Preconceito e discriminação

A noção de preconceito se refere a uma atitude injusta e negativa em relação a um grupo ou a uma pessoa que se supõe ser membro do grupo. Ainda que literalmente possa significar ‘tratar alguém de uma forma diferente’, o conceito de discriminação tem por referente um comportamento manifesto, geralmente apresentado por uma pessoa preconceituosa, que se exprime por uma atitude de favorecimento aos membros do próprio grupo e/ou pela adoção de um atitude explícita ou implícita de rejeição dos membros dos grupos externos.

Fonte: Marcos E. Pereira. Psicologia Social dos Estereótipos. São Paulo: EPU, 2002

 

Sighele e os estereótipos sobre as multidões

De forma compatível com a tese predominante à época em que viveu, Scipio Sighele acreditava que, em reunião, os seres humanos suprimiam e não somavam as suas forças. Ele defendeu o argumento de que em um hipotético colóquio de vinte ou trinta homens da estirpe de Goethe, Kant, Helmholtz, Shakespeare ou Newton, ao tomar qualquer tipo de decisão, esta não se diferenciaria daquelas tomadas por uma assembléia qualquer. Tal suposição se mantinha de acordo com a interpretação de que um axioma atribuído a Herbert Spencer e muito influente na época – os caracteres dos agregados são determinados pelas características das unidades que os compõem – só seria aplicável nas circunstâncias em que se referissem a agregados compostos por unidades homogêneas e organicamente unidas entre si, situação nitidamente diferente dos comportamentos das multidões, cujas principais propriedades seriam a heterogeneidade e a inorganicidade. Assim, diante da impossibilidade da aplicação das leis da sociologia – restritas aos conjuntos homogêneos e orgânicos – seria pertinente a sua substituição pelas leis da psicologia coletiva, que por sua vez, seriam também distintas daquelas da psicologia individual.
No conjunto dos fenômenos coletivos, aqueles que melhor atenderiam aos requisitos de heterogeneidade e inorganicidade, e que, conseqüentemente, permitiriam melhor desvendar as leis que dominariam a psicologia coletiva, seriam os fenômenos multitudinários. Se as multidões pareciam ser a melhor alternativa para a investigação sistemática dos fenômenos coletivos, nada a estranhar que um criminalista se dedicasse ao estudo das multidões criminosas. O interesse de Sighele limitava-se, contudo, a encontrar uma alternativa aceitável para responsabilizar criminalmente os autores de crimes coletivos. Como cultor de uma ciência positiva, parecia-lhe insensato simplesmente abater as cabeças mais altas ou prender aqueles que não conseguiam se evadir a tempo para um sítio seguro. Assim, ao procurar atender às exigências de uma ciência penal positiva, apresenta um esboço de classificação para os crimes coletivos, assentado na distinção entre os crimes cometidos por tendências co-naturais da sociedade (o banditismo ou a máfia, por exemplo) daqueles cometidos devido à paixão da coletividade, que seriam os crimes cometidos pelas pessoas que se deixariam induzir emocionalmente pelos fervores multitudinários. No primeiro caso exigir-se-ia da sociedade uma responsabilização clara dos seus autores; no segundo caso o importante seria aceder a uma alternativa em que a sociedade pudesse se proteger dos crimes cometidos pela multidão. Nesse sentido, parece compreensível que o primeiro capítulo do livro A multidão criminosa ostente o título de Psicofisiologia das multidões. De acordo com as teses predominantes na época, os crimes multitudinais seriam explicados através da imitação ou em grau extremo pela epidemia, que por sua vez seria explicada pela sugestão. A imitação e a sugestão pareciam ser fenômenos disseminados em todas as sociedades, mas para Sighele o imitado não representava os traços que deveriam ser mais valorizado ma vida social e em decorrência da teoria dos grandes números, a multidão parece muito mais disposta a imitar atos socialmente reprováveis que aqueles valorizados pela sociedade.
Ao examinar os crimes cometidos pela multidão, Sighele acentua a presença de uma certa predisposição do povo em reagir de uma forma desmesuradamente violenta, talvez em razão da sua revolta face às condições que lhes eram impostas. Se a esta revolta latente fossem acrescentados outros fatores – a influência dos “loucos”, dos “depravados”, enfim da “lama social” onde impera a “embriaguez física”, o “vinho bebido em profusão”, a “orgia sobre os cadáveres” – amalgamar-se-iam todos os requisitos necessários para que a multidão fosse repentinamente lançada em uma vertiginosa carreira rumo a novos e novos crimes. Assim, o problema central do pensamento de Sighele – em que medida a multidão seria capaz de transformar um cidadão pacato, honesto e piedoso em um criminoso incontrolável e cruel – pode ser melhor discutido à luz de considerações de natureza axiológica.

