Resenha: Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe de empregadas domésticas e seus empregadores

Tainá Almeida

De acordo com Donna Goldstein (2003), manter uma empregada doméstica é um sinal diacrítico na sociedade brasileira, que sinaliza a distância da pobreza. Porém, é preciso salientar que as relações entre patrões e empregadas da casa se dão de forma diferente no Brasil, pois envolvem uma troca afetiva entre ambas as partes, apesar da manutenção clara da hierarquia que mantém o serviço doméstico.
O artigo de Jurema Brites, “Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe de empregadas domésticas e seus empregadores”, analisa através de uma pesquisa etnográfica como essa ambiguidade dos relacionamentos entre patrões e domésticas mantém o nível de distância social entre eles. A análise do presente artigo centrou-se inicialmente no trabalho reprodutivo, que, para a antropóloga Shellee Colen (1995:78) trata-se de um trabalho “físico, mental e emocional necessário para a geração, criação e socialização de crianças, assim como a manutenção de casas [households] e pessoas (da infância até a velhice)”. No contexto observado, babás caribenhas e seus empregadores em Nova York, tem-se que a desvalorização dessas por deixarem seus filhos “abandonados” com parentes ou vizinhos juntamente com a valorização de quem contrata seus trabalhos, fortalece a desigualdade social, política e econômica da relação. No Brasil, associando isso ao contexto de afetividade, vê-se que a relação se dá por um lado, de forma que a empregada doméstica tem o papel de cuidar da casa, dos filhos, dos idosos, da limpeza e dos animais de maneira afetiva, liberando a família para cumprir seus papéis de classe média (pais e mães trabalharem, cuidados com a saúde; filhos estudarem, entrarem em cursos de línguas, etc.). Por outro, há a estratificação da relação no contexto de distância social estabelecida e na procura das domésticas em estabelecer a sobrevivência e promoção de suas próprias famílias.
A relação entre a família que contrata a empregada doméstica e esta encontra-se estabelecida e clara desde a infância. Muitas empregadas acabam se sentindo tão apegadas aos filhos dos patrões quando ao delas mesmas, extrapolando certos limites que seriam os estritamente profissionais. Esse relacionamento acaba sendo recíproco, pois as crianças passam grande parte do dia com as empregadas e com isso estabelecem vínculos, porém, elas já têm conhecimento da divisão e limites da trabalhadora na casa. Essas divisões são passadas pelas falas dos pais ou pela própria organização do ambiente: o quarto da empregada, o banheiro da empregada, o sofá da sala de estar onde ela não pode sentar, entre outros. Uma criança chegou a citar na entrevista que gostaria que a empregada de sua casa ganhasse na Sena, pois assim elas poderiam apenas conversar e ser amigas. Os pais se preocupam em estabelecer esses limiares para que não se perca a relação de patrão/empregado apesar dos laços de afeto, mas algumas outras questões não são levadas em conta por eles na hora da escolha da trabalhadora. Foi registrado que a principal preocupação dos pais trata da educação dos filhos e muitos deles trabalham para mantê-los em boas escolas, bons cursos e boas condições de educação, mas quase nenhum considera a sua própria empregada doméstica como alguém que passa conhecimento ou instrução para seus filhos. No contexto brasileiro, embora reclamassem quase sempre sobre a qualidade da limpeza, quase não foram registradas queixas dos patrões sobre o que uma empregada de baixo nível de escolaridade poderia estar passando de informação para seus filhos.
A respeito das relações sexuais entre empregadores e empregadas, assunto tão comentado em obras literárias e no cotidiano popular, nada foi muito citado. A pesquisadora acredita que a divisão de classes no universo vivido pela classe média ainda é muito marcado e portanto, a empregada não é vista tanto como símbolo sexual pela diferença de nível social presente. Porém, podemos ver até hoje em novelas e no dia-a-dia da televisão brasileira, relatos a respeito de casos entre patrões e empregadas.
Portanto, as ideias centrais nesse artigo giram em torno de como as crianças são moldadas ao longo da infância para que possam ter relações de afeto com as empregadas domésticas, porém saibam que existe uma divisão estratificada e uma distância entre as condições sociais. Tornam-se, portanto, futuras patroas e patrões com os mesmos hábitos dos pais e repassam isso num ciclo sem fim. Com certeza deve haver em algum momento uma separação entre o trabalho realizado pela doméstica e sua relação de afetividade com a família, afinal, existe um vínculo empregatício envolvido. Porém, não se deve pensar nessa separação como algo engessado, baseado nos moldes dos níveis sociais, naturalizando assim a desigualdade que começa dentro das casas e se expande para o mundo exterior.

Referência: Brites, J. Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe entre empregadas domésticas e seus empregadores. Cadernos Pagu, 29, 91-109, 2007.

