos e representação negativa sobre este grupo étnico/racial e do seu padrão estético.

2. O Corpo
O corpo é um dos meios de comunicação do homem na sociedade. É constituído biologicamente e simbolicamente na história e na cultura. Ao corpo são aplicados os fundamentos da vida social, diferentes crenças e sentimentos. Ele seria uma junção da natureza (a fome, o sono, a fadiga, o sexo, etc.) e do mundo das representações (a cultura) coexistindo de maneira simultânea e separada. As motivações orgânicas que se fazem presente em todos os seres humanos são ressignificados, inibidos ou exaltados pela cultura.
Para a autora, o processo de escravização dos africanos no Brasil, remete a coisificação e materialização do corpo negro nas relações sociais. O negro era visto pelos brancos como mero objeto, inclusive existiam leis que regulamentavam os senhores como proprietários dos escravos que poderiam aplicar “medidas disciplinares”: abusos sexuais e castigos corporais naqueles que não aceitavam tal imposição. Trata-los como mercadorias: comprar, vender ou trocar. E a sua liberdade oficial estava atrelada à carta de alforria.
A relação histórica do escravo com o corpo expressava as formas de rebelião, resistência e luta pela liberdade. Através da dança, dos cultos, dos penteados, no uso de ervas medicinais na cura e na cicatrização das feridas provocada pelos castigos e açoites foram maneiras específicas e libertadoras de trabalhar o corpo, ao contrário da idéia difundida da nossa sociedade do escravo submisso. O regime escravista cristalizou a forma do corpo negro ser visto e tratado, as diferenças fenotipicas entre negros escravizados e os brancos colonizadores serviram de argumento para a formação de um padrão de beleza e fealdade que perdura até hoje.
Através dessas reflexões Gomes (2000) se questiona: “Será que as escolas têm dado uma outra leitura a essa relação? Ou as crianças negras e brancas, quando estudam a questão racial, ainda participam da representação do corpo negro apenas como um corpo açoitado e acorrentado?”. O olhar do corpo negro nas escolas é fundamental para entender como os professores e alunos lidam com a cor da pele e o cabelo, dois elementos construídos na sociedade brasileira como definidores do pertencimento étnico/racial. A trajetória escolar tem um importante papel na formação da identidade negra, muitas vezes o discurso pedagógico, ao privilegiar a questão racial, pode reproduzi-lo de forma estereotipada e preconceituosa.

3. O Cabelo Crespo


“Respeitem meus cabelos, branco
Se eu quero pixaim, deixa;
Se eu quero enrolar, deixa;
Se eu quero colorir, deixa;
Se eu quero assanhar, deixa;
Deixa, deixa a madeixa balançar”
Chico César

O negro vivência sua experiência com o cabelo a partir da infância. As meninas, por exemplo, desde muito cedo são submetidas a rituais de manipulação do cabelo e geralmente a primeira técnica utilizada é a trança, mas nem sempre estas meninas elegem as tranças como penteado preferido. Este pode ser um dos motivos de algumas mulheres negras adultas adotarem alisamentos com produtos químicos ou com pente e ferro quente, pois a sensação de ter os cabelos desembaraçados sem sofrer com as pressões do pente e puxões é visto com alívio.
Na África as tranças também são utilizadas, contudo seu significado foi alterado ao chegar ao Brasil. Algumas famílias utilizam as tranças com o intuito de quebrar o estereótipo do negro sujo e despenteado, porém outras famílias o fazem como uma prática cultural. É notável a variedade de tranças e adereços coloridos nas crianças negras, diferentemente das técnicas utilizadas nos cabelos de crianças brancas. Quando adultas muitas mulheres negras reconciliam-se com as tranças, mas dessa vez estilizadas. Isto expressa a existência do estilo negro de pentear-se e adorna-se, configurando-se em uma estreita relação entre o cabelo e a identidade negra.
O processo de manipulação dos cabelos para os negros brasileiros é bastante conflituoso, neste momento crítico não é rara a expressão de sentimentos de rejeição, aceitação, ressignificação ou negação do pertencimento étnico/racial. É possível imaginar como o negro ou a negra podem representar simbolicamente o seu cabelo crespo em uma sociedade predominantemente racista, influenciada pela ditadura da beleza euro-americana que atua diretamente no comportamento individual. Na escola, por ser um espaço público, estas representações podem reforçar estereótipos e intensificar as experiências do negro com seu cabelo e o corpo.