Fontes: Sighele, Scipio. A multidão criminosa. Rio: Simões, 1954
Pereira, Marcos E. Humor e estereótipos no ciberespaço. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia, 1996.

Crenças e estereótipos: critérios para a classificação

chamada

Os estereótipos são crenças. As crenças se organizam sob a forma de sistemas. Cada indivíduo adere a um número bastante substancial de crenças. Uma forma de impor uma organização a esta enorme diversidade é mediante a adoção de um esforço taxionômico, como o conduzido pelo professor Helmuth Krüger, que identifica as dimensões fundamentais a partir das quais é possível classificar e oferecer inteligibilidade a um conjunto heteróclito e disparado de crenças ordenadas sob a forma de sistemas:

a) o nível de consciência, uma vez que algumas crenças são resultantes de um esforço apurado de reflexão e crítica, enquanto outras são adotadas sem que seja possível identificar qualquer esforço sistemático de reflexão;

o grau de consciência da crença estereotipada é baixo, pois se trata de uma crença generalizada e não submetida a um esforço reflexivo sistemático;

b) o objeto da crença, pois as crenças podem ter por referente pessoas, o mundo objetivo, o si mesmo e entidades ideais ou abstratas;

as crenças estereotipadas se referem a grupos e categorias sociais humanas. É inadmissível fazer alusões a estereótipos de animais, objetos, coisas e demais entes inanimados;

c) o modo, desde que algumas crenças podem ser afirmativas, enquanto outras tendem a ser negativas;

usualmente as crenças estereotipadas são expressas sob forma afirmativa, embora seja possível a expressão dos estereótipos mediante o uso de asserções de caráter negativo;

d) a aceitação pessoal, pois algumas crenças são acompanhadas por um forte sentimento de certeza, enquanto outras são expressas sem qualquer convicção;

os estereótipos são crenças a respeito de grupos sociais, cujo grau de certeza pode ser variável, a depender de quem crê e do conhecimento sobre o grupo alvo;

e) a importância atribuída, uma vez que os indivíduos não atribuem a mesma importância ou não aderem com o mesmo fervor a todas as classes de crenças;

estereótipos são crenças a respeito de grupos sociais, cujo grau de importância é variável e depende daquele que crê;

f) a congruência entre crenças e ações, dado que algumas crenças são acompanhadas por ações congruentes, enquanto em outras circunstâncias não ocorre qualquer congruência entre a crença e a ação;

O mais usual é que as crenças estereotipadas sejam acompanhadas por ações consistente com o que se acredita.

g) perspectiva temporal, pois umas crenças podem se referir ao passado, ao presente ou ao futuro;

as crenças estereotipadas geralmente se referem ao presente, embora nada impeça que elas possam fazer alusão ao passado ou mesmo a uma certa perspectiva futura.

h) consenso ou concordância social, pois algumas crenças obtém um alto grau de concordância social, enquanto outras encontram apoio, quando o encontram, apenas em grupos minoritários;

uma crença estereotipada depende de um forte grau de compartilhamento social, senão estaríamos a falar de crenças idiossincráticas e não de crenças estereotípicas;

i) a necessidade lógica, dado que é justificado estabelecer uma distinção entre as crenças que são capazes de se exprimir sob a forma de verdades necessárias e outras que exprimem apenas afirmações contingenciais.

as crenças estereotipadas devem ser entendidas como explicações ou teorias a respeito dos atributos ou das ações de outras pessoas.

