Quem ainda não se obrigou a perpetrar algumas mentiras, quando a situação assim o exigia ? E nessas circunstâncias, você se torna um mentiroso ? Provavelmente não, pois se todos cometem umas mentirinhas de quando em vez, ninguém se transforma em um mentiroso empedernido pelo simples fato de mentir.
Podemos afirmar que, com raríssimas exceções, todos mentem. Isto ocorre porque muitas circunstâncias da nossa vida cotidiana impõem que contemos algumas mentiras, sob pena de criar zonas de atrito perfeitamente dispensáveis na nossa vida social. Muitas mentiras encontram-se associadas ao domínio da polidez. Circunstâncias bastante comuns impõem a adoção de pequenas aleivosias, que tornam as rudezas do dia a dia menos ásperas. Uma tia que se apresenta toda satisfeita com a sua (horrenda) roupa nova, o jantar gelado servido na casa da sogra que você afirma estar numa temperatura absolutamente maravilhosa, a cerveja quente na casa do amigo que você afirma estar estupidamente gelada, o videotape das viagens de férias dos parentes que você confirma estar ansioso para assistir ou mesmo a insistência para que uma visita inconveniente permaneça um pouco mais quando se está morrendo de sono, todas essas situações costumeiramente levam à emissão de algumas mentiras nas quais a cortesia, a polidez e a civilidade parecem justificar o deslize moral.
Em outras circunstâncias as pessoas mentem por motivos sentimentais. Pais que evitam que os filhos tomem conhecimento de determinadas situações, filhos que desejam poupar os pais de dissabores previsíveis, esposos, noivos ou namorados que afirmam ou deixam de afirma certas coisas para o parceiro ou mesmo amigos que inibem a expressão de determinados comentários que poderiam magoar ao outro são situações que envolvem mentiras que se justificam por razões sentimentais.
Afora estes dois fatores, muitas mentiras socialmente justificáveis são expressas por pressões profissionais. Uma secretaria que é obrigada a afirmar que o chefe se encontra ausente, o médico e a enfermeira que se obrigam a contar mentiras por razões humanitárias e com o objetivo de trazer um pouco mais de conforto ao paciente, o político por pressões partidárias ou eleitorais ou o professor por razões pedagógicas – e às vezes não tão pedagógicas assim – , todas essas situações profissionais comportam com uma certa freqüência a possibilidade da emissão de algumas pequenas mentiras.
Ora, na medida em que assumimos que a mentira encontra-se sempre presente na vida social, temos que sustentar a hipótese de que somos relativamente hábeis na arte de detectá-las. Verdade ? As coisas não parecem ser tão simples assim. Em primeiro lugar, resultados empíricos sugerem que os humanos detectam a acurácia de um interlocutor em uma proporção um pouco acima do que seria esperado por acaso. E mesmo assim, a detecção da mentira oscila entre 35 a 40%, enquanto a da verdade entre 70 e 80%, sendo estes últimos valores apenas aparentemente altos, pois de modo geral os percebedores geralmente afirmam que o interlocutor está falando a verdade, o que justifica esses resultados tão disparatados.
Esses resultados pobres na identificação da acurácia não impedem as pessoas de acreditarem que são capazes de identificar a mentira. Isto é perfeitamente explicável, desde que admitamos que dispomos de uma série de indicadores que nos permitem determinar se alguém está mentindo. Alguns desses indicadores envolvem componentes gestuais, tais como a postura, o olhar, os gestos com as mãos e com o corpo; outros indicadores incluem elementos não-verbais da fala, tais como pausas, gagueira e hesitações; e, por fim, dispomos de indicadores verbais, tais como a extensão da fala, a coerência do argumento e a inclusão de informações irrelevantes.
Com um número tão grande de indicadores seria perfeitamente plausível supor que as mentiras poderiam ser facilmente detectáveis, o que, como assinalamos anteriormente, não é verdade. O que dificulta, então, a identificação da mentira ? Um primeiro aspecto que podemos considerar relaciona-se com os nossos limites cognitivos. Considerando a nossa avareza cognitiva, dificilmente conseguiríamos prestar a atenção, ao mesmo tempo, nos diversos indicadores que listamos anteriormente. A nossa capacidade de processar informações possui um limite e tal limite impede que detectemos todos os elementos gestuais, não-verbais e verbais que poderiam identificar a mentira. Ainda que tivéssemos uma capacidade ilimitada de processar todas as informações, o sucesso na identificação da mentira não teria muitas chances de sucesso, se considerarmos a tendência que temos em representar e confiar mais nas informações genéricas, uma vez que muitas vezes a mentira se encontra nos detalhes. Um outro aspecto que nos impede de identificar com mais precisão a mentira possui um caráter motivacional. Muitas vezes é preferível que não saibamos a verdade, o que pode gerar um fator de distorção que impede uma percepção acurada do que está acontecendo. Enfim, um outro fator que dificulta a identificação da mentira vincula-se diretamente com o que Gilbert denominou teoria espinoziana das crenças. Nesse caso, o argumento central é o de que tendemos inicialmente a acreditar em tudo o que nos dizem e que apenas ao final, após uma análise apropriada das implicações de todos os argumentos apresentados pelo nosso interlocutor, temos a possibilidade, quando o temos, de refutar aquilo que nos foi dito e inicialmente acreditamos.
