A principal referência de estudo da história dos preconceitos e estereótipos na psicologia social permanece sendo a obra de Duckitt (1992a, 1992b, 2010), da qual adotamos a perspectiva geral que orienta nossas análises no presente capítulo. Duckitt e outros estudiosos da história dos preconceitos acolhem a suposição de que, até o final da segunda década do século XX, o preconceito não era visto como um problema social. Inexistia, portanto, a preocupação em evitar expressá-lo, embora isto não significasse que antes desta época grupos sociais, etnias ou nacionalidades não avaliassem de forma negativa ou convivessem com imagens mentais desqualificadoras dos outros grupos sociais.
Para recensear alguns estereótipos sobre os povos da antiguidade adotamos como referências as obras “A invenção do racismo na Antiguidade” (Isaac, 2004), “Repensando os outros na Antiguidade” (Gruem, 2011) e “A invenção do racismo. Antiguidade e medievo” (Delacampagne, 1995). Para a discussão dos estereótipos na idade média e no início da modernidade, servimo-nos, sobretudo, da edição em português do livro de Bethencourt (2020) que, embora seja dedicado ao estudo do racismo e parta da premissa de que o racismo e os preconceitos sociais devem ser entendidos como fenômenos decorrentes dos projetos políticos dos vários agentes sociais, discute como os estereótipos serviram como um meio de oferecer legitimidade e respaldo a tais projetos ao longo da história. Consideramos estas obras, em conjunto com outras referências distribuídas ao longo desta seção, fundamentais para o estudo da evolução histórica dos estereótipos, preconceitos e racismos.
A palavra preconceito (Brown, 1995), no sentido como a compreendemos hoje, uma antipatia injustificada em relação a algum grupo social, não existia; muito menos o entendimento de que algumas pessoas eram mais preconceituosas do que outras. A noção de estereótipos é ainda mais recente, surgindo apenas no final do século XIX, embora na segunda década do século XX tenha conhecido um deslize de significado cujo resultado permitiu a assunção do sentido ao qual a atribuímos hoje em dia.
A naturalização das relações desiguais não é algo estranho às sociedades humanas se considerarmos que, desde a antiguidade até os nossos dias, a escravidão e o domínio de uns povos sobre outros foram fenômenos recorrentes nos contatos entre os grupos humanos. As relações assentadas em critérios assimétricos eram vistas como absolutamente naturais até o início do século XX, quando se impôs uma certa sensibilidade em relação aos problemas das diferenças entre os indivíduos e os grupos humanos. Dominar, colonizar, escravizar; apenas de algumas décadas para cá estas práticas passaram a ser consideradas abomináveis, injustas e pouco éticas. A tese prevalecente na longa trajetória da humanidade era a de acatar o entendimento de que alguns grupos tinham o direito e, em algumas versões, até mesmo o dever, de conquistar as terras pouco civilizadas e impor suas visões de mundo aos povos dominados. Esta seção do capítulo é dedicada a apresentar, de forma necessariamente breve e esquemática, a evolução histórica de algumas das principais crenças estereotipadas vigentes na atualidade. Para tal, o argumento será desenvolvido com base em um modelo, encontrado na figura 11, no qual estão incluídas as etapas clássicas da periodização histórica, sem descuidar dos desenvolvimentos dos estereótipos a partir do século XX.
Discutiremos, inicialmente, os estereótipos nas sociedades tradicionais e na antiguidade, prosseguindo com as formulações presentes no período medieval até chegarmos à idade moderna. Como bem deve suspeitar o leitor, apresentaremos argumentos essencialmente especulativos e construídos à luz dos conhecimentos disponíveis na atualidade a respeito de como teriam sido as relações entre os diferentes grupos humanos nos distintos períodos da história.
Importa assinalar os três elementos que consideramos decisivos na construção das teorias psicossociais e balizam a nossa narrativa, o que nos levou a acentuar três modalidades de teorias: as assentadas sobre as diferenças individuais, elaboradas sobretudo a partir de argumentos centrados na ideia de descendência; as teorias cuja ênfase recai nos elementos contextuais, particularmente os associados com o impacto do clima e do território nas condutas humanas; e as teorias hierarquizadoras centradas nas análises dos conflitos de poder e das diferenças de status entre os grupos. Segundo a interpretação de Bethencourt (2020), a construção dos relatos sobre o outro exige a atribuição sistemática de significados e o desenvolvimento de interpretações por parte dos percebedores a respeito de uma série de pistas e indicadores visuais, como também depende de teorias elaboradas a partir do senso comum, nas quais são aludidos fatores como os efeitos dos diferentes tipos de ambiente, as características comuns herdadas pelos membros de um grupo e a influência das concepções religiosas na conduta dos indivíduos. No caso dos estereótipos, as pistas visuais se associam basicamente à aparência física, destacando-se elementos inerentes às características fenotípicas (cor da pele, anatomia dos olhos, lábios e narinas, tipo de cabelo, barbas e pilosidades), bem como fatores estritamente associados aos vestuários (roupas, enfeites e acessórios). Estas pistas tendem a ser utilizadas para a elaboração de teorias e articulação entre os elementos perceptuais e as teorias, por sua vez, ajudam o agente a elaborar explicações e justificar as suas condutas em relação aos outros e a si mesmo.
2.3.1. Sociedades tradicionais
Em geral os grupos étnicos atribuem a si um nome cujo significado pode ser traduzido como humano. Os egípcios antigos, por exemplo, denominavam a si mesmos rame, os homens, considerando os demais povos uma massa amorfa. Nestes termos, os outros povos não seriam tão humanos quanto os que assim se autonomeiam, sendo crível supor um claro distanciamento entre o próprio grupo, os autóctones, e o os outros, os estrangeiros. As interpretações sobre este estranhamento em relação ao diferente estariam na base das atitudes negativas em relação aos estrangeiros, bem como explicariam as tensões e desconfianças surgidas nas circunstâncias que as interações entre os grupos se tornassem imperativas.
