Luzia Mascarenhas de Almeida
Desde o início da década de 1990 há uma preocupação no que tange o descompasso entre o avanço da epidemia da Aids e as perspectivas relativas à descoberta de uma vacina ou à cura da doença. No intuito de interromper a transmissão do HIV e, consequentemente, diminuir o número de pessoas infectadas, algumas medidas importantes são a orientação e o fomento ao uso do preservativo. Assim, ter-se-ia uma mudança de comportamento à medida que fosse adotado o sexo seguro. Mas, segundo Andrade & Tanaka, essa relação tem se mostrado tênue, porque apesar da população possuir um bom nível de informação com relação à Aids e reconhecer a necessidade do uso do preservativo, as práticas sexuais de risco continuam a acontecer.
Mais do que a população em geral, os profissionais de saúde que trabalham com HIV/Aids detêm um conhecimento diferenciado sobre as questões que envolvem o risco frente à Aids e os cânones do sexo seguro, uma vez que, são difusores de comportamentos considerados como desejáveis, buscando fazer com que sua ação educativa resulte na adesão a eles. No entanto, esses profissionais tem se deparado com os números crescentes de casos de Aids, inclusive casos registrados dentro dessa própria classe de profissionais, mostrando que as mudanças comportamentais desejadas não têm ocorrido nem mesmo entre as pessoas que trabalham com HIV/Aids. A partir dessa constatação, buscou-se conhecer as representações de profissionais de saúde que desenvolvem atividades em HIV/Aids sobre sua prática profissional, buscando investigar como e em que medida o saber sobre Aids e a prática profissional provocaram repercussões no seu comportamento sexual.
Tal pesquisa foi realizada nos Serviços Ambulatoriais Especializados em HIV/Aids em três cidades de Mato Grosso do Sul: Campo Grande, Aquidauana e Dourados. Estes serviços atendem exclusivamente portadores do vírus HIV e doentes de Aids. E ainda, comportam profissionais capacitados de forma diferenciada para o trabalho com a clientela específica.
Foram escolhidas quatro categorias de profissionais, agrupadas da seguinte maneira: três médicos e três enfermeiros (estabelecem com os pacientes relações em que prevalecem a proximidade corporal e a manipulação de fluidos biológicos). E ainda, três psicólogos e três assistentes sociais (estabelecem relações essencialmente verbais com os pacientes).
A coleta de dados se fez por meio de entrevistas individuais semi-estruturadas, constituídas por dois blocos:
– História profissional em relação à Aids;
– Representações atinentes à relação entre o saber e a prática profissional e a vida pessoal, notadamente no que diz respeito às práticas sexuais de risco.
Na análise dos dados, fez-se a leitura flutuante de todas as entrevistas, numa pré-análise. Em seguida, foram constituídos os dois “corpus” comunicacionais. Houve, ainda, o agrupamento segundo o sexo, para a verificação de possíveis diferenças que pudessem ser consideradas significativas, notadamente no que diz respeito às questões de gênero. Os eixos compostos pelos dois blocos da entrevista se constituíram nas unidades temáticas. Por fim, houve a reconstrução do discurso do sujeito coletivo, numa síntese do significado e valor que tem a questão do saber e da prática profissional na vida pessoal, e os argumentos explicativos para as representações dos entrevistados.
Com relação aos resultados e discussão, são abordados alguns pontos, tais como: a inserção profissional no trabalho com HIV/Aids; Pontos fortes encontrados pelos profissionais, como o trabalho em equipe e a proposta diferenciada de atendimento, não só em relação ao leque de possibilidades de atuação multiprofissional, como também em relação à qualidade da assistência oferecida. E ainda, o significado de trabalhar com AIDS; Os limites entre o papel profissional e os sentimentos e emoções pessoais, que são fluidos, quando se trata de HIV/AIDS; O grande envolvimento dos profissionais com o trabalho no Serviço Ambulatorial Especializado. Além disso, foi questionado onde os profissionais de saúde que trabalham com HIV/AIDS vivenciam mais riscos, se no desenvolvimento de suas atividades de trabalho ou se na vida pessoal.
De modo geral, todos se sentem protegidos no ambiente profissional, porque conhecem e praticam as normas de segurança e fazem uso de EPI. Com relação à vida pessoal, os profissionais não se protegem porque estão em relacionamentos estáveis, como se isso fosse alguma garantia. Atualmente, não se fala mais em grupos de risco e sim em situação de risco. As pessoas que têm relações sexuais, mesmo em relacionamentos estáveis, experimentam uma situação de risco.
Considerando o saber diferenciado e a prática profissional dessas pessoas, esse argumento é desmontado, não tendo uma lógica racional. Vale ressaltar que no tocante aos riscos, não há distinção entre as representações de profissionais que manipulam fluidos biológicos e as dos profissionais que, basicamente, estabelecem relações verbais com os pacientes.
Em seguida, os autores buscam explicações, nas entrevistas realizadas, no sentido de entender o porquê do saber não mudar a prática comportamental dos profissionais que trabalham com HIV/AIDS. Várias questões foram evidenciadas, como a fidelidade implícita nos relacionamentos; a confiança no parceiro; e ainda, as questões de gênero.
As representações de homens e mulheres apontam para a direção do poder como sendo inerente ao homem: poder para decidir quando e com quem usar o preservativo. Segundo Andrade & Tanaka, no entanto, essas explicações contêm uma racionalidade cuja lógica é frágil e não se sustenta frente às argumentações. Assim, o discurso e a prática profissional são discrepantes daquilo que se aplica à vida sexual dos profissionais que trabalham com HIV/AIDS. Vida essa que está impregnada por aspectos culturais, refletindo valores fundamentais da nossa sociedade. Para que o saber implique em mudança de comportamento, no sentido do sexo seguro, no que tange esses profissionais, faz-se necessário uma intervenção no cotidiano. Faz-se necessário perceber que a vida cotidiana é a vida do indivíduo e esta não está fora da história e da cultura.
Referência: Andrade, S. M. O. e Tanaka, O. Y. (2002). O saber e a prevenção no trabalho e na vida: representações de profissionais de saúde que trabalham com HIV/ Aids. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 22 (2).
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