Valter da Mata
O presente artigo procura evidenciar a importância do ambiente escolar no processo de construção das identidades pessoal e social dos indivíduos negros. Destaca o papel privilegiado onde encontram-se o corpo e o cabelo negro, que podem assumir um lugar especial na reprodução de estereótipos ou ainda ressignificação cultural.
Por ser um trabalho de caráter antropológico, a autora não utiliza os referenciais teóricos clássicos da psicologia, embora utilize de dimensões de grande tradição na psicologia como a identidade e os estereótipos. O estudo mostra-se extremamente oportuno uma vez que a Lei 10.639/2003 tornou obrigatória a inclusão dos conteúdos da cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares. A questão racial brasileira ainda está longe de ser tratada com a importância devida, embora ultimamente venha aos poucos, sendo incluída no ambiente acadêmico.
No processo de construção da identidade da identidade, a escola assume um lugar de destaque, porque muito provavelmente será o primeiro ambiente no qual ocorrerá o encontro onde a criança negra poderá pensar em termos de “nós” – familiares e vizinhos enquanto negros e ou “outros” – alguns colegas e professores enquanto brancos.
A autora coloca que a relação que a relação que o negro tem em relação ao seu corpo e seu cabelo é recheado de significados, remetendo-o a uma experiência subjetiva que não raramente está associada a sentimentos de inferioridade e baixa auto-estima.
Nesse processo de construção de identidade, a autora afirma que “o corpo fala a respeito do nosso estar no mundo, pois a nossa localização na sociedade dá-se pela sua mediação no espaço e no tempo”. A questão é que o corpo negro encontra-se ainda aprisionado à escravidão e essa diferença cromática é muitas vezes utilizada como argumento para justificar a colonização e explicar e naturalizar diferenças econômicas.
Na escola, a exposição do corpo negro é contextualizada de modo a reproduzir a estrutura hierárquica existente na nossa sociedade, ou seja, todos os símbolos de negritude serão necessariamente associados a qualificações depreciativas.
A autora se detém na experiência subjetiva experimentada por mulheres negras jovens e adultas que freqüentam salões de beleza étnicos, procurando os diversos sentidos dessas experiências, procurando descobrir através de entrevistas, como essas mulheres significam as experiências decorrentes do processo de ter esse cabelo negro e o corpo negro. Ressalta que os problemas com o cabelo se iniciam na mais tenra infância, onde são submetidas a dolorosos penteados em forma de trança, passando depois a sofisticados processos de relaxamento e alisamento capilar. Os depoimentos destacados pelo artigo ilustram os sentimentos dessas mulheres a respeito de como esse elemento – cabelo – foi importante na construção da sua identidade.
Ser negro no Brasil deixa o indivíduo vulnerável a possíveis situações de discriminação e a reação dos indivíduos a essas situações irá variar de indivíduo para indivíduo, estando intimamente ligada a construção da sua identidade pessoal e social, as suas experiências de socialização e de informação. É comum se avaliar essas reações como mais politizadas ou menos politizadas, mais corretas ou menos corretas. Isso se deve principalmente porque no Brasil, as relações raciais se dão em torno do fenótipo, podendo as pessoas ser categorizadas como mais negros ou menos negros, quando são avaliados seus traços físicos, assim como se apresentam esteticamente.
O artigo procura destacar a construção da questão racial na subjetividade e no cotidiano dos indivíduos, além do peso da educação escolar nesse processo. As entrevistas mostram discursos ambivalentes e também situações tensas vividas pelas respondentes em relação ao uso do cabelo. O uso desse cabelo pode revelar a trajetória da vida de uma pessoa, sua condição de resistência e o movimento vivido no interior de um grupo social. Exemplifica que não raramente, cabelos cortados ou raspados estão associados a ritos de passagem, como aprovação no vestibular ou ainda entrada em instituições totais como presídios e conventos, podendo estar simbolicamente relacionados com a castração. Por outro lado a cabeleira solta e rebelde pode expressar rebeldia e independência e ainda relutância às normas sociais.
Esse artigo permite uma problematizarão acerca dos múltiplos significados que o corpo e o cabelo podem assumir no processo de construção da identidade, especialmente nos indivíduos negros. Reflete também a importância que a escola assume nesse processo, quanto a Possi biliar a construção de uma identidade positivamente afirmada ou permanecer tão somente como um espaço reprodutor de uma ordem vigente, ratificando crenças estereotipadas a respeito desse grupo social.
Fonte: Gomes, N.L. (2000), Trajetórias Escolares, Corpo Negro e Cabelo Crespo: Reprodução de Estereótipos ou Ressignificação Cultural? Revista Brasileira de Educação, Set-Dez, nº 21, São Paulo, Brasil, pp. 40-51