É cabível especular o quanto estilos de vida diferentes proporcionam percepções negativas relativas aos grupos que acolhem concepções de mundo distintas. Com o surgimento da agricultura e o potencial de mudança representado por esta transição, torna-se possível imaginar o impacto exercido pela adoção de um estilo de vida sedentário e os efeitos dessa decisão na percepção dos residentes destes primeiros aldeamentos agrícolas sobre os grupos nômades que permaneciam apegados aos modelos tradicionais de sobrevivência, centrado nas atividades de coleta e de caça.
Trabalhos desenvolvidos na primeira metade do século XX pelo botânico russo Nokolai Vavilov (1887-1943) permitiram mapear como os humanos domesticaram as plantas. É interessante notar, conforme apresentado por Jones (2019) numa revisão recente, que este movimento ocorreu de forma praticamente concomitante nos vários espaços alcançados pela espécie humana na sua longa difusão através dos continentes. A figura 12 sinaliza os prováveis locais onde surgiram as primeiras culturas agrícolas, espalhando-se por territórios tão distantes entre si como as Américas Central e do Norte (1), do Sul, o Pacífico andino (2) e mais ao sul (3), o Atlântico (4), a África (5), a Europa mediterrânea (6), o Oriente Médio (7), a Península indiana na Ásia (8), a Ásia Central (9) a China e Coreia (10) e as ilhas de Java e a Malásia (11), no Pacífico Sul.
O que determinou, após o final da última era glacial, o estabelecimento destes assentamentos agrícolas? A resposta para esta questão poderia ser resumida em uma palavra, calorias (Jones, 2019). Quais foram as ações humanas passíveis de serem interpretadas como compatíveis com o fomento do consumo calórico? Quais os reflexos destes movimentos numa natureza praticamente virgem? Pelo jeito, parece que não começamos bem, pois um dos primeiros indicadores da ocupação humana sedentária se associou com uma enorme devastação em áreas até então intocadas. A utilização do fogo e as modificações topográficas e orográficas introduzidas por agentes humanos transformaram por completo a superfície de algumas regiões do planeta. A irrigação obrigou a mudança do percurso de alguns rios e a criação de cursos de água artificiais. Um segundo aspecto a ser enfatizado se refere à ação humana de destituir das espécies nativas a liberdade genética, uma expressão da área de estudos da arqueologia vegetal que se refere à impossibilidade de algumas espécies continuarem com o seu fluxo de descendência de forma espontânea, sem a intervenção humana. Entre os vegetais, este efeito foi marcante no caso dos grãos, em especial o trigo, o arroz e o milho. No caso dos animais, a condição dos bovinos é particularmente emblemática, pois dificilmente imaginaríamos, nos dias de hoje, uma manada de bois e vacas a vagar em estado selvagem por um território intocado. Estas transformações, tanto na paisagem quanto no bioma vegetal e animal, não se impuseram sem consequências; foram acompanhadas por uma série de doenças e parasitas que passaram a afetar os vegetais, animais e humanos (Jones, 2019). Uma terceira consequência da expansão humana e das modificações produzidas pela nossa espécie se relaciona diretamente com a mudança da composição da atmosfera, sendo particularmente marcante a mudança nos níveis de dióxido de carbono e metano, cujos efeitos ainda hoje impactam o nosso ecossistema.
A estas transformações na crosta terrestre, na biosfera e na atmosfera se agregaram mudanças de porte nas organizações sociais que se tornaram bem mais complexas. Registros dos primeiros assentamentos agrícolas retroagem há cerca de 9000 anos, tendo sido documentados em locais usualmente situados em vales próximos às bacias hidrográficas como a de Çatal Hüyük na Turquia, a de Jarno, próxima ao rio Tigre na Mesopotâmia, e a de Yangshao, nas imediações do Rio Amarelo, na China. Estes primeiros assentamentos humanos estão na origem das primeiras vilas e cidades, cuja história remonta há cerca de 8.000 anos. Pouco a pouco estes conglomerados alcançam estágios de maior complexidade até o surgimento de um tipo de organização social centrada claramente numa dimensão que podemos qualificar como hierárquica, como identificados nos grandes impérios agrícolas surgidos há cerca de 6000 anos e nas organizações sociais despóticas posteriores.
A previsibilidade dos dias numa aldeia agrícola primitiva em nada se assemelhava com incertezas da atividade forrageira exigida para os grupos nômades, sendo possível supor, desde logo, que entre sedentários e nômades tenha se criado uma série de interpretações pertinentes à vida e às características de uns e outros e, mais do que isso, que estas visões estereotipadas tenham sido marcantes nas prováveis relações de troca estabelecidas entre estes grupos. Podemos presumir, adicionalmente, que alguns destes efeitos tenham sido transmitidos por gerações. A representação dos nômades como contraponto aos civilizados chegou aos autores da antiguidade a se considerar a maneira pela qual os gregos caracterizavam as tribos nômades, tratando-as como gente que não trabalha, não semeia, não come pão, nem mesmo erige estátuas e templos para honrar aos deuses (Isaac, 2013).
2.3.2. Mundo antigo
Ainda que o passado humano se estenda por mais de uma centena de milhares de anos, a história humana é muito curta e se sustenta nos registros escritos. Se as premissas da psicologia histórica sugerem que as mentalidades são determinadas pela ação conjunta da história e da geografia, tanto a época quanto o lugar moldam a nossa percepção de mundo e a maneira pela qual interpretamos a realidade (Parot, 2000; Penna, 1981).
