Luciana Alfano Moreira
O artigo de Raul Cordeiro sobre a amizade íntima na adolescência começa com uma reflexão acerca da importância do desenvolvimento de relações de intimidade nessa fase da vida do indivíduo, e a percepção sobre o auto-conceito. Para tanto, conceitua a intimidade como uma relação emocional caracterizada pela concessão mútua de bem estar, pelo consentimento explicito para revelação dos assuntos privados, podendo envolver a esfera dos sentidos e pela partilha de interesses e atividades em comum. Cordeiro também afirma que o conceito de intimidade pode ser estruturado em oito dimensões: sinceridade e espontaneidade; sensibilidade e conhecimento; vinculação; exclusividade; dádiva e partilha; imposição; atividades comuns; confiança e lealdade.
Na esfera individual, a intimidade é mais facilmente expressa e desenvolvida, quando se tem a experiência do autoconhecimento e se tem conhecimento dos objetivos do indivíduo para a sua vivência social. Segundo o autor, esse exercício possibilita que o autoconhecimento ocorra simultaneamente ao conhecimento do outro. Dessa forma, cordeiro também aborda o conceito de intimidade corporal, essencialmente estruturada pela percepção que o sujeito tem de si e do próprio corpo, o auto-conceito. O autoconceito é importante na satisfação global, sendo importante também para a satisfação relacional.
Na adolescência se desenvolvem as verdadeiras amizades íntimas porque a necessidade de intimidade aumenta, porque o adolescente está mais apto a viver essas relações, e porque há uma mudança no modo como ele expressa sua individualidade e intimidade perante os outros. Nessa fase também, os adolescentes se sentem mais a vontade com seus pares do que com os adultos. Cordeiro também afirma que as mudanças decorrentes da puberdade e dos impulsos sexuais devem ser consideradas, as quais, evidentemente, ocorrem de forma diferente entre rapazes e moças, e só vai se equilibrar perto da fase adulta.
O autor salienta que a importância das relações de amizade íntima na adolescência também está na possibilidade que o jovem tem de se expressar, sem temer ser ridicularizado ou criticado. É determinante, segundo Cordeiro, na construção da identidade, dos valores, objetivos e sentimentos de pertença e autoestima. Talvez caiba acrescentar nesse tópico do autor que a identificação com os pares é sim, fundamental. Estar entre iguais e o conforto do sentimento de pertença são importantes nessa fase da vida.
Mas também se deve considerar que é na adolescência que ocorrem, cada vez com mais frequência, os casos de bullying. Adolescentes são ridicularizados por adolescentes por causa de características físicas consideradas fora do padrão, como excesso de peso ou baixa estatura, por comportamentos considerados afeminados por parte dos meninos, ou masculinizados por parte das meninas, pelo modo de se vestir ou de acordo com a “tribo” a qual o adolescente pertence. E, acrescendo ao que foi exposto pelo autor, a existência dessas “tribos”, muitas vezes estereotipadas e que rivalizam com outras tribos, serve para que um jovem tenha abertura da sua individualidade com outros, os adolescentes encontram experiências de vidas, gostos e afinidades semelhantes para relatar e compartilhar. Assim, os adolescentes se sentem seguros, protegidos em suas relações.
O estudo de Raul Cordeiro teve como objetivo geral analisar as relações entre a percepção sobre a aparência física e as relações de amizade íntima na adolescência, e como o próprio autor relata, esse objetivo é subdividido nos seguintes: a) avaliar a percepção sobre a aparência física em adolescentes de ambos os sexos; b) avaliar o nível de desenvolvimento de relações de amizade íntima, no mesmo grupo de adolescentes de ambos os sexos; e c) identificar diferenças entre sexos em relação à percepção sobre a aparência física e ao nível de desenvolvimento de relações de amizade íntima. A principal hipótese formulada é a de que a percepção que os adolescentes tem da sua aparência física influencia a forma como estabelecem relações de amizade íntima.
O estudo foi feito com 309 alunos distribuídos em duas escolas pré-universitárias, com idade média de 18 anos. A Intimate Friendship Scale foi utilizada com o objetivo de avaliar a amizade íntima, a The self-perception profile for college students (sete escalas das 13 originais), e a Notação Social da Família – Graffar adaptado. Além disso, outras variáveis como escola, sexo, idade, dentre outras, foram avaliadas.
Dentre os resultados observados, vale observar que a Escala de Amizade Íntima aponta que há um grau mais elevado de maturidade no sexo feminino, e que são também entre as mulheres que os resultados de amizade íntima são mais elevados, como já visto em estudos anteriores. O autor afirma que esse resultado se deve provavelmente à definição mais precoce da identidade no sexo feminino e, consequentemente, das uma definição mais clara do seu papel nas relações com os outros. Ainda na escala de Amizade Íntima as dimensões Confiança e Lealdade obtiveram maior valor médio, o que para o autor, indica que os jovens primam por amizades que possam partilhar segredos e que não haja traição da revelação.
Outro dado interessante é que a percepção de autoconceito foi elevada no geral, sendo que os valores femininos foram menores que os masculinos, assim como na dimensão percepção sobre aparência física. No item amizade íntima com o melhor amigo a dimensão atividades em comum teve pouca diferença entre os sexos. O grupo estudado realça a importância das atividades em comum, como no lazer, no desempenho das tarefas ou da ocupação do tempo livre. Entretanto, o autor acredita que o resultado que não difere entre rapazes e moças se dá porque eles tem as atividades em comum como uma das expressões mais importantes da amizade.
Em amizade íntima com a melhor amiga houve maior consenso entre ambos os sexos nas dimensões amizade íntima, vinculação, confiança e lealdade. Já nas dimensões sinceridade e espontaneidade, sensibilidade e conhecimento mútuo, exclusividade relacional, dádiva e partilhas e atividades comuns, foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os sexos.
Na discussão, o autor conclui que a vivência das relações de amizade íntima na adolescência é fortemente influenciada pelo sexo. Nas mulheres, o fenômeno de identificação inter-pares, e para os rapazes, a necessidade de afirmação perante o sexo oposto. O estudo ignora adolescentes de orientação homossexual, e não considera essa variável. Além disso, Cordeiro observou que os valores de percepção sobre a aparência física se revelam mais influentes num baixo autoconceito feminino, provavelmente porque as cobranças quanto a aparência física feminina seja muito mais forte do que em relação aos homens. Mulheres são preparadas para serem bonitas e atraírem o sexo oposto desde muito novas, e quem não se encaixa no padrão de beleza exigido acaba sofrendo mais, chegando a ter problemas de autoestima.
Referência: Cordeiro, Raul A. Aparência física e amizade intima na adolescência: Estudo num contexto pré-universitário. Análise Psicológica, 24, 3, 509-517, 2006.