4. O Negro na Escola
A escola estabelece padrões curriculares, de conhecimento, comportamento e de estética. É preciso pertencer a um padrão uniforme. Mais uma vez é exigido do aluno o cuidado com a aparência, sendo que por trás de um teor higienista podemos encontrar discursos com conteúdos racistas implícitos. Uma dessas exigências é “arrumar o cabelo”, sendo que esta é passada de forma distorcida para as famílias negras. Mesmo penteando os cabelos de seus filhos, estas crianças são alvos de apelidos pejorativos e piadas no ambiente escolar. Esses apelidos marcam a trajetória escolar e geralmente são as primeiras experiências de rejeição pública do corpo, pois o cabelo crespo é símbolo de inferioridade. “Uma coisa é nascer negra, ter cabelo crespo e viver dentro da comunidade negra; outra coisa é ser criança negra, ter cabelo crespo e estar entre brancos” (Gomes, 2000 p. 45).
As estratégias de enfrentamento do negro contra o racismo é bastante particular e está intimamente ligada à construção da identidade, possibilidade de socialização e informação. Para compreender melhor o processo de construção da identidade negra no Brasil deve-se levar em consideração a história, a sociedade, a cultura e a subjetividade. A adolescência é um dos momentos chaves na construção dessa subjetividade, pois além da insatisfação com a imagem, comum entre muitos adolescentes, é acrescentado o aspecto racial. Durante a vida escolar, muitas experiências de rejeição ao cabelo ou a cor da pele podem levar a baixa auto-estima ou sensação de inferioridade, por isso a escola pode atuar como favorecedora na superação dos estereótipos negativos em relação aos negros ou na sua reprodução.
Embora homens e mulheres negras de diversas partes do mundo sejam culturalmente diferentes, existe algo que os une: a cor da pele, a mesma ancestralidade africana e a forma de manipular o cabelo é uma expressão cultural. Em muitas sociedades em que a questão racial é um dos aspectos estruturantes de poder, as significações negativas em relação ao corpo negro trazem grande impacto na vida social e subjetiva do negro. Neste ponto os movimentos negros de resistência lutam pela valorização da beleza negra, sem adotar aos padrões Europeus de estética, superando o preconceito e desocupando o lugar de inferioridade.

5. Conclusão
Através da leitura desse artigo, podemos identificar a importância da Escola na construção da identidade do negro. Para o negro a ida a escola pode significar um choque inter-étnico, pois muitas vezes é na escola que se têm o primeiro contato com pessoas de outras etnias e classes sociais. É neste momento que educadores precisam ter uma escuta mais atenta em relação à fala do negro (antes ignorada!), além disso, promover uma discussão mais ampla e adequada sobre a participação do negro na história. Os livros didáticos evidenciam a coisificação do corpo negro, apenas como mera mercadoria. A participação efetiva do negro na luta pelo fim da escravidão e o cuidado com o corpo, expressada através das danças, dos penteados, etc. não são citados, a escola precisa rever e alterar esse tipo de leitura o quanto antes.
A cor da pele e o cabelo são, no Brasil, as principais fontes de classificação étnica/racial. Mesmo vivendo em uma sociedade marcada pelas relações sociais de poder baseadas na cor da pele, a identidade negra através da utilização de técnicas de manipulação dos cabelos, por meio de tranças e adereços, podem levar a construção de uma identidade negra positiva. Fica evidente a estreita relação do corpo e do cabelo ao pertencimento racial. A escola possui a função de desconstruir a inferioridade simbólica do negro na sociedade, a criança e o adolescente passam o maior tempo da vida no ambiente escolar, saindo do núcleo familiar e passando a ocupar um papel social. Por isso não se deve mais silenciar as questões raciais na escola, é exatamente lá que precisa ser discutido, que precisa ser falado. Assim o estudo sobre a representação do corpo negro possibilitará a construção de estratégias pedagógicas que possam compreender o valor do corpo negro na construção da identidade negra e na formação dos futuros cidadãos da sociedade brasileira.