Holoceno é um termo da geologia que se refere a uma era geológica iniciada há aproximadamente dez mil anos (aproximadamente, pois a fase de transição entre o pleistoceno e a etapa inicial do holoceno ocorre entre 10.000 e 12.000 anos). Este período se caracterizou por temperaturas mais amenas e se encontra frequentemente associado com o surgimento da horticultura, a cultura agrícola mais primitiva. Estudos demográficos sugerem que nessa etapa uma parcela da população humana começara a adotar um estilo de vida que passou a diferir de forma nítida dos padrões encontrados até então. Na presente seção oferecemos alguns indicadores do modo de vida anterior ao holoceno e indicaremos, na medida do possível, em que sentido este estilo de vida favoreceu a expressão dos estereótipos entre os primeiros humanos. Adotaremos, como ponto de partida, o esquema classificatório da figura 13, não sem antes admoestar que a adoção de esquemas classificatórios podem ser enganadores, pois sabemos o quanto a caracterização das etapas da evolução da civilização humana se defronta com uma dificuldade decisiva, pois o ritmo de desenvolvimento das civilizações pulsa de forma independente umas das outras. Um mesmo continente pode estar ocupado por civilizações com níveis de organização social diferentes; se algumas destas civilizações podem ter mantido contatos, outras podem estar absolutamente isoladas, mesmo ocupando territórios não muito distantes. Em que pese os riscos, adotar um esquema geral nos parece inevitável e, para tal, lançamos mão dos argumentos expostos em Christian (2004), cujas diretrizes gerais estão expostas na figura 13.

A forma mais primitiva corresponde a um tipo de organização social composta por um número muito reduzido de pessoas, geralmente uma família com vínculos sanguíneos ou de parentesco. A subsistência desses bandos dependia fundamentalmente de coleta de raízes, tubérculos e de frutos e, em alguma medida, da caça de animais de pequeno porte. A expectativa de vida era muito baixa, em torno de 40 anos, e a amplitude de movimento destes pequenos grupos bastante limitada, sugerindo que ao longo da existência estas pessoas estabeleciam contatos com um número muito reduzido de semelhantes.
Nesta época, correspondente ao que usualmente chamamos de Idade da Pedra e os especialistas chamam de pleistoceno, os grupos humanos seguramente estabeleceram algumas modalidades de contatos e de trocas com outros grupos, tanto de humanos quanto de hominídeos. Desafortunadamente, não temos como saber quais as impressões mútuas que cada uma destes grupos desenvolviam sobre os outros e, provavelmente, nunca chegaremos a saber sobre a existência ou não de estereótipos nestes grupos, embora possamos considerar esta hipótese como provável, pois eram dotados da capacidade da linguagem, o que teoricamente os tornava aptos a criar representações estereotipadas sobre outros grupos. Adicionalmente, podemos supor que estas populações viviam em grupos muito reduzidos, estavam dispersos, se deslocavam em áreas relativamente restritas e que os contatos fortuitos com os outros grupos deveriam ser relativamente esporádicos. As mudanças sociais, consequentemente, eram muito lentas, sendo pouco provável que tivessem desenvolvido soluções tecnológicas avançadas, o que por certo os impediu de desbravar os territórios situados além dos limites geográficos em que estavam confinados.
É possível imaginar que a passagem do tempo tenha levado estas famílias primitivas, compostas por um pouco mais de uma dezena de indivíduos, a estabelecerem vínculos mais consistentes com outros grupos localizados nas regiões relativamente próximas, estabelecendo-se alguns laços sociais entre os bandos, no que corresponde ao segundo tipo de organização social identificado na figura 13. Esta nova modalidade organizacional se caracterizava pela formação de grupos locais, de maior porte, formados por várias famílias distribuídas em territórios adjacentes. Nestas redes de indivíduos, conectados em pequenos grupos, abre-se a possibilidade de intensificação de relações de trocas e circulação de informações e, consequentemente, o surgimento de inovações sociais e tecnológicas, embora bastante limitadas. Os indivíduos de um bando poderiam passar quase toda a vida sem estabelecer qualquer contato com membros das outras tribos, o que deve ter favorecido a criação de dialetos particulares e próprios a cada grupo, o que por certo reduziu o potencial de trocas sociais e, por consequência, o surgimento de inovações tecnológicas mais importantes.
Ao longo de milhares de anos deve ter ocorrido uma expansão desta população, que passou a ocupar territórios relativamente próximos, um processo por certo muito lento, pois a humanidade ainda não dispunha de recursos tecnológicos suficiente para fazer frente a climas inóspitos e nem meios para se deslocar com eficiência por terrenos pouco acessíveis e acidentados. Há cerca de 100 mil anos grupos populacionais se expandiram além dos limites do continente africano e se deslocarem em direção à Ásia, posteriormente se espalharam pela Europa até alcançarem, há cerca de 60 mil anos, as ilhas mais acessíveis do Pacífico Sul. Estas populações se tornaram relativamente isoladas umas das outras, sendo plausível admitir que esta separação determinou diferenças entre os perfis genéticos da população original e das delas derivadas e, consequentemente, em função das condições ambientais a que estavam expostas, passaram a se diferenciar no que concerne à aparência física (ver figura 10).
Qual o impacto desta diferenciação nas condutas humanas? Como ela afetou a relação entre os grupos no que concerne aos estereótipos? Ainda que adotemos um posicionamento pessimista em relação à possibilidade de oferecer uma resposta razoável, acreditamos que as evidências disponíveis no âmbito das relações intergrupais podem nos ajudar a discutir esta questão. Consideremos duas grandes dimensões analíticas, por um lado, a competição, particularmente as hostilidades intergrupais e o advento das atividades bélicas e, por outro lado, a cooperação, tanto a intragrupal quanto a cooperação entre os grupos e bandos.