Resenha: imagens e significado e o processamento dos estereótipos

Robson de Almeida Silva

O estudo relatado no artigo em questão procurou determinar a existência de diferença entre a avaliação de uma categoria alvo, realizada por meio da simples apresentação do rótulo verbal da categoria e a avaliação de uma categoria alvo em que se acrescentava, durante a apresentação, uma fotografia de exemplares típicos de cada categoria. Também buscou avaliar a influência do tamanho da cidade de residência do participante na avaliação da distância social, estando em jogo nesse caso a investigação sobre os efeitos contextuais na avaliação dos estereótipos. Para ambos os focos foi utilizado a escala de distância social de Bogardus como instrumento.

Como embasamento teórico o artigo inicia apresentado uma apanhado histórico sobre a forma como o estudo do estereótipo se desenvolveu no âmbito da psicologia social, neste sentido é destacado os diferentes métodos de estudos do estereótipos na medida em que é proposto a diferenciação entre o fenômeno enquanto um conjunto compartilhado de crenças e como o processo de estereotipação. O estudos partiram do auto-relato ao qual buscava-se o conteúdo, para o métodos experimentais onde a investigação girava em torno de quais os mediadores cognitivos responsáveis pelo processo de estereotipização.

De forma geral, a discussão teórica chega ao ponto onde é posto que estereótipos passaram a ser considerados como crenças compartilhadas referentes aos atributos pessoais, especialmente traços de personalidade e aos comportamentos de um grupo de pessoas, já a estereotipização, definida como o processo de aplicar um julgamento estereotipado a um indivíduo de forma a apresentá-lo como tendo traços que são comuns a outros membros de uma mesma categoria.

O estudo contou com 2006 participantes distribuídos em 49% do sexo masculino e 51% do sexo feminino, a coleta de dados foi realizada de forma computadorizada. O experimento foi realizado de acordo com um delineamento 2 x 3, sendo que na primeira condição, foi utilizado os tipos de escala de distância social (sem foto x com foto), enquanto a segunda condição se referia à cidade de residência do participante (Juiz de Fora, Além Paraíba ou Vila Velha).

Por fim, os resultados da pesquisa revelam a existência de diferenças na avaliação da categoria alvo quando apresentada por meio de estímulos inteiramente abstratos como o relato verbal, se comparada com a avaliação realizada quando foram acrescentadas em formato de imagens (fotografias) de exemplares do grupo alvo. No que diz respeito ao segundo proposito do estudo, percebeu-se que o grau de distância social em relação aos membros da categoria alvo recebeu influência do tamanho da cidade em que o participante do experimento reside.

Referência: Pereira, M. E. ; Martins, A. ; Cupertino, C. ; Ferreira, F. Imagens e significado e o processamento dos estereótipos. Estudos de Psicologia, 7, 2, 389-397, 2002.