6. Referência
Gomes, N.L. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?.Revista Brasileira de Educação. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, São Paulo, 2000.

Resenha: representação social de crianças acerca do velho e do envelhecimento

Pamela Pitágoras

As autoras começam a dialogar com as diversas concepções e os conhecimentos teóricos diversificados que se construiu sobre o envelhecimento. Elas ressaltam que as formas de se tratar a velhice possuem interferência das circunstâncias sociais, econômicas, culturais e valorativas de cada grupamento humano. É possível traçar uma linha histórica que identifique as modificações e permanências de visões acerca do envelhecimento. Esses conceitos podem ser resumidos como a identificação da velhice como decrepitude; a velhice como sinônimo de sabedoria e por fim a velhice como a conservação física devido aos avanços científicos.

Outro fator que foi apontado pelas autoras refere-se à mudança dos estereótipos de velhice, principalmente no âmbito da sociedade ocidental contemporânea. No lugar das perdas e da decrepitude do organismo, passa-se a uma supervalorização do “manter-se” jovem. Acompanhando essa tendência, a velhice torna-se comercializável, já que se passou a valorizar a busca da eterna juventude, ao conceito de envelhecer com bem estar, apontando para uma preocupação social das conseqüências dessa nova visão de envelhecimento.

O estudo utilizou como base de análise de sua investigação a Teoria da Representação Social, que se constitui como um espaço de construção social de concepções partilhadas dentro de um grupo. A teoria desenvolvida por Serge Moscovici tem seu foco principal nos fenômenos cognitivos e lingüísticos dos humanos. A preocupação dessa vertente da ciência psicológica reflete na tentativa de amenizar o então distanciamento entre as perspectivas do estudo de uma psicologia coletiva e uma psicologia do individuo. Dessa forma, o papel composto por Moscovici através da elaboração da Teoria da Representação Social é de produzir uma coexistência construtiva dentro dessa relação conflituosa entre individuo e sociedade. A representação social é uma modalidade de conhecimentos particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos, com objetivo de identificar práticas simbólicas difundidas coletivamente.

Quanto ao método utilizado, optou-se por investigar a representação social das crianças por meio de desenhos expressivos, entrevistas semi-estruturadas e brincadeiras (“faz-de-conta”), ampliando o leque de significações e expressões dos infantes. Dessa forma, pretendeu-se associar a manifestação pictórica com a verbalização dos participantes. Foram divididos os sujeitos em dois grupos, sendo que os de maior idade tiveram contato mais freqüente com idosos dois anos antes da pesquisa, e as crianças menores tiverem contato com idosos um ano antes da pesquisa. Todas pertenciam à mesma comunidade de origem popular de uma cidade no interior de São Paulo.

Os resultados têm muito a esclarecer sobre a atual percepção dos idosos como categoria social. Ainda é representada a velhice como atributos físicos diferenciados, como adoecimento, morte e limitações locomotoras, ou seja, a velhice como período de decadência e perdas. Entretanto, mesmo as crianças percebendo o processo de envelhecimento como a passagem do tempo, algo da composição biológica humana e natural, onde elas mesmas vivenciaram esse fenômeno, elas demonstram uma produção do conhecimento sobre o envelhecimento de maneira polimorfa.

A velhice percebida pelos infantes perpassa por funções sociais e papel familiar demarcado (velhos na posição de socialmente ativos e como parentes presentes no seio doméstico). Os sujeitos trouxeram dados de uma “velhice bem sucedida”, tirando o idoso do seu status de indivíduo segregado. Essa modificação é possível devido a inúmeras informações que circulam no ambiente social que essas crianças participam, e demonstra a importância de retirar a associação de envelhecimento com estereótipos negativos e preconceito, entretanto, tomado de cautela para não criar a glorificação exacerbada da velhice.