Considerando que os recursos encontrados por estes primeiros grupos humanos nos territórios de caça e coleta devem ter sido insuficientes para atender as necessidades imediatas de todos os grupos, podemos supor que a hostilidade intergrupal foi uma característica decisiva nas relações entre os primeiros grupos humanos. Isto não nos impele, no entanto, a concluir que a vida dos primeiros agrupamentos humanos tenha sido marcada por guerras constantes e incessantes e muito menos assegurar que quem vivia nessa época não tinha um minuto de sossego. Este entendimento não é compatível com as evidências etnológicas e arqueológicas identificadas na literatura especializada; se as guerras podem surgir rapidamente, o cenário bélico também pode se modificar de forma abrupta, sendo seguido por períodos de relativa paz. A noção mal traçada de selvagens o tempo todo a espreitar os caminhos para encontrar uma oportunidade de emboscar um desavisado ou uma tribo inimiga não é convincente e nem justificada. Se a violência intergrupal e as guerras, tais como se manifestaram nos primeiros agrupamentos humanos, podem nos ajudar a entender o surgimento dos estereótipos e dos preconceitos, é importante que tenhamos uma maior clareza a respeito da origem das hostilidades intergrupais.
Allen (2014), na introdução de uma obra dedicada ao estudo da violência e das guerras entre grupos de caçadores-coletores, identifica duas grandes tradições de estudos, associadas de forma longínqua às doutrinas expostas por Thomas Hobbes (1588-1679) e Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Uma delas se aproxima das teses de Hobbes, nas quais se admite que a vida humana pode ser representada pela metáfora de uma guerra de todos contra todos. Nesse sentido, a vida humana não seria apenas muito curta, como também desagradável e brutal. Desconsiderando os exageros retóricos, esta concepção está próxima da posição acolhida pelos “falcões”, uma vertente de estudiosos que oferece suporte à tese de que a guerra sempre foi uma constante na trajetória da espécie humana, ou melhor, já se encontrava presente entre os hominídeos, antes mesmo do surgimento dos humanos. Este grupo de estudiosos desenvolveu uma robusta literatura, baseada em argumentos arqueológicos e etnológicos, bem como ganhou uma certa notabilidade após a publicação de vários livros direcionados a um público não especializado, cujos títulos carregam um forte apelo emocional-mercadológico: O macho demoníaco. As origens da agressividade humana (Wrangham, & Peterson, 1998), Batalhas constantes: o mito do selvagem nobre e pacífico (Le Blanc, & Register, 2003), A guerra na civilização humana (Gat, 2006) e O mais perigoso animal: a natureza humana e a origem da guerra (Smith, 2007). Estas obras acentuam as influências da genética, e com base em argumentos nos quais se consideram os comportamentos agressivos vistos nas colônias de chimpanzés e as proximidades evolutivas entre as duas espécies, sugerem que o padrão de conduta dos primeiros grupos humanos não dever ter sido muito diferente do observado entre os nossos primos distantes. Esta proclividade à violência seria o principal mecanismo responsável por fenômenos como o altruísmo endogrupal, a formação de coalizões, a diferenciação entre e o endogrupo e o exogrupo e a cautela face aos estrangeiros.
Um artigo publicado no periódico Science contribuiu decisivamente para o fortalecimento desta concepção ao evidenciar, a partir de análises de segunda ordem de pesquisas realizadas em diversos sítios arqueológicos e em dados etnográficos, que as atividades bélicas foram documentadas em todos os continentes e que esta tendência a se perfilar entre as forças do próprio grupo para combater um inimigo externo, embora no plano imediato signifique um sério risco para a sobrevivência individual, pode ser interpretado como uma conduta compatível com o aumento do potencial de sobrevivência do grupo como um todo. Nesse sentido, o altruísmo endogrupal aumenta a chance de sobrevivência do grupo, ainda que isso signifique para os indivíduos envolvidos na peleja uma maior chance de ter a vida ceifada antes da hora e de manchar as mãos com o sangue alheio (Bowles, 2009).
Em contraposição aos falcões, um outro grupo, ao qual se aplicou a designação algo pejorativa de pombas, se aproxima da perspectiva de Rousseau, ao estabelecer uma contraposição entre a sociedade civilizada, marcada pela violência e opressão, e as sociedades tradicionais, nas quais o bom selvagem se estabeleceu em um ambiente marcado por uma condição de completa harmonia com a natureza e com os outros humanos. Nesta perspectiva, a paz só seria quebrada nas etapas mais tardias da pré-história, sobretudo a partir do momento em que se introduz formas mais sofisticadas de organização social. A paz desaparece quando surgem o chefe tribal, a cidade-estado, o império despótico e o colonialismo. Temos, pois, uma longa linhagem de agentes responsáveis pela origem e manutenção de um estado permanente de guerras entre os grupos humanos e, assim concebida, a guerra não derivaria de uma história evolutiva que nos premiou com genes que nos impelem a travar guerras e matar aos nossos coespecíficos com orgulho e satisfação. As hostilidades entre os humanos procederiam não de uma inclinação biológica particular para a violência, mas resultariam das tentativas de se apossar e manter o domínio de bens e recursos naturais e econômicos e da consequente estratificação imposta pelas novas formas de organização social (Estabrook, 2014).
Formulações contemporâneas procuram articular um pouco as ideias expressas por cada uma das duas posições, enfatizando tanto o papel da biologia quanto o da ecologia, ao acentuarem, contra Rousseau, que se as guerras estavam presentes desde a origem da humanidade, nas etapas iniciais da evolução elas não se mostravam tão mortíferas ou frequentes quanto a doutrina de Hobbes insiste em nos fazer acreditar (Gordon, 2014). O distanciamento, o estranhamento e até mesmo as emboscadas contra os estrangeiros estavam presentes, mas não em caráter endêmico. Da mesma forma, nem todos os atentados contra a vida ou as mortes violentas documentadas pela arqueologia ou pela etnologia deveriam ser interpretadas como o resultado de altercações entre grupos diferentes, pois muitas poderiam advir de dissenções internas ao próprio grupo, a exemplo de vinganças ou do assassinato puro e simples.
