De forma compatível com a tese predominante à época em que viveu, Scipio Sighele acreditava que, em reunião, os seres humanos suprimiam e não somavam as suas forças. Ele defendeu o argumento de que em um hipotético colóquio de vinte ou trinta homens da estirpe de Goethe, Kant, Helmholtz, Shakespeare ou Newton, ao tomar qualquer tipo de decisão, esta não se diferenciaria daquelas tomadas por uma assembléia qualquer. Tal suposição se mantinha de acordo com a interpretação de que um axioma atribuído a Herbert Spencer e muito influente na época – os caracteres dos agregados são determinados pelas características das unidades que os compõem – só seria aplicável nas circunstâncias em que se referissem a agregados compostos por unidades homogêneas e organicamente unidas entre si, situação nitidamente diferente dos comportamentos das multidões, cujas principais propriedades seriam a heterogeneidade e a inorganicidade. Assim, diante da impossibilidade da aplicação das leis da sociologia – restritas aos conjuntos homogêneos e orgânicos – seria pertinente a sua substituição pelas leis da psicologia coletiva, que por sua vez, seriam também distintas daquelas da psicologia individual.
No conjunto dos fenômenos coletivos, aqueles que melhor atenderiam aos requisitos de heterogeneidade e inorganicidade, e que, conseqüentemente, permitiriam melhor desvendar as leis que dominariam a psicologia coletiva, seriam os fenômenos multitudinários. Se as multidões pareciam ser a melhor alternativa para a investigação sistemática dos fenômenos coletivos, nada a estranhar que um criminalista se dedicasse ao estudo das multidões criminosas. O interesse de Sighele limitava-se, contudo, a encontrar uma alternativa aceitável para responsabilizar criminalmente os autores de crimes coletivos. Como cultor de uma ciência positiva, parecia-lhe insensato simplesmente abater as cabeças mais altas ou prender aqueles que não conseguiam se evadir a tempo para um sítio seguro. Assim, ao procurar atender às exigências de uma ciência penal positiva, apresenta um esboço de classificação para os crimes coletivos, assentado na distinção entre os crimes cometidos por tendências co-naturais da sociedade (o banditismo ou a máfia, por exemplo) daqueles cometidos devido à paixão da coletividade, que seriam os crimes cometidos pelas pessoas que se deixariam induzir emocionalmente pelos fervores multitudinários. No primeiro caso exigir-se-ia da sociedade uma responsabilização clara dos seus autores; no segundo caso o importante seria aceder a uma alternativa em que a sociedade pudesse se proteger dos crimes cometidos pela multidão. Nesse sentido, parece compreensível que o primeiro capítulo do livro A multidão criminosa ostente o título de Psicofisiologia das multidões. De acordo com as teses predominantes na época, os crimes multitudinais seriam explicados através da imitação ou em grau extremo pela epidemia, que por sua vez seria explicada pela sugestão. A imitação e a sugestão pareciam ser fenômenos disseminados em todas as sociedades, mas para Sighele o imitado não representava os traços que deveriam ser mais valorizado ma vida social e em decorrência da teoria dos grandes números, a multidão parece muito mais disposta a imitar atos socialmente reprováveis que aqueles valorizados pela sociedade.
Ao examinar os crimes cometidos pela multidão, Sighele acentua a presença de uma certa predisposição do povo em reagir de uma forma desmesuradamente violenta, talvez em razão da sua revolta face às condições que lhes eram impostas. Se a esta revolta latente fossem acrescentados outros fatores – a influência dos “loucos”, dos “depravados”, enfim da “lama social” onde impera a “embriaguez física”, o “vinho bebido em profusão”, a “orgia sobre os cadáveres” – amalgamar-se-iam todos os requisitos necessários para que a multidão fosse repentinamente lançada em uma vertiginosa carreira rumo a novos e novos crimes. Assim, o problema central do pensamento de Sighele – em que medida a multidão seria capaz de transformar um cidadão pacato, honesto e piedoso em um criminoso incontrolável e cruel – pode ser melhor discutido à luz de considerações de natureza axiológica.
Categoria: Estereótipos
Crenças e estereótipos: critérios para a classificação
Os estereótipos são crenças. As crenças se organizam sob a forma de sistemas. Cada indivíduo adere a um número bastante substancial de crenças. Uma forma de impor uma organização a esta enorme diversidade é mediante a adoção de um esforço taxionômico, como o conduzido pelo professor Helmuth Krüger, que identifica as dimensões fundamentais a partir das quais é possível classificar e oferecer inteligibilidade a um conjunto heteróclito e disparado de crenças ordenadas sob a forma de sistemas:
a) o nível de consciência, uma vez que algumas crenças são resultantes de um esforço apurado de reflexão e crítica, enquanto outras são adotadas sem que seja possível identificar qualquer esforço sistemático de reflexão;
o grau de consciência da crença estereotipada é baixo, pois se trata de uma crença generalizada e não submetida a um esforço reflexivo sistemático;
b) o objeto da crença, pois as crenças podem ter por referente pessoas, o mundo objetivo, o si mesmo e entidades ideais ou abstratas;
as crenças estereotipadas se referem a grupos e categorias sociais humanas. É inadmissível fazer alusões a estereótipos de animais, objetos, coisas e demais entes inanimados;
c) o modo, desde que algumas crenças podem ser afirmativas, enquanto outras tendem a ser negativas;
usualmente as crenças estereotipadas são expressas sob forma afirmativa, embora seja possível a expressão dos estereótipos mediante o uso de asserções de caráter negativo;
d) a aceitação pessoal, pois algumas crenças são acompanhadas por um forte sentimento de certeza, enquanto outras são expressas sem qualquer convicção;
os estereótipos são crenças a respeito de grupos sociais, cujo grau de certeza pode ser variável, a depender de quem crê e do conhecimento sobre o grupo alvo;
e) a importância atribuída, uma vez que os indivíduos não atribuem a mesma importância ou não aderem com o mesmo fervor a todas as classes de crenças;
estereótipos são crenças a respeito de grupos sociais, cujo grau de importância é variável e depende daquele que crê;
f) a congruência entre crenças e ações, dado que algumas crenças são acompanhadas por ações congruentes, enquanto em outras circunstâncias não ocorre qualquer congruência entre a crença e a ação;
O mais usual é que as crenças estereotipadas sejam acompanhadas por ações consistente com o que se acredita.
g) perspectiva temporal, pois umas crenças podem se referir ao passado, ao presente ou ao futuro;
as crenças estereotipadas geralmente se referem ao presente, embora nada impeça que elas possam fazer alusão ao passado ou mesmo a uma certa perspectiva futura.
h) consenso ou concordância social, pois algumas crenças obtém um alto grau de concordância social, enquanto outras encontram apoio, quando o encontram, apenas em grupos minoritários;
uma crença estereotipada depende de um forte grau de compartilhamento social, senão estaríamos a falar de crenças idiossincráticas e não de crenças estereotípicas;
i) a necessidade lógica, dado que é justificado estabelecer uma distinção entre as crenças que são capazes de se exprimir sob a forma de verdades necessárias e outras que exprimem apenas afirmações contingenciais.
as crenças estereotipadas devem ser entendidas como explicações ou teorias a respeito dos atributos ou das ações de outras pessoas.
Fontes: Krüger, Helmuth. Psicologia das Crenças: perspectivas teóricas. Tese de concurso para professor titular do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1995
Pereira, Marcos E. Humor e estereótipos no ciberespaço. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996
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Os estereótipos e a opinião pública
As primeiras reflexões sistemáticas a respeito dos estereótipos foram apresentadas por Walter Lippman, um jornalista norte-americano. Ele sugeriu que na vida moderna as pessoas são convidadas a tomar, diariamente, uma série de decisões sobre um conjunto de temas a respeito do qual o qual não possuem qualquer conhecimento. Como esta decisão tem de ser tomada, e de forma rápida, na falta de um repertório informacional adequado que guie racionalmente a decisão, elas terminam por se sustentar em um conjunto de crenças, compartilhadas amplamente pela sociedade, e sobre as quais não se dispensou qualquer juízo avaliativo. O argumento central das reflexões de Lippman sobre os estereótipos parece ser este: cada ser humano, mesmo conhecendo apenas uma pequena parte da superfície terrestre, e ainda assim em caráter restrito e limitado, é solicitado a tomar decisões sobre um número substancial de questões, algumas extremamente complexas, sobre as quais não possui um entendimento satisfatório, o que o impõe a interpretar a realidade de acordo com o seu próprio ponto de vista, ao elaborar um retrato parcial e um tanto ingênuo a respeito do mundo em que vive.