Referência:Lopes, E. e Park, M. Representação social de crianças acerca do velho e do envelhecimento. Estudos de psicologia (Natal), 12, 141-148, 2007

Psicologia Social: perspectivas psicológicas e sociológicas (resenha)

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Uma das principais características da psicologia social contemporânea é a ausência de modelos teóricos unificadores e o conseqüente predomínio das teorias de curto e médio alcance. Praticamente inevitável, se analisado á luz da intensa especialização teórica, conceitual e metodológica que se observa em todos os ramos da psicologia, tal situação gera uma série de dificuldades para o entendimento do que vem a ser a psicologia social. Trata-se de uma disciplina de natureza nomotética, onde a dimensão empírica e a metodologia experimental dominam ou seria a psicologia social uma disciplina de cunho emancipatório, na qual os métodos idiográficos e metodologia qualitativa predominam? Teríamos de fato três psicologias sociais, uma individualista e experimental, uma holista e sociológica e uma terceira, fundamentada nos princípios do interacionismo simbólico? Ou o critério de diferenciação da psicologia social deveria ser geográfico, de forma que teríamos uma psicologia anglo-americana, uma psicologia social européia e uma psicologia social latino-americana?

Inevitavelmente o professor ou o estudioso da psicologia social se obriga – ou é obrigado – a refletir sobre o assunto. A obra Psicologia Social. Perspectivas Psicológicas e Sociológicas, de autoria de dois cientistas sociais espanhóis, José Luis Álvaro e Alicia Garrido (São Paulo: McGraw-Hill, 2007, 414 páginas) certamente constitui um volume indispensável para ajudar a refletir sobre as questões anteriormente esboçadas. Trata-se de uma obra abrangente, que nas suas mais de quinhentas páginas oferece um panorama consistente e sistemático dos principais desenvolvimentos teóricos e metodológicos da psicologia social ao longo do desenvolvimento histórico da disciplina.

Sob o ponto de vista formal, a ordem cronológica organiza a apresentação das várias teorias comentadas nos diversos capítulos. O capítulo 1, referente aos antecessores da psicologia social na segunda metade do século XIX, dedica-se à apresentação e discussão do desenvolvimento das idéias psicossociológicas na Franca (Émile Durkheim, Gabriel Tarde e Gustave Le Bon), na Alemanha (Wilhelm Wundt, Wilhelm Dilthey e Karl Marx), na Inglaterra (Herbert Spencer) e nos Estados Unidos (William James e John Dewey). Tomando como ponto de partida os princípios do positivismo, Álvaro e Garrido discutem a tese da unidade da ciência e avaliam como tal tese repercutiu, e ainda repercute, na psicologia social contemporânea e ao mesmo tempo apontam para um paradoxo que a psicologia social enfrenta desde a sua origem: ao mesmo tempo em que surge numa época em que estava em voga a busca por princípios unificadores da ciência, os seus princípios surgem em tantos lugares distintos e seus postulados são diferentes entre si que não se pode nem mesmo falar de um mito de fundação ou de uma origem única para a psicologia social. Desde a própria origem, a psicologia social será marcada pela pluralidade e tal pluralidade irá acompanhar e determinar os passos de todo o seu desenvolvimento posterior.

O capítulo 2 analisa de forma aprofundada a consolidação da psicologia como uma disciplina independente nas primeiras décadas do século XX. As duas primeiras seções do capítulo são dedicadas à discussão de como a psicologia social conseguiu se diferenciar e se tornar autônoma em relação às duas disciplinas que lhes serviram de matrizes: a psicologia e a sociologia. Essa dualidade na origem marca a consolidação e o desenvolvimento posterior da psicologia social, seja sob o ponto de vista teórico e conceitual, seja sob o ponto de vista metodológico. No que concerne às contribuições da psicologia, observa-se que praticamente todos os sistemas psicológicos do início do século XX sugeriam alguma forma de conceber a psicologia social: a teoria do campo psicofísico da psicologia da Gestalt irá repercutir de forma significativa na obra de Kurt Lewin; o comportamentalismo de J. B. Watson atualizar-se-á na psicologia social de Floyd Allport; as idéias de base psicanalítica de Sigmund Freud e discípulos exercerão um forte impacto em teorias como as da personalidade autoritária e na hipótese da frustração-agressão. A diferenciação da psicologia social no âmbito da sociologia é analisada em termos das contribuições de autores como Edward Ross, Max Weber, Georg Simmel e George Herbert Mead. A seção final do capítulo é dedicada a apresentação das diferenças de natureza metodológica entre a psicologia social oriunda da psicologia – assentada quase que exclusivamente em técnicas experimentais – e a psicologia social de base sociológica, centrada em uma dimensão metodológica mais eclética e pluralista.