A violência e as hostilidades intergrupais alcançaram um outro nível de expressão com as novas formas organizacionais, particularmente a partir da passagem do tipo 2 para o tipo 3 de organização encontrada na figura 13, constituídas por grupos reprodutivos de tamanho médio ou grande a ocuparem e preservarem territórios de coleta e caça. Quanto mais bem servido pela natureza, por exemplo, se situado em um vale fértil ou próximo a cursos d’água, maior a probabilidade do território oferecer bens alimentares, vegetais e animais. Por outro lado, os habitantes estavam mais sujeitos a atrair intrusos. Estas condições permitiram o surgimento da noção de territorialidade (Pardoe, 2014), o desenvolvimento de estratégias conjuntas entre os grupos populacionais ocupantes do território para a defesa frente a invasores fortuitos e, consequentemente, o surgimento da diferenciação entre aqueles com quem é possível contar para as tarefas de defesa e os outros, os invasores, os inimigos, aqueles que devem ser mantidos à distância ou, se for o caso, ameaçados, intimidados ou mesmo aniquilados.
As discussões encetadas na seção anterior, bem como os aludidos na nossa discussão da pré-história até alcançar as primeiras cidades e vilas, se referem aos tipos de organização social classificados entre os modelos 1 a 4. As organizações às quais iremos nos referir na sequência podem ser incluídas nos tipos 5 e 6, cujos registros históricos indicam que teriam surgido há não mais de cinco mil anos. A elaboração dos documentos que alcançaram os nossos dias e ainda hoje são utilizados no esforço de desbravar a história dependia do trabalho especializado de escribas, uma categoria que certamente deve ter ocupado uma posição privilegiada na estrutura burocrática das primeiras sociedades organizadas. Podemos imaginar que o trabalho destes primeiros registradores tenha sido relativamente diversificado. Alguns devem ter se dedicado à perenização dos mitos de legitimação e à confecção de relatos laudatórios dedicados à celebração das vitórias militares; outros, por certo se especializaram no registro daquilo que se supõe decisivo para o estabelecimento de qualquer ordem governamental e administrativa, em particular o registro documental de atos que preservassem a incolumidade das fronteiras e permitissem a obtenção e o ordenamento dos recursos necessários para a organização das defesas contra incursões de inimigos.
A passagem dos assentamentos e aldeias agrícolas para uma nova ordem social permitiu a criação das primeiras civilizações. Civilização nos parece um termo um tanto dúbio, pois estas formas societais foram marcadas por conquistas e conquistadores, invasões e invasores. Nesta nova ordem, no mundo civilizado recém-inaugurado, a presença do outro, o estrangeiro, nos limites ou mesmo a uma certa distância, não passava desapercebida e os cuidados para mantê-lo apartado podem ser considerados fundamentais na manutenção da estabilidade política destas primeiras civilizações humanas.
As cidades, surgidas há cerca de 5500 anos, numa região compreendida entre os rios Tigre e Eufrates, dependiam inteiramente da produção de excedentes alimentares. A introdução do arado e de outros implementos agrícolas permitiu o aumento da produção. Se as necessidades alimentares passaram a ser atendidas com o trabalho de relativamente poucos agricultores, um número razoável de habitantes deve ter passado a desempenhar outras funções, o que supõe uma diferenciação social bem mais especializada do que as encontradas nas formas de organização anteriores. Erigidas preferencialmente em vales de bacias hidrográficas, as primeiras cidades estavam situadas em regiões com uma certa instabilidade climática. A alternância entre as inundações e as épocas de seca suscitava períodos de grande escassez alimentar, o que tornava estes sítios alvos de visitantes indesejáveis. Os invasores, genericamente denominados bárbaros, saqueavam, destruíam e vilipendiavam os (não tão) pacíficos moradores destas cidades; daí o surgimento das primeiras paliçadas e muralhas, construídas com a dupla finalidade de proteger os ali estabelecidos e manter à distância tudo aquilo que se supunha indesejável.
A elaboração de estratégias de defesa contra as invasões bárbaras supõe um certo acordo político e, como sabemos, a política envolve fundamentalmente relações de poder e de desigualdade. Estabelece-se assim a distinção entre uma incipiente aristocracia guerreira e todos os outros não aquinhoados pelos deuses com as habilidades de esfolar o inimigo, brandir uma espada, empunhar um arco e desferir certeiras flechadas. Aos últimos restava o trabalho no campo ou, no melhor dos cenários, dominar as atividades laborais que começaram a se fazer necessárias, como a confecção de potes e vasos de barro ou cerâmica e o trabalho com pedras, tinturas, couros, madeiras, conchas e outras materiais presenteados pela natureza. O trabalho artesanal se torna mais sofisticado e uma nova classe de artesãos passa a ocupar uma posição intermediária entre os que passavam o dia a labutar irrigando a terra com o suor do próprio rosto e uma elite guerreira dedicada aos labores de defesa, saques e conquistas.
Se o estoque de proteínas era fundamental, o domínio político dependia do controle do excedente agrícola e este demandava uma série de cuidados e restrições. Os alimentos deveriam ser semeados e vigiados; a colheita realizada no momento oportuno; a produção, removida dos campos e armazenada em silos, mantidos sob constante vigilância para evitar as subtrações indevidas; o estoque, cuidadosamente distribuído pela população, evitando injustiças que por certo criariam fissuras na organização social. Estes trabalhos demandavam o esforço organizador de uma burocracia cada dia mais especializada. A contabilização dos excedentes alimentares foi facilitada pela criação dos números e com o desenvolvimento da escrita, cada vez mais fonética e independente de recursos imagéticos. O período exato da semeadura dos campos se encontrava inteiramente subordinado ao fluxo do tempo, das estações do ano, dos ventos e do incessante movimento de cheia e vazante dos rios, cuja previsão requeria o desenvolvimento de conhecimentos cada vez mais especializados. Trabalhar o conhecimento exige dedicação e horas de estudo e reflexão; e os primeiros a se dedicarem a tais atividades já não mais precisavam se preocupar em labutar de sol a sol, nem com os labores de semear e colher o grão de cada dia, sujar as mãos nas matérias primas da produção artesanal e, muito menos, empunhar a espada nas atividades de defesa. Quem eram estes pensadores, senão os descendentes dos demiurgos anteriormente referidos?
