Resenha: Os Flintstones e o preconceito na escola

Aline Costa

Intolerância ao diferente. Em suma, essa frase traduz todas as páginas do artigo de Tânia Maria Baibich sobre o preconceito na escola. Tomando como exemplo o nefasto 11 de setembro, dia em que ocorreu uma tragédia representativa – que tinha como pano de fundo o horror ao diferente – Baibich utiliza a atitude de um personagem de desenho animado, o Fred Flintstone, que “varre a sujeira para debaixo do tapete” para fazer analogias às práticas adotadas contra o preconceito no ambiente escolar. Nesse sentido, ela aponta uma característica peculiar do nosso país que é a manutenção de práticas preconceituosas por meio do agravamento do silêncio que pesa em favor do preconceito.
Diante dessa perspectiva o presente artigo nos leva a considerar que o contexto de discriminação e preconceito no cenário nacional revela questões extremamente delicadas e de difícil solução. Se se procura determinar as causas que levam a manifestação do preconceito e as estratégias que podem ser utilizadas para sua posterior diluição no intuito de construir uma sociedade cujas relações sejam mais saudáveis, é lamentável afirmar que tais atitudes não devem ser consideradas pertinentes, quiçá eficazes quando se busca minimizar as imagens negativas vinculada aos grupos-alvo.
Essa impossibilidade se deve ao fato de que, no Brasil, intolerância ao diferente é pautada na crença de que não há intolerância e o que ocorre comumente é um aparente tratamento cordial para com os membros discriminados. Ora, como estabelecer as bases para a dissolução de comportamentos discriminatórios e crenças preconceituosas se essa postura é, invariavelmente, atribuída ao outro. Deve-se concluir então que a falsa ideologia de que vivemos num país em que as diferenças são aceitas e valorizadas só problematiza a questão, pois nenhuma regra, nenhuma lei, nenhuma intervenção fará sentido enquanto for direcionada para o inexistente.
Apesar das evidências cotidianas, das pesquisas acadêmicas e dos notórios dados estatísticos, o país considera-se livre de preconceitos e trata a situação como se ela não se constituísse um problema. Ao acreditar no mito da mestiçagem, a escola – condição privilegiada de transmissão de cultura – funciona como um laboratório para o crescimento e manutenção do processo de exclusão do diferente.
Nesse sentido, Tânia Maria esclarece que as diferenças culturais constituem a maior parte dos motivos da alteridade. A relação claramente hierarquizada entre os grupos se pauta nos pressupostos de identidade, cujo termo expressa tudo aquilo que se é, e de diferença que encerra tudo aquilo que o outro é. A disputa pela identidade reflete uma disputa por recursos simbólicos e materiais da sociedade. Deste modo, há de se constatar que identidade e diferença mantêm estreita conexão com as relações de poder, pois o grupo que detém o poder exibe marcas de sua presença, tais como, incluir/excluir, demarcar fronteiras, classificar, normalizar.
Nessa perspectiva, a busca pela aquisição dos recursos simbólicos tão fundamentais, faz com que o outro, o diferente, o anormal, aja no sentido de negar a si mesmo e governar suas vidas a partir das imposições dos grupos detentores do poder. Essa dinâmica perpetua-se a partir do momento em que o grupo dominante impõe as crenças e valores que deverão ser considerados como normais, saudáveis, aceitos, incluindo no raio do diferente todas as posturas, comportamentos e valores distintivos do seu próprio grupo.
Depois de uma breve explicação sobre as conseqüências do processo de estereotipização, que traz em seu bojo comportamentos preconceituosos e discriminatórios, o artigo expõe seu propósito prioritário: o preconceito na escola. Não sei se proposital, mas o fato é que, antes de falar do ambiente escolar Baibich traz algumas considerações psicanalíticas que atribui a origem do preconceito aos processos estritamente individuais da psique humana.
Nesses termos, a escola não seria protagonista da barbárie, na pior das hipóteses ela seria talvez responsável por manter ou até maximizar práticas preconceituosas, nunca as produzir. Visto assim pela ordem das influências, o ambiente escolar aparece como peça fundamental, pois ajudaria a minimizar ou diluir as atitudes negativas inerentes aos processos intergrupais.
O que corroborou esse meu ponto de vista de que a ordem dos argumentos tenha sido proposital foi o fato de Baibich colocar, logo após as considerações psicanalíticas, o processo educacional com um “salvador da pátria”. Em seu estudo, ela procurou investigar práticas acadêmicas que impediam a construção de uma escola ideal. As análises desse estudo enfatizam uma urgente reflexão pelo corpo docente sobre seus métodos de ensino e arcabouço teórico até então construído além de uma reavaliação sobre a interação professor-aluno, onde o aprendizado ideal se daria reciprocamente. Num tempo no qual a família já não cumpre mais papéis até então de sua responsabilidade, a escola toma para si o dever de cuidar de questões relevantes como alteridade e autonomia.
O estudo feito em uma escola publica do Paraná, reconhecida pela comunidade como claramente politizada que estimulava o pensamento crítico e a construção de uma identidade autônoma, revelou que grande parte dos membros do corpo docente da escola, apesar de detectar a existência de atitudes preconceituosas em sua comunidade, não conseguia enxergar esse comportamento no ambiente escolar em que trabalhavam, responsabilizando a existência do preconceito ao outro.
Para aqueles que acreditavam existir comportamentos preconceituosos no ambiente escolar foi pedido que eles revelassem algumas medidas que eram tomadas no intuito de diluir essas práticas. As respostas indicaram que eles preferiam agir de maneira indireta, pois ao falar diretamente “o problema aparecia”. Vê-se então que não só o preconceito é velado, mas também as formas de intervenção. Mesmo existindo uma clara noção de que a escola tem a intenção de trabalhar a questão do preconceito, há também a concepção de que o que ocorre é mais no sentido de apaziguamento do conflito do que de modificação.
Enfim, o que o artigo de Tânia Maria Baibich propõe é uma transformação a partir de outra transformação: a do ambiente escolar. Em síntese, o que ela declara em alto e bom som é que, ao contrário de manter o histórico de perversidade que reproduz práticas pedagógicas inválidas, a escola deveria subverter a ordem consolidada secularmente em prol de relações intergrupais cada vez mais saudáveis.