Fontes: Krüger, Helmuth. Psicologia das Crenças: perspectivas teóricas. Tese de concurso para professor titular do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1995
Pereira, Marcos E. Humor e estereótipos no ciberespaço. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996

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A baianidade e seus subterfúgios

Salvador, Bahia, segunda-feira, oito horas da noite. Peguei um táxi para ir ao supermercado. O motorista, claro, com o rádio ligado. Um radialista , famoso por sua alacridade, passou a desancar, ao vivo e sem subterfúgios, a (falta) de educação do povo baiano. Não ficou pedra sobre pedra. Mijar em qualquer canto, parar o carro no meio da rua e atrapalhar o trânsito na maior desfaçatez, tratar qualquer um, independente de idade, sexo ou religião, de forma descortês, enfim, uma série de mazelas que quem vive na cidade de todos os santos conhece bem e de tão acostumado nem leva mais a sério. Claro que os comentários demandariam uma reflexão mais aprofundada a respeito dos muitos anos de desgoverno de um certo partido que tinha vergonha do próprio nome, da herança maldita deixada pelo império despótico do “senador do povo”, assim como da completa ausência de valores que parece imperar na nossa terra de ninguém. Não foi bem isto que se viu em seguida. Imediatamente o radialista mudou de assunto e passou a fazer troça, junto a um colega, de um habitual comentarista da rádio, que felizmente para o radialista e os seus colegas de batente, e infelizmente, ou não, para o alvo das gracinhas, não se encontrava presente. O teor dos comentários do radialista, assim como os termos e as expressões utilizadas, foram absolutamente impróprios para menores, e constrangedores, para não dizer outra coisa, para um ouvinte que não comunga com a esculhambação que se apossou da terra de Gregório de Matos. Longe deste que escreve ironizar ou mesmo desancar o radialista. Ele apenas reproduziu o que anteriormente criticara. Isto apenas demonstra quão fácil é ver os defeitos dos outros e como estes mesmos predicados podem ser interpretados como uma coisa positiva, a depender do alvo, da boa vontade e do estado de espírito de quem está julgando.

Cartoons racistas

Durante muitos anos as minorias foram retratados de forma estereotipada no rádio, na televisão, no cinema e nas histórias em quadrinhos. Este filme é uma compilação de cenas nas quais os negros são retratados de forma estereotipada na cultura americana no primeira metade do século XX. Vale o exercício de identificar a expressão dos diversos estereótipos e avaliar em que medida eles ainda permanecem vivos.

Fonte: CineGraphic

Os estereótipos e a opinião pública

As primeiras reflexões sistemáticas a respeito dos estereótipos foram apresentadas por Walter Lippman, um jornalista norte-americano. Ele sugeriu que na vida moderna as pessoas são convidadas a tomar, diariamente, uma série de decisões sobre um conjunto de temas a respeito do qual o qual não possuem qualquer conhecimento. Como esta decisão tem de ser tomada, e de forma rápida, na falta de um repertório informacional adequado que guie racionalmente a decisão, elas terminam por se sustentar em um conjunto de crenças, compartilhadas amplamente pela sociedade, e sobre as quais não se dispensou qualquer juízo avaliativo. O argumento central das reflexões de Lippman sobre os estereótipos parece ser este: cada ser humano, mesmo conhecendo apenas uma pequena parte da superfície terrestre, e ainda assim em caráter restrito e limitado, é solicitado a tomar decisões sobre um número substancial de questões, algumas extremamente complexas, sobre as quais não possui um entendimento satisfatório, o que o impõe a interpretar a realidade de acordo com o seu próprio ponto de vista, ao elaborar um retrato parcial e um tanto ingênuo a respeito do mundo em que vive.

