Narena de Alencar Moreira
O objetivo do artigo foi questionar a adoção de estereótipos de gênero pela sexologia, sendo que esta tem mostrado em suas pesquisas uma função sexual masculina, puramente biológica e fisiológica, indiferente aos aspectos relacionais, emocionais e contextuais, enquanto a função sexual feminina seria exclusivamente emocional e psicológica, ignorando-se os fatores biológicos, sendo os desejos sexuais “naturais” no homem e inexistentes na mulher.
No artigo o autor aponta que pesquisas têm sido feitas seguindo uma abordagem organicista, o que representa um avanço na área. Contudo, essas pesquisas ainda não atribuem a mesma importância para a função sexual do homem e da mulher. Mesmo que baseadas em fatores biológicos, essas pesquisas ainda parecem seguir estereótipos de gênero, bem difundidos no senso comum.
A questão é intensificada quando estes estereótipos de gênero ultrapassam as barreiras do senso comum e passam a interferir nas práticas científicas. Assim, a ciência iria ao encontro do senso comum, através das pesquisas realizadas, ao invés de questionar estes valores. Vemos o velho disfarçado de novo. As velhas concepções sobre a sexualidade disfarçada de novas descobertas científicas.
A análise traçada pelo autor resgata o contexto histórico dessa ciência da sexualidade a partir do final do século XIX, ilustrando como desde então os debates em torno do tema caracterizam a sexualidade do homem como simples, urgente e constante, além de centrada na genitália, enquanto a sexualidade da mulher seria complexa, problemática, intermitente, difusa no que diz respeito ao corpo e assim não necessariamente relacionada ao orgasmo. O modelo predominante se baseia em uma dominação do homem e submissão da mulher, adotando apenas em sua definição uma relação heterossexual. A partir dos anos 1970 são formuladas as primeiras críticas a esse modelo, contudo essa concepção vigora mesmo nos dias de hoje.
Além do reducionismo criticado pelo autor, que prioriza alguns aspectos em detrimento de outros, outro ponto é problematizado, a medicalização da sexualidade. “Atualmente, a sexologia cede lugar a uma ‘medicina sexual’, que visa a se constituir como especialidade médica dos transtornos da função sexual” (Giami, 2007). Deste modo, a sexualidade é reduzida a transtornos a serem medicados, excluindo-se a função sexual normal e os fatores que extrapolam a área da biologia. O termo sexualidade, que implica também em uma abordagem psicológica, dá lugar ao termo “saúde sexual” ou “função sexual”. “Não é mais o aspecto comportamental nem psicológico que constitui o objeto de interesse científico, mas a função somática dos órgãos genitais em sua dimensão biofisiológica” (Giami, 2007).
Seguindo-se o desenvolvimento da chamada medicina sexual, é possível notar que as pesquisas sobre disfunções da sexualidade masculina são maioria. Como o autor aponta, “os trabalhos fundamentais relativos à função sexual masculina, notadamente a ereção, foram muito mais desenvolvidos após o início dos anos 80 que aqueles sobre a função sexual feminina (sobre os transtornos do desejo e da excitação)” (Giami, 2004 apud Giami, 2007). De maneira similar, os instrumentos de avaliação destes transtornos são bem diferentes, segundo o gênero. Enquanto na avaliação de transtornos relacionados à sexualidade feminina são inseridas questões sobre fatores psicológicos e subjetivos, na avaliação da sexualidade masculina esses fatores são desprezados, atendo-se apenas a um funcionamento corporal mecânico.
Perante as críticas feitas pelo autor, faz necessário ressaltar a importância da reavaliação dos valores que têm sido transmitidos não só pelo senso comum, mas também pela ciência, que além de aprisionar a mulher em um conceito de sexualidade ultrapassado e limitado, também dificulta o estudo da sexualidade masculina, que certamente está além dos fatores biológicos. Sendo a vivência humana complexa e multifatorial, há de ser também complexa também a experiência sexual, para homens e mulheres, levando-se em consideração seus variados aspectos.
Referência: Giami, A. (2007). Permanência das representações do gênero em sexologia: as inovações científicas e médicas comprometidas pelos estereótipos de gênero. Revista Saúde Coletiva, 17(2), 301-320