Resenha: música, comportamento social e relações interpessoais

Rosicley Almeida Lima

A pesquisa relatada por Ilari (2006) objetivou analisar a relação entre música e relacionamento interpessoal amoroso. Muitos estudiosos se debruçam há décadas sobre o papel da música na história da evolução da espécie humana e até hoje não chegaram a um consenso em relação ao assunto.
O texto ressalta que a funcionalidade da música no mundo ocidental, pelo menos, está relacionada direta ou indiretamente, aos relacionamentos interpessoais. Em qualquer fase da vida, em envolvimentos profissionais ou pessoais, em atividades de cunho festivo ou religioso, a música se faz presente na história das civilizações como um dos instrumentos de atração interpessoal. A atração interpessoal é apresentada como “uma experiência que leva os indivíduos a relatarem uma conexão especial com os outros…” (p. 2), e que remete às nossas experiências ao longo da vida. De acordo com o texto atitudes, crenças e valores em comum são elementos importantes na atração interpessoal e é justamente isso que a relaciona com o desenvolvimento do gosto musical, já que ambos dependem de contingências sociais.
É sabido que a música possui diferentes objetivos nas mais variadas culturas, como excitar e acalmar, sendo que o grupo social irá definir a ‘adequação’ de cada ritmo ao momento em que a música é tocada. Desse modo, a música é capaz de despertar as mais diversas sensações, pois está intimamente relacionada com as situações do cotidiano.
O texto traz resultados de estudos da psicologia da música (nem sabia que existia) sobre o papel desta na atração heterossexual, ou melhor, sobre o modo como o gosto musical influencia na escolha de parceiros do sexo oposto. E a conclusão foi que os estereótipos comumente associados aos grupos sociais também se aplicam aos estilos musicais, uma mostra da interferência cultural na relação música-indivíduo. Para Ilari, “os estereótipos associados à música, que nada mais são do que esquemas cognitivos que passam pelo viés de categorias impostas social e culturalmente, aparentam ser determinantes nas atitudes interpessoais.” (p. 3). O gosto musical, nesses casos é considerado representante de um conjunto de crenças e valores que servem para categorizar as pessoas.
A pesquisa já realizada nos EUA e em alguns países europeus, dessa vez foi aplicada em uma amostra brasileira composta por 50 jovens (metade homens e metade mulheres) adultos entre 12 e 43 anos frequentadores de um restaurante universitário de Campinas/SP, todos com pouco ou nenhum envolvimento formal (cursos, etc.) com o meio musical. O instrumento desenvolvido para a coleta de dados consistiu em três partes: primeiro, os participantes foram expostos a cinco pares de classificados pessoais e a partir disso, deveriam escolher, em cada par, o parceiro de sua preferência, ressaltando que a variável música (por ex., toca violão) estava presente em apenas um classificado de cada par. Em seguida, o instrumento traz a seguinte proposição incompleta: “As pessoas que ouvem….(estilo musical) são geralmente….(adjetivo)”, e os participantes deveriam atribuir no mínimo dois adjetivos com base nos estilos propostos, a saber: MPB, jazz, música clássica, samba/pagode, rock/pop e sertanejo, considerados os mais populares em nosso país. Por último, todos responderam questões abertas sobre sexo, idade, experiência educacional, experiência musical prévia e tempo de escuta musical, e ainda questões abertas sobre a relevância da música nas vivências pessoais, inclusive nas relações interpessoais.
Os resultados parciais mostraram que a maioria dos participantes relacionou gosto musical a características da personalidade e às atitudes. A classe social e consequentemente o status também foram associações frequentes. Um exemplo disso são as relações envolvendo o gênero sertanejo, maior concordância de adjetivos entre os participantes, que foi considerado música para indivíduos humildes, moradores ou não da zona rural, além de muito sentimentais. Nota-se uma forte associação ainda com a música sertaneja de raiz e um contraponto com o ‘moderno’ sertanejo de duplas que com suas letras românticas e grande influência de instrumentos como a guitarra, em pouco ou quase nada se parecem com a música sertaneja de Tonico e Tinoco, por exemplo. E se a pesquisa tivesse acontecido nos tempos atuais do sertanejo universitário certamente os estereótipos de classe social e de personalidade relacionados a esse estilo estariam ainda mais confusos e/ou discrepantes.
Para 86% dos entrevistados, a música é importante no relacionamento amoroso na medida em que influencia os sentimentos de ambos os parceiros (80%), tornando-os mais ou menos sensíveis enquanto indivíduos e também par (71%), e ainda promove a conexão entre o casal (68%), ajudando a chegar ao romance (67%). Um dado surpreendente é o de que 14% da amostra afirmou não namorar alguém com gosto musical diferente do seu, reforçando o poder dos estereótipos envolvidos com a música; uma das justificativas seria a de que essa contradição entre os gostos musicais seria crucial nas saídas dos parceiros para se divertirem juntos. Porém, a maioria dos participantes se mostrou aberto para a experiência de se relacionar com alguém de gosto musical oposto ao seu, sinalizando a existência das diferenças e o necessário respeito a elas.
Como dado mais significativo sobre a díade música-relacionamento amoroso, a maioria esmagadora da amostra (92%) descreveu no mínimo dois episódios de suas vidas em que determinada música teve destaque especial, fazendo com que sua audição elicie necessariamente respostas de recordações desses episódios.
A autora resumiu em três os objetivos da música nos relacionamentos interpessoais: objetivos de excitação, elevando-a (música rápida) ou diminuindo-a (música lenta); objetivos de fundo acústico para criar um clima de acordo com o contexto e ainda suprir possíveis falhas na comunicação verbal, por exemplo; objetivos de interação social facilitando a aproximação e a troca de experiências; objetivo de fortalecer a memória afetiva, fazendo com que determinada música ajude o indivíduo a lembrar de fatos ou pessoas de seu convívio.
Ilari conclui que a música tem relação indireta nas relações interpessoais e consequentemente na escolha de parceiros amorosos, seja facilitando a aproximação, tornando mais ou menos agradável os encontros, trazendo à memória recordações do passado, e assim por diante. Dessas observações a autora infere que o papel da música na história da evolução humana precisa ser reconsiderado.
Subestimar a função da música no desenvolvimento das relações humanas é negar o seu caráter principal de linguagem entre os indivíduos nos mais diversos momentos de sua história pessoal e coletiva. Obviamente, particularidades culturais devem ser levadas em conta quando explicamos o papel da música na vida das pessoas, pois sem dúvida, ela consiste em um indicativo das representações sociais, haja vista os muitos estereótipos que alimenta.

Referência: Ilari, B. (2006). Música, comportamento social e relações interpessoais. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 1, p. 191-198.

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