Uma hipótese alternativa, representada pela obra As origens da consciência no colapso da mente bicameral, publicada em 1978 pelo professor Julian Jaynes, da Universidade de Princeton, causou um forte impacto entre muitos psicólogos (Hampden-Turner, 2019; Morris, 2019). Além de apresentar uma audaciosa hipótese a respeito do surgimento da consciência, distanciando-se dos argumentos evolucionistas, postulou a hipótese extremamente arrojada de que até cerca de 3000 anos a vida cotidiana dos humanos estava sujeita a um constante vozerio oriundo do mundo externo, não exatamente de outras pessoas, e sim de deuses e outras entidades (Jaynes, 2000). A hipótese da mente bicameral sustenta que até o advento da escrita o mundo era regido pela dimensão da oralidade, a qual explicaria, inclusive, a passagem da organização social baseada nos pequenos grupos de caçadores e coletores para as grandes comunidades agrícolas. Os dois hemisférios cerebrais atuavam sem que nenhum deles dominasse a vida mental, derivando-se daí o adjetivo bicameral. Apenas a partir do momento em que um deles, o esquerdo, passou a predominar, teriam surgido a consciência, a vida interior, as narrativas épicas, a espacialização do tempo e a noção de identidade, tal como a concebemos hoje em dia.
No mundo bicameral, os humanos escutavam e prestavam atenção cotidianamente às vozes das estátuas, dos ídolos e das representações figurativas dos deuses. Se os deuses se dirigiam diretamente ou não aos humanos, estes permaneciam sempre atentos às vozes alucinatórias oriundas do cérebro, interpretando-as como vozes reais oriundas das bocas das divindades, estátuas e ídolos. Neste mundo ninguém poderia ser considerado responsável pelas próprias ações, não podendo receber crédito pela realização de qualquer ato excepcional, muito menos acusações por ações vis. Tudo era regido por uma hierarquia perfeitamente definida; as pessoas não encontravam dificuldades em identificar os lugares ocupados pelos deuses, reis, humanos comuns e escravizados. Esta hierarquia, definida e sustentada pelas vozes onipresentes, no entanto, começa a desmoronar a partir do século da metade do segundo milênio antes da nossa era, em especial devido às guerras, às imensas migrações que se seguem às catástrofes impostas pelas mudanças climáticas e pela erupção de vulcões como o Tera, na ilha de Santorini, ocorrida aproximadamente em 1450 antes da nossa era.
O mundo bicameral teria presenciado os primeiros ensaios de encontros entre diferentes grupos humanos. Em um mundo de vozes alucinatórias, as relações intergrupais eram definidas unicamente pelas palavras e ensinamentos advindos das vozes escutados em cada um destes grupos. Os contatos entre os grupos, e os estereótipos deles advindas, eram marcados pelo teor das mensagens enunciadas pelos inúmeros corais de vozes. Ao afirmarem que o outro grupo era amigável e confiável, as relações entre os grupos se mostravam amistosas e os possíveis estereótipos mútuos se definiam como positivos; se, no entanto, as vozes vaticinavam sobre os perigos suscitados pelos outros grupos, as relações se apresentavam conflituosas e os supostos estereótipos se tornavam extremamente negativos.
Pouco importa, para o nosso argumento, a validade da hipótese da mente bicameral; ela nos interessa por tornar manifestas as relações entre os estereótipos e a linguagem, um tópico a ser aprofundado nas seções 3.2 e 4.3. Também ela nos ajuda a entender um pouco melhor o efetivo papel exercido pelas crenças coletivas, particularmente quando elas são compartilhadas por quase todas as pessoas de um grupo social e se referem aos outros grupos. Também a hipótese aponta para um elemento fundamental relacionado com a nossa concepção de estereótipos, pois o mundo bicameral representa um contexto no qual a individualidade não ainda não podia ser definida como uma característica marcante na biografia humana, o que sugere tanto a importância decisiva da entitatividade quanto o papel fundamental exercido pelas teorias implícitas tornadas públicas pelas vozes que então se faziam ouvir.
2.3.2.1. Ambientes, tipos humanos e hierarquias
Em consonância com a nossa definição inicial, a ativação de um estereótipo envolve dois processos: a desindividualização e a posterior formulação de teorias implícitas. Esse duplo movimento, por sua vez, atende a dois objetivos fundamentais: o de facilitar o processamento cognitivo, ao transformar o fluxo da informação perceptual em entidades discretas, as classes ou categorias, assim como a formulação de discursos de legitimação e justificação, mediante a utilização de teorias implícitas.
A partir do momento em que os grupos se diferenciam uns dos outros, e adotam nomes para aludirem a si mesmos e para fazerem referências aos outros enquanto totalidades que transcendem aos indivíduos, entramos no território da desindividualização. Trata-se de uma operação cognitiva básica que independe da formulação de silogismos. O processo de aplicação de teorias implícitas, por sua vez, envolve a formulação de arrazoados relativamente longos, que culminam em conclusões fundamentadas em explicações a respeito da realidade física e social e das relações entre estes dois domínios. Postulamos que as teorias implícitas tenham desempenhado uma função primordial no surgimento e na estabilização das primeiras civilizações, pois ofereceram o suporte para legitimar a diferenciação social e justificar práticas como a dominação e a escravização, assim como as conquistas territoriais.