Referência: Baibich, T. Os Flintstones e o preconceito na escola. Educar, 19, 2, 111-129, 2002

Autor: Marcos E. Pereira

Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal da Bahia. O currículo Lattes pode ser acessado no site http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4799492A6

4 comentários em “Resenha: Os Flintstones e o preconceito na escola”

  1. “As respostas indicaram que eles preferiam agir de maneira indireta, pois ao falar diretamente ‘o problema aparecia’.”

    Essa questão é bem interessante. Inclusive, é possível fazer um link com o artigo de Bernardes (que fiz a resenha) que coloca que muitas vezes a tentativa de suprimir o preconceito pode trazer efeitos indesejados, que acabam, num outro momento, potencializando a expressão do preconceito. Tomando essa premissa como verdadeira, pode-se reconsiderar a crítica feita aos professores que optam por estratégias de intervenção mais indiretas.

    Curtir

  2. Vale ressaltar Carol que os professores dessa escola se consideravam livres de práticas dessa natureza, que propagavam idéias igualitárias, com aprofundamento político, crítico. A escola onde foi feito o estudo era considerada modelo, provedora de valores e de um pensamento reflexivo. Tal comportamento podia ser notado não apenas entre professores e alunos mas também entre os funcionários da escola. Infelizmente, o artigo me levou a pensar que a produção e propagação de um pensamento consistente, racional, igualitário, reflexivo não foram suficientes para desfazer o incômodo que é falar sobre o preconceito de si mesmo e dos outros.

    Curtir

  3. Achei interessante a questão da imposição de crenças e valores também no ambiente da escola. Trata-se de uma situação bastante problemática, onde se põe em xeque a posição do outro, do supostamente “anormal”. A seguinte música demonstra o que parece acontecer com a raça negra diante da história, ou melhor dizendo, da versão histórica à luz da visão dominante. “Nossa memória foi contada por vocês e é dita verdadeira como a própria lei. Por isso vemos espalhados por toda história uma mísera parte de nossas vitórias” Isso se torna ainda mais complicado quando se fala de crianças, que ainda estão em processo de construção de identidade e faz questionar o papel da escola enquanto ambiente de “formação”. Cabe à escola tirar de debaixo do tapete os preconceitos, buscando sempre uma posição em prol da alteridade e da autonomia.

    Curtir

  4. Acho que este tipo de pesquisa procura vislumbra mecanismo encoberto. E querem trazer sansões para um mecanismo que não se manifesta em forma de discriminação explicita. Além disso, não aponta soluções. Simplesmente procura problemas. Será que há alguma etnia que não possui preconceitos? Como ocorreram e como deixou de ocorrer? Como fugiremos das generalizações positivas e negativas? O silencio não é o caminho? Mudar os estereótipos também não, porque, pode ocorrer o efeito ricochete? Como lidar como fenômenos probabilísticos?

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: