Andréia da Cruz Oliveira
1. A Escola
“Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,
é também criar laços de amizade,
é criar ambiente de camaradagem,
é conviver, é se ‘amarrar nela’!
Ora, é lógico…
Numa escola assim vai ser fácil
estudar, trabalhar, crescer,
fazer amigos, educar-se,
ser feliz.”.
Paulo Freire
Para Gomes (2002), a escola é uma instituição formadora de saberes sociais, escolares e culturais. O processo de construção da identidade social é profundamente marcado pela cultura escolar, por este motivo, muitos estudiosos vêm se debruçando sobre este assunto no intuito de compreender como a escola se constitui num espaço importante na construção do complexo processo de humanização. O interesse de alguns educadores nas relações raciais articulados à cultura e educação é crescente. Muitos temas como: a representação do negro nos livros didáticos, o silêncio das questões raciais, etc. antes ignorados, começam a fazer parte da produção teórica educacional. Uma das formas de compreender as relações raciais e sua ligação com o universo simbólico, seria através de um olhar mais amplo sobre a educação no processo de humanização, sem esquecer dos processos educativos não escolares.
A autora propõe um caminho para poder captar as impressões e representações do negro sobre o próprio corpo articulados com as experiências escolares: através do desenvolvimento de uma escuta atenta pelos educadores à fala dos negros sobre suas vivências corpóreas dentro e fora da escola. Este enfoque corrobora com os achados da sua tese de Doutorado: Corpo e cabelo com ícones de construção da beleza e da identidade negra nos salões étnicos de Belo Horizonte. (Gomes, 2002), por meio de 28 entrevistas com mulheres e homens negros, verificou-se no discurso de todos os participantes a importância da trajetória escolar na construção da identidade negra, reforços dos estereótipos e representação negativa sobre este grupo étnico/racial e do seu padrão estético.
2. O Corpo
O corpo é um dos meios de comunicação do homem na sociedade. É constituído biologicamente e simbolicamente na história e na cultura. Ao corpo são aplicados os fundamentos da vida social, diferentes crenças e sentimentos. Ele seria uma junção da natureza (a fome, o sono, a fadiga, o sexo, etc.) e do mundo das representações (a cultura) coexistindo de maneira simultânea e separada. As motivações orgânicas que se fazem presente em todos os seres humanos são ressignificados, inibidos ou exaltados pela cultura.
Para a autora, o processo de escravização dos africanos no Brasil, remete a coisificação e materialização do corpo negro nas relações sociais. O negro era visto pelos brancos como mero objeto, inclusive existiam leis que regulamentavam os senhores como proprietários dos escravos que poderiam aplicar “medidas disciplinares”: abusos sexuais e castigos corporais naqueles que não aceitavam tal imposição. Trata-los como mercadorias: comprar, vender ou trocar. E a sua liberdade oficial estava atrelada à carta de alforria.
A relação histórica do escravo com o corpo expressava as formas de rebelião, resistência e luta pela liberdade. Através da dança, dos cultos, dos penteados, no uso de ervas medicinais na cura e na cicatrização das feridas provocada pelos castigos e açoites foram maneiras específicas e libertadoras de trabalhar o corpo, ao contrário da idéia difundida da nossa sociedade do escravo submisso. O regime escravista cristalizou a forma do corpo negro ser visto e tratado, as diferenças fenotipicas entre negros escravizados e os brancos colonizadores serviram de argumento para a formação de um padrão de beleza e fealdade que perdura até hoje.
Através dessas reflexões Gomes (2000) se questiona: “Será que as escolas têm dado uma outra leitura a essa relação? Ou as crianças negras e brancas, quando estudam a questão racial, ainda participam da representação do corpo negro apenas como um corpo açoitado e acorrentado?”. O olhar do corpo negro nas escolas é fundamental para entender como os professores e alunos lidam com a cor da pele e o cabelo, dois elementos construídos na sociedade brasileira como definidores do pertencimento étnico/racial. A trajetória escolar tem um importante papel na formação da identidade negra, muitas vezes o discurso pedagógico, ao privilegiar a questão racial, pode reproduzi-lo de forma estereotipada e preconceituosa.
3. O Cabelo Crespo
“Respeitem meus cabelos, branco
Se eu quero pixaim, deixa;
Se eu quero enrolar, deixa;
Se eu quero colorir, deixa;
Se eu quero assanhar, deixa;
Deixa, deixa a madeixa balançar”
Chico César
O negro vivência sua experiência com o cabelo a partir da infância. As meninas, por exemplo, desde muito cedo são submetidas a rituais de manipulação do cabelo e geralmente a primeira técnica utilizada é a trança, mas nem sempre estas meninas elegem as tranças como penteado preferido. Este pode ser um dos motivos de algumas mulheres negras adultas adotarem alisamentos com produtos químicos ou com pente e ferro quente, pois a sensação de ter os cabelos desembaraçados sem sofrer com as pressões do pente e puxões é visto com alívio.
Na África as tranças também são utilizadas, contudo seu significado foi alterado ao chegar ao Brasil. Algumas famílias utilizam as tranças com o intuito de quebrar o estereótipo do negro sujo e despenteado, porém outras famílias o fazem como uma prática cultural. É notável a variedade de tranças e adereços coloridos nas crianças negras, diferentemente das técnicas utilizadas nos cabelos de crianças brancas. Quando adultas muitas mulheres negras reconciliam-se com as tranças, mas dessa vez estilizadas. Isto expressa a existência do estilo negro de pentear-se e adorna-se, configurando-se em uma estreita relação entre o cabelo e a identidade negra.
O processo de manipulação dos cabelos para os negros brasileiros é bastante conflituoso, neste momento crítico não é rara a expressão de sentimentos de rejeição, aceitação, ressignificação ou negação do pertencimento étnico/racial. É possível imaginar como o negro ou a negra podem representar simbolicamente o seu cabelo crespo em uma sociedade predominantemente racista, influenciada pela ditadura da beleza euro-americana que atua diretamente no comportamento individual. Na escola, por ser um espaço público, estas representações podem reforçar estereótipos e intensificar as experiências do negro com seu cabelo e o corpo.
4. O Negro na Escola
A escola estabelece padrões curriculares, de conhecimento, comportamento e de estética. É preciso pertencer a um padrão uniforme. Mais uma vez é exigido do aluno o cuidado com a aparência, sendo que por trás de um teor higienista podemos encontrar discursos com conteúdos racistas implícitos. Uma dessas exigências é “arrumar o cabelo”, sendo que esta é passada de forma distorcida para as famílias negras. Mesmo penteando os cabelos de seus filhos, estas crianças são alvos de apelidos pejorativos e piadas no ambiente escolar. Esses apelidos marcam a trajetória escolar e geralmente são as primeiras experiências de rejeição pública do corpo, pois o cabelo crespo é símbolo de inferioridade. “Uma coisa é nascer negra, ter cabelo crespo e viver dentro da comunidade negra; outra coisa é ser criança negra, ter cabelo crespo e estar entre brancos” (Gomes, 2000 p. 45).
As estratégias de enfrentamento do negro contra o racismo é bastante particular e está intimamente ligada à construção da identidade, possibilidade de socialização e informação. Para compreender melhor o processo de construção da identidade negra no Brasil deve-se levar em consideração a história, a sociedade, a cultura e a subjetividade. A adolescência é um dos momentos chaves na construção dessa subjetividade, pois além da insatisfação com a imagem, comum entre muitos adolescentes, é acrescentado o aspecto racial. Durante a vida escolar, muitas experiências de rejeição ao cabelo ou a cor da pele podem levar a baixa auto-estima ou sensação de inferioridade, por isso a escola pode atuar como favorecedora na superação dos estereótipos negativos em relação aos negros ou na sua reprodução.
Embora homens e mulheres negras de diversas partes do mundo sejam culturalmente diferentes, existe algo que os une: a cor da pele, a mesma ancestralidade africana e a forma de manipular o cabelo é uma expressão cultural. Em muitas sociedades em que a questão racial é um dos aspectos estruturantes de poder, as significações negativas em relação ao corpo negro trazem grande impacto na vida social e subjetiva do negro. Neste ponto os movimentos negros de resistência lutam pela valorização da beleza negra, sem adotar aos padrões Europeus de estética, superando o preconceito e desocupando o lugar de inferioridade.
5. Conclusão
Através da leitura desse artigo, podemos identificar a importância da Escola na construção da identidade do negro. Para o negro a ida a escola pode significar um choque inter-étnico, pois muitas vezes é na escola que se têm o primeiro contato com pessoas de outras etnias e classes sociais. É neste momento que educadores precisam ter uma escuta mais atenta em relação à fala do negro (antes ignorada!), além disso, promover uma discussão mais ampla e adequada sobre a participação do negro na história. Os livros didáticos evidenciam a coisificação do corpo negro, apenas como mera mercadoria. A participação efetiva do negro na luta pelo fim da escravidão e o cuidado com o corpo, expressada através das danças, dos penteados, etc. não são citados, a escola precisa rever e alterar esse tipo de leitura o quanto antes.
A cor da pele e o cabelo são, no Brasil, as principais fontes de classificação étnica/racial. Mesmo vivendo em uma sociedade marcada pelas relações sociais de poder baseadas na cor da pele, a identidade negra através da utilização de técnicas de manipulação dos cabelos, por meio de tranças e adereços, podem levar a construção de uma identidade negra positiva. Fica evidente a estreita relação do corpo e do cabelo ao pertencimento racial. A escola possui a função de desconstruir a inferioridade simbólica do negro na sociedade, a criança e o adolescente passam o maior tempo da vida no ambiente escolar, saindo do núcleo familiar e passando a ocupar um papel social. Por isso não se deve mais silenciar as questões raciais na escola, é exatamente lá que precisa ser discutido, que precisa ser falado. Assim o estudo sobre a representação do corpo negro possibilitará a construção de estratégias pedagógicas que possam compreender o valor do corpo negro na construção da identidade negra e na formação dos futuros cidadãos da sociedade brasileira.
6. Referência
Gomes, N.L. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?.Revista Brasileira de Educação. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, São Paulo, 2000.
Gostei muito do seu estudo parabens.
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Oi Alexandre,
este é um tema que me interessa bastante e que está presente no nosso cotidiano.
Muito Obrigada
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Interessante observa que o processo dos estereótipos é cristalizado e repassado para novas gerações. Não existindo muita reflexão sobre seus sistemas de crenças. E como o fenótipo do negro ainda traz estereótipos negativos. Engendrado pelos educadores da sociedade.
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Nunca li tanta merda junta ao mesmo tempo……………
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excelente , sua resenha é muito informativa e me deu subsidios para pesquisa que pretendo desenvolver sobre identidade negra no ambiente escolar
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Adorei as abordagem, o seu resumo é de grande relevância.
Me deu um norte na pesquisa que estou desenvolvendo sobre corpo e identidade nas comunidades populares.
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