Fontes: Marcos. E. Pereira. Psicologia Social dos Estereótipos. São Paulo:EPU.
Lippman, W. (1922) Public Opinion. New York: Harcourt, Brace

O essencialismo e os estereótipos

Apesar do otimismo epistemológico inerente a boa parte dos estudos e intervenções psicossociais, as evidências empíricas encontradas na literatura acentuam a enorme dificuldade em suprimir, ou mesmo reduzir, o efeito dos estereótipos e, conseqüentemente, de combater o preconceito e a discriminação.
A influência exercida pela categorização social no processo de estereotipização é objeto de destaque na literatura psicossocial desde o trabalho germinal de Gordon Allport. Durante muito tempo as perspectivas dos protótipos e exemplares foram as principais alternativas teóricas para o estudo da categorização, situação que perdurou até meados dos anos 80, quando a introdução da teoria essencialista da categorização produziu mudanças significativas neste campo de estudos. O impacto da teoria essencialista tem sido reiteradamente identificado em estudos publicados nos últimos anos e os últimos desenvolvimentos teóricos sugerem que o essencialismo deve ser tratado como um conceito bidimensional. As crenças essencialistas podem ser agrupadas em duas categorias básicas, as naturalistas e as entitativas. Tanto na sua forma naturalista quanto na entitativa, o essencialismo se fundamenta na crença de que as pessoas são percebidas como dotadas de essências. E uma essência, ao contrário das aparências, é imutável. Esta crença na imutabilidade imposta pelo pensamento essencialista é a grande responsável pela enorme dificuldade encontrada para suprimir ou mesmo modificar os estereótipos.

Anedotas: o alvo como avarento

Origem: França
Grupo Alvo: Escoceses:

“É terrível”, comentou um escocês, “mas eu nunca consigo tomar uma xícara de café do jeito que eu gosto. Lá em casa, como a ordem é economizar, eu só coloco uma colher de açúcar. Na caso dos outros, como não sou eu que estou pagando, sirvo-me de três colheres. O que eu gostaria mesmo seria de tomar café com duas colheres de açúcar.”

Anedotas: o alvo como estúpido

Origem: Nova Zelândia
Grupo alvo: os Maoris

A biblioteca de um Maori pegou fogo em um incêndio. Não só o fogo destruiu ambos os livros, mas o que é pior, ele ainda não havia acabado de colorir o segundo deles.

Os estereótipos ainda vivem.. na América Latina

Durante a Copa América de Futebol, disputada em 1995 no Uruguai, o jornalista Calvin Sims sugeriu que os estereótipos estão presentes de uma forma muito mais acentuada na América Latina que nos Estados Unidos. Ele observou que os argentinos rotulavam um dos seus adversários de ´filhos de Pinochet´, enquanto motivavam a sua equipe na partida disputada contra o Brasil aos gritos de ´abaixo os negros sujos do Brasil´. Os torcedores chilenos, no prélio contra a Bolívia, vociferavam que nenhum país com o nível igual ao de Uganda poderia derrotar a sua equipe. Os bolivianos, por sua vez, também insistiam no repúdio ao militarismo dos chilenos. Em 2005, tivemos a oportunidade de assistir a uma partida semifinal da Copa Libertadores da América, disputada em Buenos Aires, entre o River Plate e o São Paulo. Antes do início da partida, torcedores do time argentino, que por caminhos certamente tortuosos conseguiram contrabandear uma carga de bananas para o interior do Estádio Monumental de Nuñez, se aproximavam do local onde estava concentrada a torcida tricolor e enquanto dancavam e faziam piruetas e outras macaquices, lançavam a carga de bananas por cima do alambrado em direção aos brasileiros. Penso que passados um pouco mais de dez anos, o senhor Sims deve ter reavaliado os seus conceitos. Claro que os estereótipos ainda vivem na América Latina. Da mesma forma que ainda sobrevivem nos quatro cantos desse mundo redondo.

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