Um dia na Broadway

Autores: Leilane Gama, Manuela Sá, Marília Carneiro, Ueslei Solaterrar

Por que as pessoas filiam-se às outras? Que fatores são levados em consideração na escolha de um grupo já que cada um possui a sua dinâmica própria numa diversidade tão marcante? E mais ainda, o que mantém esse mesmo grupo coeso e bem estruturado? É com base nessas indagações que fomos levados a selecionar um grupo no qual pudéssemos esclarecer melhor algumas dessas questões e explorar de forma mais direta o universo das significações grupais. Como bem sabemos não há como vivermos em sociedade sem estarmos inseridos em alguns grupos, sem estarmos em contato constante com outras pessoas, o que se traduz numa infinidade de grupos existentes inviabilizando assim um consenso acerca de uma definição para o mesmo. Entretanto, diariamente as pessoas elaboram teorias implícitas sobre o significado das ações dos diferentes tipos de grupos no meio social, estes que são entes autônomos e não se confundem com os indivíduos que os constitui. Dentre as acepções mais comumente estudadas merece destaque: equipe, turma, galera, patota, gangue, bando, corja, etc. A nossa análise será direcionado para uma equipe, já que o grupo que escolhemos faz parte dessa categoria.

A Equipe

Acima está a foto da equipe que escolhemos: um grupo de dança e canto profissional entitulado On Broadway que apresentam musicais na cidade de Salvador-Ba. Trata-se de uma equipe com objetivos bem definidos e tarefas bem delimitadas pelo fato de exercerem uma atividade profissional e com fins lucrativos, o que o reveste de uma maior responsabilidade e organização na execução das tarefas. Por esse motivo o grau de entitatividade do mesmo é um pouco menor, se comparado com um grupo de intimidade, no qual a família representa o valor mais alto, ainda que apresente um alto nível de interação entre os seus membros. O grupo completo é de pequeno porte inclusive se comparado com outros grupos de dança, e na realidade a equipe se divide frequentemente para se adequar ao porte das coreografias e apresentações requisitadas pelos clientes. Ou seja, é natural que nem todos os componentes se apresentem em todos os shows, e isso varia com a disponibilidade dos artistas e com o pedido dos contratantes. Diferentemente de outros grupos em que afinidade com os integrantes já estabelecidos são suficientes para se inserir como um novo membro, para pertencer a Cia On Broadway, é preciso “arrasar” na audição. A equipe inicial de oito anos atrás não é a mesma que se tem atualmente, notando-se aqui um certo grau de permeabilidade, já que o acesso ao mesmo é permitido em épocas estabelecidas pela direção do grupo, quando há necessidade de acréscimo de componentes para, por exemplo, a preparação de determinado evento ou festival de porte maior que o usual. Na prática, este ingresso se dá pela realização de uma audição coordenada pela mentora da equipe, Juliana De-Vecchi. Nessa seleção a também diretora avaliará as habilidades de dança e canto do candidato, verificando se o seu rendimento é suficiente e satisfatório para o nível e proposta do grupo e ainda se há encaixe de perfil do candidato com o perfil procurado para determinado papel, se for o caso. Nessa foto em específico, Juliana marca sua presença rodeada pelo grupo. Segundo os membros da equipe, o papel dela é fundamental não só na orientação e no ensino, mas também no apoio dado a equipe. Por ser a idealizadora desse projeto, ela desempenha um papel fundamental na construção da identidade real e simbólica do próprio grupo, já que montou uma equipe pioneira em reprodução de coreografias musicais famosas da companhia americana Broadway como Cats, Hairspray, O Rei Leão e Chicago. Esse trabalho é feito com originalidade, ainda que seja eventualmente alvo de algumas críticas por parte daqueles que não aceitam essa “cultura americana dos musicais”. Mas, na verdade, a responsabilidade de Juliana parece ter passado a mensagem clara a sua equipe de que toda arte é passível de ser criticada, de forma que esse tipo de comentário não os desestrutura, mas lhes dá mais um estímulo para a busca da perfeição, tão sonhada numa apresentação.