Fontes: Marcos. E. Pereira. Psicologia Social dos Estereótipos. São Paulo:EPU.
Lippman, W. (1922) Public Opinion. New York: Harcourt, Brace
Os estereótipos ainda vivem.. na América Latina
Durante a Copa América de Futebol, disputada em 1995 no Uruguai, o jornalista Calvin Sims sugeriu que os estereótipos estão presentes de uma forma muito mais acentuada na América Latina que nos Estados Unidos. Ele observou que os argentinos rotulavam um dos seus adversários de ´filhos de Pinochet´, enquanto motivavam a sua equipe na partida disputada contra o Brasil aos gritos de ´abaixo os negros sujos do Brasil´. Os torcedores chilenos, no prélio contra a Bolívia, vociferavam que nenhum país com o nível igual ao de Uganda poderia derrotar a sua equipe. Os bolivianos, por sua vez, também insistiam no repúdio ao militarismo dos chilenos. Em 2005, tivemos a oportunidade de assistir a uma partida semifinal da Copa Libertadores da América, disputada em Buenos Aires, entre o River Plate e o São Paulo. Antes do início da partida, torcedores do time argentino, que por caminhos certamente tortuosos conseguiram contrabandear uma carga de bananas para o interior do Estádio Monumental de Nuñez, se aproximavam do local onde estava concentrada a torcida tricolor e enquanto dancavam e faziam piruetas e outras macaquices, lançavam a carga de bananas por cima do alambrado em direção aos brasileiros. Penso que passados um pouco mais de dez anos, o senhor Sims deve ter reavaliado os seus conceitos. Claro que os estereótipos ainda vivem na América Latina. Da mesma forma que ainda sobrevivem nos quatro cantos desse mundo redondo.
Diferentes formas de manifestação dos estereótipos: a dimensão da linguagem
O humor inglês é muito curioso. Neste quadro uma famosa humorista representa uma tradutora numa reunião de executivos de uma multinacional
O estudos dos estereótipos: algumas noções fundamentais
– as crenças desempenham um importante papel na manifestação dos comportamentos sociais e coletivos;
– em toda cultura é possível identificar um conjunto de crenças compartilhadas por um número substancial de pessoas;
– uma crença é coletiva quando uma infinidade de exemplares da mesma encontra-se em circulação, embora cada um desses exemplares seja ligeiramente diferente dos demais;
– uma parte substancial dessas crenças coletivas se refere a outros grupos nacionais, regionais ou étnicos;
– a base cognitiva das crenças sobre os membros de outros grupos assenta-se sobre um conjunto de representações estereotipadas;
– os estereótipos étnicos e nacionais podem ser explicados a partir de uma série de fatores psicológicos, psicossociológicos ou sociais;
– fatores psicológicos como a atenção, a codificação e a busca da informação presente na memória, assim como os fatores vinculados à afetividade impelem a uma avaliação por demais genérica dos grupos externos;
– alguns mecanismos psicológicos trabalham no sentido de fixar a crença de que os membros do grupo externo são todos iguais;
– outros mecanismos psicológicos se encarregam de destituir a importância das informações capazes de levar à reavaliação dos grupos externos;
– se algo indesejado ou negativamente avaliado ocorre, as pessoas tendem a apontar os grupos externos como a causa destas dificuldades;
– as pessoas sempre encontram justificativas para os atos que perpetraram ou que tiveram a intenção de promover contra membros do grupo externo;
– as pessoas tendem a avaliar as pessoas de seu grupo de uma forma bem positiva do que àquelas que pertencem aos grupos externos;
– em decorrência desse viés na avaliação dos grupos, geralmente é difícil evitar a adoção de comportamentos ou ações estereotipadas.
Fonte Pereira, M. E. (1996) Humor e estereótipos étnicos no ciberespaço.
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