Ainda assim, poderíamos supor que alguns atributos do percebedor possam contribuir na identificação da mentira. Um elemento bastante considerado pelo senso comum é o grau de intimidade entre que conta e quem ouve a mentira. A idéiam básica, nesse caso, é a de que se o grau de intimidade entre os dois for alto, o percebedor tenderá a identificar mais facilmente a mentira. A justificativa para tal encontra-se no entendimento de que o maior grau de conhecimento e proximidade forneceria ao percebedor um repertório de rotinas capaz de servir como parâmetro para julgar as ações do outro, o que sem dúvida facilitaria a identificação das situações em que o interlocutor estiver mentindo. Ao contrário dessa suposição, evidências empíricas parecem apontar para uma direção oposta, encaminhando-se no sentido de sugerir que a intimidade dificulta a identificação da mentira. Tais argumentos estão assentados em duas idéias básicas: a primeira delas, sustenta que o conhecimento e a familiaridade impõem uma percepção marcantemente enviesada do interlocutor, levando o percebedor a confiar muito mais no conhecimento prévio disponível sobre o seu interlocutor, o que poderia levar a uma interpretação distorcida das evidências presentes na situação; a segunda suposição envolve o problema do grau de confiança entre o percebedor e aquele que mente, sugerindo que quanto maior for o grau de confiança do percebedor no interlocutor , algo inerente à condição de intimidade, maior será a tendência a desconsiderar os indicadores de mentira.
E se o percebedor suspeitar que o seu interlocutor estiver mentindo, especialmente se ele for uma pessoa profissionalmente treinada na arte de identificar a mentira ? Estudos empíricos indicam que a suspeita pouco acrescenta no grau de acurácia da identificação da mentira, especialmente porque não é incomum que uma pessoa injustamente acusada de estar mentindo passe a apresentar padrões de comportamento bastante semelhante àquelas que estão mentindo. E o mais importante, o treino também parece contribuir muito pouco, a se considerar dados obtidos na literatura que sugerem que profissionais habilitados para lidar com situações que envolvem mentira, tais como procuradores, juízes, inspetores alfandegários ou policiais, não mostram uma performance acima da média de uma pessoa sem qualquer treina especial para a identificação da mentira. A única categoria profissional que obteve resultados acima da média foi a dos agentes secretos e, mesmo nesse caso, apenas quando avaliavam se uma única pessoa submetida a interrogatório estava mentindo naquela circunstância particular, sem que pudessem obter um resultado semelhante quando tinham que avaliar se várias pessoas estavam mentindo ou não.
Afora essas características do percebedor, podemos apontar alguns elementos característicos daquele que mente e que tem sido objeto de interesse dos estudos psicossociais sobre a mentira. Uma questão importante diz respeito à faixa etária de quem mente. Quem mente mais, adultos ou crianças ? As pessoas crêem que os adultos mentem mais, não só pela natureza mais complexa das situações em que estão envolvidos, como também porque dispõem de esquemas cognitivos mais sofisticados que os tornam mais habilitados a desenvolverem argumentos ficcionais plausíveis. Não que a criança seja vista como imune a mentiras. Apenas as mentiras infantis são vistas como qualitativamente diferentes daquelas contadas pelos adultos, sendo interpretadas prioritariamente como fantasias inocentes – ou não tão inocentes assim – construídas pela mente infantil.
Uma outra questão importante é a do gênero: quem mente mais, o homem ou a mulher ? Os indicadores que dispomos parecem indicar que não são encontradas diferenças significativas a respeito da quantidade de mentiras contadas por homens e mulheres. De uma forma compatível com o que seria previsto pela teoria da identidade social, temos evidências que os homens crêem – ou afirmam crer – que as mulheres mentem mais, enquanto as mulheres sustentam que os homens mentem mais.
Afora esta questão do gênero e da faixa etária, as pessoas não indicam uma diferença significativa na quantidade de mentiras contadas por aqueles a quem conhecem quando comparados com pessoas desconhecidas. Ainda assim, temos indicadores que elas tendem, nesse caso, a suspeitar mais das pessoas conhecidas que das pessoas desconhecidas.
