Márcia Deocleciano
O presente texto do pesquisador Ricardo Franklin Ferreira, da Universidade de São Marcos, publicado na revista psicologia e Sociedade; 69-86; Jan./Jun. 2002, tece comentários acerca de algumas condições históricas para o desenvolvimento do preconceito contra a população negra, que muitas vezes é difícil de ser compreendido e combatido em função de um mito que o nega. O mesmo afirma que existe mecanismos subliminares de encobertamento permeados por um aparente tratamento cordial, desenvolvendo a crença de que a discriminação étnico- racial não existe. Considerando assim que , ‘não temos de compreender o que não existe’.
Pesquisas apontam que o preconceito é sistematicamente considerado como atributo do “outro”. Os resultados da pesquisa Datafolha apontam que 89% dos brasileiros afirmam saber da existência do preconceito contra os brasileiros negros, mas somente 10% o admitem como seu.
No Brasil, o preconceito não é abertamente afirmado, dificultando a elaboração de leis que favoreçam sua reversão. A ideologia de que vivemos num país em que as diferenças são aceitas e valorizadas, ‘um verdadeiro exemplo para as outras nações’, encobre o problema. Em função disso, a população negra encontra-se submetida a um processo em que as condições de existência e o exercício de cidadania tornam-se muito mais precários com relação à população considerada branca. Em decorrência, a construção de uma identidade positivamente afirmada, requisito necessário para as pessoas se engajarem em políticas efetivas voltadas para a melhoria de suas condições sociais, torna-se um processo dificultado.
O autor aborda sobre a temática do preconceito silenciado e pra isso narra a experiência vividas de uma configuração familiar muito comum cuja mãe é branca o pai sendo negro, onde tiveram três filhos sendo estes consideradas com relação a cor da pele; as duas filhas morenas e o filho da cor da pele do pai considerado como sendo negro. Só depois que a família começou a participar de grupos de militância começaram a enxergar e aceitar que todos eram na verdade negros e não ´moreno claro ou moreno escuro`.
É muito comum tratar o afro-descendente como ‘moreno’, palavra fortemente enraizada na cultura brasileira. É um exemplo de uma situação que revela uma estratégia simbólica de fuga de uma realidade em que a discriminação impera constituída, conservando a incapacidade de desenvolver atitudes afirmativas quanto às especificidades raciais. Em função do processo de desvalorização da pessoa negra, os afrodescendentes tendem a introjetar a visão dominante de mundo branco, visto como superior. Em decorrência, tendem a desvalorizar o mundo negro ou assumirem como insignificante para suas vidas o fato de serem afrodescendentes.
O texto aponta três condições favoráveis ao desenvolvimento do preconceito e sua forma de expressão no Brasil sendo um terreno fértil a constituição do racismo silencioso: (a) uma concepção constitutiva das subjetividades ocidentais, desenvolvida na modernidade, que busca ordem, desvalorizando ou eliminando o ‘diferente’; (b) um processo histórico, legitimado por tal concepção, que levou à escravidão do africano e redução de sua condição a mero objeto de uso; (c) posteriormente, já após a Abolição, o desenvolvimento de concepções, apoiadas pela ciência, acerca da inferioridade racial do negro, a ponto de se ‘prever’ sua extinção na constituição do povo brasileiro.
É importante uma análise mais aprofundada dos grupos de militância negra, no sentido de criar mecanismos que evitem o problema apontado por Figueiredo (1995), num ensaio onde são analisados aspectos da identidade das pessoas que participam da militância como um modo de vida. Ele ressalta que o militante tende a desenvolver uma identidade apoiada em procedimentos de exclusão e vedamento que resultam na “repetição estéril do próprio terreno que pretendia transformar” (p.114), independentemente do contexto – político, religioso, científico, – e da direção – ‘revolucionária’, ‘conservadora’ ou ‘alternativa’ – em que a militância esteja sendo exercida. Tratando-se do desenvolvimento de uma identidade articulada em torno de características etno-raciais, o fechamento em torno importante a participação do afro-descendente em grupos de movimento negro, pois o militante tem a chance de recuperar os valores da cultura e da história africana. Através de um processo de reconstrução, pode revisar os valores introjetados e os estereótipos negativos assimilados durante o processo de socialização, com objetivo de favorecer, uma auto-estima mais positiva e relacionamentos harmoniosos no âmbito sócio-cultural mais amplo.
Cabe aqui a proposta de um amplo debate, em termos educacionais, sobre o preconceito, as práticas discriminatórias e maneiras de superá-los, pois a escola é um núcleo estruturante formador de futuros adultos. Além disso, creio ser uma importante contribuição a educação formal enfatizar as nossas raízes nos currículos e reconstruir a história do processo de formação do povo brasileiro, não mais sob a ótica branca oficial, mas com uma visão mais abrangente. Também a participação em grupos de militância, sejam eles voltados para valores religiosos, como o Candomblé, com objetivos políticos ou culturais, pode favorecer um processo de reconstrução pessoal junto a interlocutores que vivem a mesma problemática, através do exercício de revisão dos padrões negativos introjetados e da possibilidade de contato com dados da história omitida. A militância é um espaço onde a vergonha de ser negro pode transformar-se em orgulho de ser negro, onde o indivíduo passa a ter nova história, além de intensificar a luta, que já vinha desenvolvendo desde o início da escravidão, por sua afirmação.
Também na academia, o debate sobre tais questões deve ser ampliado. A psicologia brasileira pode e deve ter um papel fundamental para ajudar na compreensão de como os processos psicológicos para a compreensão mais ampliada da problemática do afro-descendente, principalmente frente às armadilhas que um discurso social e político, Concluindo, creio ser importante que a pessoa branca deixe de negar suas raízes culturais africanas e indígenas, assim como o negro brasileiro, sua raízes culturais européias e também indígenas. Portanto, esta é uma luta do brasileiro, seja ele negro ou branco, é uma luta do brasileiro que é, culturalmente, ‘negro e branco e índio’.
Referência: Ferreira, R. F. (2002). O brasileiro, o racismo silencioso e a emancipação do afro-descendente. Vol. 14 (1): 69-86.
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