Os capítulos 3 e 4 são dedicados à análise da evolução da psicologia social como um campo independente de investigações entre os anos 30 e 70 do século XX. Os fundamentos para a discussão das diversas perspectivas teóricas da psicologia social foram os problemas de natureza epistemológicos suscitados pelo movimento do positivismo lógico do Círculo de Viena e pela sociologia do conhecimento de Karl Mannheim. No terceiro capítulo são discutidas teorias eminentemente psicossociais, como as de Kurt Lewin, e teorias que apontam para o impacto dos processos cognitivos na investigação do comportamento social, tais como as de Frederic Bartlett e Lev Vygotski, além de teorias de origem sociológica, como, por exemplo, o interacionismo simbólico, o funcionalismo estrutural de Talcott Parsons e a escola de Frankfurt. O quarto capítulo é dedicado a análise de algumas teorias mais recentes. A influência da psicologia da gestalt na psicologia pode ser facilmente referida, a considerar a sua influência em teorias como a de Fritz Heider, Solomon Asch, Leon Festinger, Stanley Milgram e Muzafer Sherif. Ainda na vertente psicológica, são analisadas as influências da psicologia comportamental sobre as obras de Carl Hovland, Robert Zajonc, John Thibaut e Harold Kelley. Em contrapartida, as contribuições de autores como George Homans, Peter Blau, Herbert Blumer, Erving Goffman e Alfred Shultz, assim como a da etnometodologia de Harold Garfinkel, foram recenseadas sobre a ótica das influências das teorias sociológicas sobre a psicologia social.

O quinto e último capítulo, que se inicia a partir de uma breve, mas bem conduzida, reflexão sobre as mudanças na concepção de ciência que influenciaram a psicologia social desde os anos 70, apresenta, em mais de 130 páginas, uma análise cuidadosa das principais vertentes da psicologia social contemporânea. Trata-se de um recenseamento exaustivo, onde os princípios e fundamentos de muitas teorias de origem européias, freqüentemente desprezadas pelos manuais tradicionais da psicologia, são apresentados com um certo grau de detalhamento. Assim, teorias mais específicas, como as da atribuição da causalidade ou a da categorização social e relações intergrupais da Universidade de Bristol, ou modelos mais abrangentes, como os da cognição social ou o das representações sociais, são apresentados e discutidos de forma relativamente aprofundada. Além disso, teorias fora da corrente principal da psicologia social psicológica, tais como o construcionismo social de Kenneth Gergen, o enfoque etogênico de Rom Harré e o modelo retórico de Michael Billig, têm os seus fundamentos apreciados. Por outro lado, teorias que exercem um forte impacto na psicologia social sociológica contemporânea, como a teoria da ação estrutural de Sheldon Stryker, a teoria da estruturação de Anthony Giddens, a sociologia figurativa de Norbert Elias e o construtivismo estruturalista de Pierre Bourdieau têm os seus fundamentos apresentados e discutidos em uma seção inteiramente dedica às vertentes sociológicas da psicologia social.

Ainda sob o aspecto formal, o livro apresenta pequenas resenhas acerca da vida e obra de 40 teóricos de destaque na psicologia social e é acompanhada por 50 páginas de referências bibliográficas, onde se encontram arrolados trabalhos clássicos e contemporâneos de leitura obrigatória para o psicólogo social.

Como pode ser depreendido da leitura desta resenha, o volume escrito por Álvaro e Garrido vem preencher uma importante lacuna na literatura psicossocial acessível aos leitores brasileiros, pois se trata de um livro que apresenta de uma forma abrangente – mas aprofundada – as principais teorias contemporâneas, discute as bases epistemológicas e históricas que as deram origem e avalia criticamente as contribuições destas teorias para o desenvolvimento da psicologia social.

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