Existiria, então, alguma forma de reduzir a incerteza numa situação em que suspeitamos que alguém está mentindo ? Algumas estratégias podem ajudar, embora nenhuma delas ofereça qualquer garantia de total acurácia. Uma delas é um tipo de estratégia que pode ser definida de interativa. Nesse caso, o percebedor acerca-se daquele a quem ele suspeita, conduzindo uma série de indagações, tentando identificar possíveis contradições na argumentação apresentada pelo suspeito. Essa estratégia é certamente invasiva e as conseqüências podem não ser exatamente as mais agradáveis para o percebedor.
Afora desta modalidade, dispomos de estratégias não-interativas, uma ativa e uma outra passiva. No caso da estratégia ativa o percebedor indaga a várias outras pessoas que conhecem o suspeito, investigando assuntos não diretamente relacionados com o assunto da mentira e com base nessas respostas procura inferir se essas pessoas a quem ele indagou sugerem que o suspeito costuma mentir. Este tipo de estratégia também pode ser considerada invasiva, com o agravante de expor de forma bastante ostensiva a pessoa que está conduzindo a investigação.
A estratégia passiva consiste em observar o suspeito interagir com outras pessoas e com base nas pistas e indícios que ele oferecer inferir em que medida ela pode estar mentindo e quais são os principais que permitem inferir quando e em que circunstâncias ele costuma mentir.
O que podemos concluir, então, sobre a mentira e o mentir ? Em primeiro lugar, não temos nenhuma razão fundamentada que nos permita suspeitar que uma pessoa que está mentindo se comporte de forma muito diferente daquela que está falando a verdade. Certamente esta afirmação deve ser cuidadosamente considerada, pois contar uma mentira exige uma maior ativação cognitiva, um maior desgaste emocional e um auto-monitoramento mais intenso, o que poderia diminuir as instâncias de controle consciente, permitindo o afloramento de muitos indicadores que acirrariam a suspeita sobre aquele que mente.
Uma segunda conclusão é que geralmente procuramos identificar quem está mentindo a partir da utilização de pistas inadequadas. Realizar inferências sobre se alguém está mentindo com base na análise da consistência lógica do suspeito poderia ser uma boa alternativa se as pessoas costumeiramente desenvolvessem de forma lógica os argumentos que sustentam, o que não parecer ser o caso a se considerar as inumeráveis heurísticas ou atalhos mentais utilizados cotidianamente. Um outro elemento que dificulta a identificação da mentira relaciona-se com o uso freqüente de pistas baseadas na categoria social a qual o suspeito pertence, o que favorece ao uso de estereótipos, julgando ao suspeito pela vinculação da categoria a qual ele pertence e não pelos seus atributos e qualidades individuais.
Uma terceira conclusão relaciona com a dificuldade em se obter feedbacks nas situações em que a mentira está presente. Raramente alguém nos indica se descobrimos a verdade ou não do que ele ou ela falou e esta falta de treino certamente intensifica a incerteza sobre se de fato detectamos se alguém falou ou não a verdade.
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Resenha: Os Flintstones e o preconceito na escola
Aline Costa
Intolerância ao diferente. Em suma, essa frase traduz todas as páginas do artigo de Tânia Maria Baibich sobre o preconceito na escola. Tomando como exemplo o nefasto 11 de setembro, dia em que ocorreu uma tragédia representativa – que tinha como pano de fundo o horror ao diferente – Baibich utiliza a atitude de um personagem de desenho animado, o Fred Flintstone, que “varre a sujeira para debaixo do tapete” para fazer analogias às práticas adotadas contra o preconceito no ambiente escolar. Nesse sentido, ela aponta uma característica peculiar do nosso país que é a manutenção de práticas preconceituosas por meio do agravamento do silêncio que pesa em favor do preconceito.
Diante dessa perspectiva o presente artigo nos leva a considerar que o contexto de discriminação e preconceito no cenário nacional revela questões extremamente delicadas e de difícil solução. Se se procura determinar as causas que levam a manifestação do preconceito e as estratégias que podem ser utilizadas para sua posterior diluição no intuito de construir uma sociedade cujas relações sejam mais saudáveis, é lamentável afirmar que tais atitudes não devem ser consideradas pertinentes, quiçá eficazes quando se busca minimizar as imagens negativas vinculada aos grupos-alvo.
Essa impossibilidade se deve ao fato de que, no Brasil, intolerância ao diferente é pautada na crença de que não há intolerância e o que ocorre comumente é um aparente tratamento cordial para com os membros discriminados. Ora, como estabelecer as bases para a dissolução de comportamentos discriminatórios e crenças preconceituosas se essa postura é, invariavelmente, atribuída ao outro. Deve-se concluir então que a falsa ideologia de que vivemos num país em que as diferenças são aceitas e valorizadas só problematiza a questão, pois nenhuma regra, nenhuma lei, nenhuma intervenção fará sentido enquanto for direcionada para o inexistente.