De acordo com Isaac (2013), os estereótipos a respeito dos habitantes das cidades e regiões do mundo antigo se organizaram a partir de um conjunto de teorias elaboradas por filósofos, geógrafos, historiadores, poetas e cronistas da antiguidade e rapidamente acolhidas e difundidas pelo senso comum. O impacto destas primeiras teorias sobre o mundo físico e social não se restringiu, contudo, ao mundo antigo; muitas destas crenças ainda permanecem vivas nas nossas estruturas de pensamento. As versões originais destas teorias, formuladas no século V antes do presente, atravessaram a antiguidade romana e todo o período medieval, se robusteceram no Iluminismo e na Renascença até ganharem roupagem científica nos séculos XIX e XX. Quais foram estas ideias? Quais as versões iniciais destas teorias acolhidas pelo senso comum que, transformadas pela passagem do tempo, têm sido utilizadas de forma explícita ou implícita para a formulação dos estereótipos étnicos e locais?
a) A crença no determinismo ambiental, cuja formulação sistemática ocorreu em meados do século V antes do presente. Sustentava-se na suposição de que as características particulares de um grupo de pessoas ou de uma coletividade eram inteiramente determinadas pela geografia e, consequentemente, pelo clima. Os antigos acreditavam que os europeus, sujeitos a um clima menos convidativo, difeririam dos asiáticos por estes viverem em climas mais amenos e ostentarem características pessoais e coletivas muito distintas. Conceitos como os de vontade, desejo, intencionalidade ou as características peculiares das pessoas não eram importantes na elaboração da teoria, vez que os atributos idiossincráticos das pessoas que viviam em uma determinada região seriam inteiramente determinados pelo clima. O ambiente se responsabilizaria por definir as virtudes humanas e, a partir delas, seria possível estabelecer a diferenciação entre os povos de qualidade superior e aqueles que, inevitavelmente, deveriam se inclinar sob o peso dos melhores. O caráter hierarquizador dessa teoria implícita serviu como arcabouço intelectual para justificar a expansão geográfica e o domínio sobre outros territórios;
b) A crença na hereditariedade dos caracteres adquiridos. A concepção de que os bons frutos são gerados por uma boa semente é contemporânea e correlata ao princípio do determinismo ambiental. Esta crença se sustenta no entendimento de que, ao definirem as características de uma coletividade, a geografia e o clima determinam que as virtudes e vícios dos povos sejam transmitidos de geração a geração. Encontramos, neste caso, uma formulação primitiva do essencialismo biológico, ainda que no lugar dos genes sejam albergadas noções como as de semente ou germe. Esta teoria serviu de contraponto ao ambientalismo extremado da tese exposta no item anterior e acena para um lugar de destaque ocupado pelas características herdadas pelos indivíduos, o que supõe uma preocupação rudimentar com as diferenças de caráter entre os seres humanos;
c) A crença no determinismo social, sendo particularmente significativa a suposição de que o caráter de um povo reflete inteiramente as características do governo ao qual se encontra sujeito. Um governante fraco deveria ser responsabilizado pela fraqueza da sociedade por ele governada; um regime político deteriorado terminaria por fragilizar toda a sociedade. Esta crença respaldou não apenas o imperialismo militar ao fundamentar a tese de que um regente enfraquecido não será defendido vigorosamente pelos súditos, como também fortaleceu os argumentos hierarquizadores ao tornar absolutamente naturalizada e insuperável a diferenciação entre aqueles a quem compete as tarefas de governo e os demais aos quais restariam apenas os deveres da obediência;
d) A crença na interação entre o ambiente e as características pessoais herdadas. Esta crença também ofereceu um forte respaldo para elaboração de proposições essencialistas ao sugerir que o efeito contínuo do ambiente físico e social, aliado aos fatores transmitidos de geração a geração, imporia uma série de características permanentes e estáveis às futuras gerações. Se, afinal, uma civilização foi talhada em um ambiente que a tornou naturalmente melhor e cujas características foram aperfeiçoadas a cada geração, presume-se, portanto, que ela inevitavelmente se tornará ainda mais poderosa, habilitando-a a se impor sobre outros povos e civilizações. Esta tese ofereceu uma atitude legitimadora à conquista, à guerra e à dominação e suscitou uma nova ordem de preocupações: qual seria o destino que aguardava este povo virtuoso e dominador ao se estabelecer em um território não tão abençoado quanto o seu torrão natal e ao se misturar com os povos inferiores dominados?
e) A crença na autoctonia e na linhagem pura, na qual se assegurava que um povo que sempre viveu no território que lhe é próprio e foi capaz de manter a linhagem pura, não se misturando como os outros, permanecerá superior aos povos que abandonaram o território natural e degeneraram o sangue ao misturá-lo com o dos povos inferiores. Desta tese derivam outras crenças; em particular, a de que a mistura entre os povos inevitavelmente gerará uma descendência degenerada, como também favoreceu o argumento da hierarquização ao diferenciar um grupo de linhagem pura, superior, e os inferiores, de sangue misto ou conspurcado. O reflexo recente mais acentuado desta crença foram as ideologias do eugenismo e do branqueamento que ganharam corpo no século XIX e popularidade no século XX;
f) A crença no poder explanatório da fisiognomia, a partir da qual passa ser depositada confiança numa disciplina ou saber dedicado à identificação das tendências pessoais, das propensões, do caráter e do destino de uma pessoa com base na análise das características físicas observáveis. Estas teorias psicológicas rudimentares foram utilizadas na antiguidade para reforçar argumentos relativos às diferenças psicológicas e morais entre os povos. A teoria de que o ambiente desempenha um importante papel na manifestação das características físicas, psicológicas e morais permitiu a elaboração e a difusão de inferências sobre as pessoas, supondo-se que os estados mentais internos poderiam se expressar nos traços fisionômicos e na postura corporal. O acúmulo de conhecimento a respeito das características psicológicas de uma coletividade se torna um elemento estratégico na ação política; ao ser possível identificar os atributos diferenciadores dos distintos povos, supostamente se tornará mais fácil os contatos e a comunicação com os estrangeiros e, consequentemente, a tarefa de submeter e civilizar os povos inferiores;
g) A crença de que mediante o estabelecimento de comparações com os animais podemos conhecer melhor os humanos. Esta crença se fundamenta nas supostas semelhanças físicas entre as características de algumas espécies de animais e os atributos de determinados agrupamentos humanos, assim como na suposição de que muitas coletividades humanas se organizam de uma maneira semelhante à que pode ser observada na organização social de algumas espécies de animais. Ela também se nutre de fábulas e narrativas populares nas quais as características morais e intelectuais associadas a determinadas espécies animais são utilizadas com a finalidade de ensinar lições de moral e apresentar exemplos de civilidade a serem adotados pelos humanos. Esta aproximação simbólica entre alguns grupos humanos e determinados animais ofereceu justificativas morais para a prática da escravidão, já que os grupos escravizados podiam ser desqualificados da sua humanidade ao serem considerados mais próximos ao reino animal do que à natureza humana. Esta crença permanece viva, particularmente na expressão dos estereótipos sob a forma de raciocínio essencialista animalizador;
h) A crença de que os estrangeiros, em especial os imigrantes, não são dignos de confiança, seja por trazerem práticas e hábitos que conspurcam e minam o vigor de toda uma sociedade, seja por introduzirem valores e costumes contrários à concepção de mundo dos autóctones. Esta crença possui relevância na atualidade em teorias que diferenciam a maneira pela qual os membros do endogrupo e do exogrupo se percebem e se tratam mutuamente nas sociedades contemporâneas.