Não basta sonhar

Não basta sonhar com a inatingível perfeição, é preciso muita dedicação e esforço para se obter um resultado satisfatório. A equipe comparece a aulas de duas a três vezes por semana – depender da proximidade de um show ou da quantidade de ajustes a serem feitos -, em sede fixa no bairro da Pituba, as quais se dividem em basicamente duas partes: na primeira são aprendidas e exercitadas técnicas de dança de jazz americanizado ou ainda contam com aulas de canto; na segunda parte, os repasses e ensaios de coreografias são realizados com afinco. Foi justamente por esse motivo, que a equipe não hesitou em escolher uma foto de ensaio enquanto representativa do grupo, devido a importância que os sucessivos têm para a construção de um trabalho integrado que será ilustrado pela coreografia final. A foto em questão é na verdade de um ensaio geral da apresentação mais recente do grupo até a presente data em um eco resort no Litoral Norte. O ensaio geral é um ritual comum nas companhias de dança e representa a última oportunidade de se rever e consertar aquilo que porventura ainda não esteja muito bem amarrado. É nesse momento que se repassa a sequência de passos, se ouve os últimos comentários da diretora do espetáculo e fazer os últimos ajustes é de fundamental importância para um desempenho satisfatório. Nota-se nesse momento a uniformização proposital da cor da vestimenta dos bailarinos de forma que fique possível destacá-los, dando importância a impressão visual do grupo, para que se mostrem uma equipe organizada, comprometida e coesa. Aqui ficou evidente a autopercepção que o grupo tem de si mesmo e a inevitável comparação com grupos externos, numa relação em que se busca sempre a valorização máxima do endogrupo em detrimento do exogrupo.

Entrando na personagem

Medo de errar, de esquecer, de cair uma peça do figurino, de esbarrar no colega, de tropeçar. Nada disso é empecilho suficiente para paralisar artistas de verdade. Na realidade, toda essa tensão é necessária para o bom desempenho da equipe e pode ser direcionada para dar confiança ao grupo. Essa foto registra momentos antes da apresentação, no qual se tenta criar situações de descontração, seja durante o alongamento, seja nas brincadeiras e nas fotos tiradas para registro pessoal. Para cada apresentação existe um tema pré-estabelecido e que precisa ser posto em movimento através da incorporação de diferentes personagens e papéis, o que exige muita sincronia da equipe para que o objetivo final seja alcançado. Nesse momento espera-se que os artistas se apropriem de gestos e formas de se comportar completamente novos e, muitas vezes, diferentes do repertório comportamental a que estão acostumados. Essa capacidade mutacional é essencial no artista, já que a expressão momentânea da identidade de uma personagem pode não ser compatível com a personalidade do intérprete. Esse processo se dá de forma gradual, ao longo dos ensaios e mais intensamente no dia da apresentação, representando um momento de muito simbolismo para cada integrante.

Aplausos

O artista não se sustenta meramente de remuneração econômica, a ele se faz necessário o tradicional aplauso como legitimação de seu esforço e ainda como parabenização pela realização de um trabalho bem feito. Nessa foto em questão, os aplausos vieram imprimidos no jornal da empresa que contratou o grupo e por isso representou o reconhecimento do trabalho realizado por eles, na medida em que veiculou uma imagem positiva do grupo, exaltando a satisfação do contratante. Na fala dos próprios integrantes do grupo podemos perceber que a foto teve um significado especial para eles por representar a possibilidade de uma maior visibilidade dentro da cidade, buscando um espaço para este tipo de arte que não faz parte da cultura soteropolitana, mas que tem a sua beleza e valor. O relato dos membros do grupo demonstra não só a satisfação deles enquanto pertencentes a uma entidade, mas também enquanto indivíduos que agiram sozinhos na teia grupal e puderam ter esse esforço individual legitimado. A nota exibida nesse jornal mostra-se como fonte de estímulo para o prosseguimento do trabalho, tendo em vista que não se trata de um grupo muito reconhecido na cidade de Salvador, fortalecendo assim a sua identidade social, com o acolhimento ideal e merecido das suas paixões e sustento: a arte, o canto, a dança.

O Palco ?