Apesar das evidências cotidianas, das pesquisas acadêmicas e dos notórios dados estatísticos, o país considera-se livre de preconceitos e trata a situação como se ela não se constituísse um problema. Ao acreditar no mito da mestiçagem, a escola – condição privilegiada de transmissão de cultura – funciona como um laboratório para o crescimento e manutenção do processo de exclusão do diferente.
Nesse sentido, Tânia Maria esclarece que as diferenças culturais constituem a maior parte dos motivos da alteridade. A relação claramente hierarquizada entre os grupos se pauta nos pressupostos de identidade, cujo termo expressa tudo aquilo que se é, e de diferença que encerra tudo aquilo que o outro é. A disputa pela identidade reflete uma disputa por recursos simbólicos e materiais da sociedade. Deste modo, há de se constatar que identidade e diferença mantêm estreita conexão com as relações de poder, pois o grupo que detém o poder exibe marcas de sua presença, tais como, incluir/excluir, demarcar fronteiras, classificar, normalizar.
Nessa perspectiva, a busca pela aquisição dos recursos simbólicos tão fundamentais, faz com que o outro, o diferente, o anormal, aja no sentido de negar a si mesmo e governar suas vidas a partir das imposições dos grupos detentores do poder. Essa dinâmica perpetua-se a partir do momento em que o grupo dominante impõe as crenças e valores que deverão ser considerados como normais, saudáveis, aceitos, incluindo no raio do diferente todas as posturas, comportamentos e valores distintivos do seu próprio grupo.
Depois de uma breve explicação sobre as conseqüências do processo de estereotipização, que traz em seu bojo comportamentos preconceituosos e discriminatórios, o artigo expõe seu propósito prioritário: o preconceito na escola. Não sei se proposital, mas o fato é que, antes de falar do ambiente escolar Baibich traz algumas considerações psicanalíticas que atribui a origem do preconceito aos processos estritamente individuais da psique humana.
Nesses termos, a escola não seria protagonista da barbárie, na pior das hipóteses ela seria talvez responsável por manter ou até maximizar práticas preconceituosas, nunca as produzir. Visto assim pela ordem das influências, o ambiente escolar aparece como peça fundamental, pois ajudaria a minimizar ou diluir as atitudes negativas inerentes aos processos intergrupais.
O que corroborou esse meu ponto de vista de que a ordem dos argumentos tenha sido proposital foi o fato de Baibich colocar, logo após as considerações psicanalíticas, o processo educacional com um “salvador da pátria”. Em seu estudo, ela procurou investigar práticas acadêmicas que impediam a construção de uma escola ideal. As análises desse estudo enfatizam uma urgente reflexão pelo corpo docente sobre seus métodos de ensino e arcabouço teórico até então construído além de uma reavaliação sobre a interação professor-aluno, onde o aprendizado ideal se daria reciprocamente. Num tempo no qual a família já não cumpre mais papéis até então de sua responsabilidade, a escola toma para si o dever de cuidar de questões relevantes como alteridade e autonomia.
O estudo feito em uma escola publica do Paraná, reconhecida pela comunidade como claramente politizada que estimulava o pensamento crítico e a construção de uma identidade autônoma, revelou que grande parte dos membros do corpo docente da escola, apesar de detectar a existência de atitudes preconceituosas em sua comunidade, não conseguia enxergar esse comportamento no ambiente escolar em que trabalhavam, responsabilizando a existência do preconceito ao outro.
Para aqueles que acreditavam existir comportamentos preconceituosos no ambiente escolar foi pedido que eles revelassem algumas medidas que eram tomadas no intuito de diluir essas práticas. As respostas indicaram que eles preferiam agir de maneira indireta, pois ao falar diretamente “o problema aparecia”. Vê-se então que não só o preconceito é velado, mas também as formas de intervenção. Mesmo existindo uma clara noção de que a escola tem a intenção de trabalhar a questão do preconceito, há também a concepção de que o que ocorre é mais no sentido de apaziguamento do conflito do que de modificação.
Enfim, o que o artigo de Tânia Maria Baibich propõe é uma transformação a partir de outra transformação: a do ambiente escolar. Em síntese, o que ela declara em alto e bom som é que, ao contrário de manter o histórico de perversidade que reproduz práticas pedagógicas inválidas, a escola deveria subverter a ordem consolidada secularmente em prol de relações intergrupais cada vez mais saudáveis.
Referência: Baibich, T. Os Flintstones e o preconceito na escola. Educar, 19, 2, 111-129, 2002