O palco representa um ambiente fundamental para qualquer bailarino e não seria diferente para essa equipe, contudo o palco retratado na seguinte foto tem um simbolismo especial, pois não era convencional, trata-se de um circuito de hipismo com todas as suas singularidades e contratempos. É nesse local onde todo o trabalho do artista vai culminar, é onde os ensaios farão sentido, onde os desentendimentos usualmente se dissolverão, por funcionar como elemento agregador e, através do qual, o conhecimento e o reconhecimento do público têm possibilidade de emergir. É nele onde, enfim, “tudo acontece”. Assim como os personagens e os diferentes papéis que são assumidos a cada novo espetáculo pelo grupo, o palco também passa por esse processo de modificação constante, em que a cada nova realidade impressa é necessária uma nova adaptação, tanto dos membros da equipe ao novo espaço físico, quanto da estrutura e formato das coreografias que precisam ser adequadas ao ambiente novo. Fato este que é tido como positivo para a equipe por possibilitar uma heterogeneidade muito grande de experiências e situações, as quais servem para enriquecê-los e amadurecê-los.

A União

O bom relacionamento do grupo é latente, como fica claro pela foto, que demonstra que mesmo com todas as adversidades inerentes a cada local de apresentação, como as que ocorreram nessa apresentação em específico: sol forte, um longo tempo de espera para o começo do espetáculo, as dificuldades de marcação de passos num “palco” tão aberto tendo que ser utilizados objetos não usuais como pilastras, refletores, etc., os integrantes da equipe ainda assim se mantém unidos e com um sentimento de grupo que transpassa, muitas vezes, os incômodos individuais momentâneos. Essa união serve como sustentação para os dilemas inerentes a todo grupo voltado para uma tarefa, como os de dificuldade com o espaço físico, com a adaptação a novos ambientes e, principalmente, a conciliação entre a necessidade de que os seus membros compartilhem um conjunto de atributos comuns e, por outro lado, o respeito à liberdade individual de cada membro, numa díade que precisa ser muito bem balanceada para que os eventuais conflitos não venham a prejudicar o andamento das tarefas. No caso do grupo de musicais On Broadway esse balanceamento parece se dar de forma muito bem acertada, o que tem contribuído para o crescimento e o reconhecimento do grupo.

Palavras Finais

Em se tratando de um grupo profissional foi possível visualizar papeis bem definidos, com a figura da diretora enquanto líder criativa, organizadora e que encabeça ideias para realização e reestruturação de coreografias. A mesma ainda impõe regras de comprometimento para os integrantes desde o início, já que tiveram que se submeter a audição enquanto processo seletivo para aceitação grupal através da aprovação primeira do líder. Percebe-se o desejo de inserção e reconhecimento dessa equipe para ser pertencente a um grupo macro que engloba as questões artísticas culturais de uma cidade que já tem certas tradições arraigadas. Ao mesmo tempo nota-se também o esforço individual que se faz para ser bem conceituado e bem quisto no grupo micro, a fim de garantir a sua permanência no mesmo, fazendo-se ver na sociedade artística visando a manutenção da quantidade de trabalho, necessária para a renda da maioria dos integrantes. O caráter maleável e mutacional dos integrantes é percebido como característica fundamental nos integrantes desse grupo já que se tem que conviver com críticas constantes, ainda que construtivas, e ainda deve-se vestir-se de tantas máscaras, quantas personagens diferentes surgirem como tema. Sorrir diante de tudo isso não é sempre fácil, inclusive com lugares adversos para se apresentarem como acontece diversas vezes, mas o grupo vale-se da afetividade e do apoio ao próximo para se sustentar e seguir buscando o lugar de valorização que querem conquistar em cada espetáculo. Apesar dessa diversidade de espaços sociais ocupados pela equipe, percebe-se que o significado que dão a esses espaços é bem homogêneo, traduzindo-se em espaços sociais nos quais poderão exercer a sua arte e poderão alcançar os tão esperados aplausos. É nesse sentido que ficou um pouco mais claro para nós o motivo dos membros terem se filiado a essa equipe em específico e não a outra qualquer, devido justamente a atratividade e originalidade que a mesma apresenta motivo este que serve de base para manter companhia coesa e muito bem estruturada.

Autor: Marcos E. Pereira

Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal da Bahia. O currículo Lattes pode ser acessado no site http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4799492A6

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