Estas crenças, como todas as crenças, se organizaram sob a forma de sistema no qual podemos diferenciar três crenças básicas e cinco derivadas, tais como se apresentam no diagrama da figura 14. Nele pode ser observado o posicionamento das três crenças centrais: as duas contextualistas, tanto as que fazem referências ao ambiente físico quanto as que aludem ao ambiente social, e uma tese individualista, na qual se postula a transmissão das características hereditárias. Destas crenças se derivam outras crenças que constituem as explicações e os arrazoados que fundamentaram as teorias implícitas acolhidas por várias civilizações da antiguidade e, uma vez modificadas, transformadas, simplificadas ou complexificadas, se difundiram pelos vários continentes e épocas até chegarem praticamente intactas aos nossos dias.
2.3.2.2. Os estereótipos na antiguidade
Identificadas as teorias implícitas a partir das quais as crenças estereotipadas se desenvolveram, passamos a analisar as formas particulares pelas quais os estereótipos se manifestaram nas relações concretas entre os povos da antiguidade. O período ao qual estamos nos referindo se estende por um interregno de quase quatro mil anos e inclui um número substancial de civilizações, distribuídas em muitos rincões do planeta. Quase nada sabemos sobre algumas destas civilizações e o pouco que podemos antecipar a respeito dos estereótipos cultivados entre elas se constitui em especulações escassamente documentadas.
Entre os historiadores parece ser consensual a tese de que as primeiras civilizações se originaram na região que se convencionou denominar Mesopotâmia. Sobre uma destas civilizações primeiras, a suméria, quase nada sabemos além do fato dos sumérios terem elaborado uma das primeiras modalidades de escrita, a cuneiforme. Talvez os legados mais significativos deixados pelos sumérios para os estudiosos dos estereótipos se refiram, em primeiro lugar, ao reconhecimento de que foram os responsáveis por cunhar a palavra álcool e, além disso, e bem mais importante, que deixaram para a posteridade, e para alegria de não poucos, as primeiras receitas de cerveja sobre as quais temos notícias (Roberts, & Westwad, 2013).

Reputação por reputação, também nos chegaram umas tantas informações sobre o esplendor da civilização babilônica, sendo muito usual, mesmo em círculos nos quais a educação formal não se destaca, o uso corrente da expressão o ouro da Babilônia, embora quase nada saibamos sobre estes deslumbrantes tesouros, a não ser o que fomos informados pelo ilustre Raul Seixas.
Ainda na Mesopotâmia, uma das primeiras civilizações a despontar está associada com a numinosa cidade de Ur, inseparável da saga do gigante Gilgamesh, um personagem frequentemente adotado pelos roteiristas de cinema, televisão e histórias em quadrinhos, além de muito apreciado pelos criadores e aficionados de videogames dada a quantidade de vezes que o gigante guerreiro aparece em jogos eletrônicos, como é o caso da série Civilization, do clássico Final Fantasy e dos menos conhecidos Tales of Phantasia e Devil May Cry 4, apenas para citar alguns poucos títulos.
Posteriormente, cerca de 2300 anos antes do presente, instaura-se a civilização acadiana que, para muitos historiadores, representa a primeira estrutura política a ser referida no autêntico significado do termo como um Estado. Esta civilização se tornou particularmente importante na dimensão organizacional, pois suspeita-se que aí tenha se estabelecido os princípios da separação formal entre as autoridades religiosas e as seculares, entre o poder secular e o religioso. Se atualmente testemunhamos um crescimento acentuado da influência de agentes políticos religiosos nos parlamentos, no judiciário e no poder executivo de inúmeros estados modernos e a consequente assunção de um fundamentalismo religioso sem disfarces ou retoques, podemos imaginar o quanto os antigos ainda podem nos ensinar e o quanto somos menos civilizados do que gostamos de nos imaginar.
Egípcios, núbios e etíopes
As bacias hidrográficas e os vales dos grandes cursos d’água desempenharam um papel extraordinário na expansão da população humana. O Nilo, um rio que se estende por quase cinco mil quilômetros, exerceu um papel decisivo na vida das civilizações egípcias e dos seus vizinhos, os núbios. As cataratas ao longo do curso do rio dificultavam a navegação, o que inibia os contatos entre as duas civilizações. Este isolamento era quebrado apenas pela implementação de rotas comerciais e, claro, pelas guerras de conquistas. Os contatos entre egípcios e núbios permitiram o desenvolvimento de representações mútuas, sendo relevantes os marcadores relativos à cor da pele. Os núbios, estabelecidos em uma região mais equatorial e mais sujeita à ação dos raios solares, ostentavam uma pele um pouco mais escura que os vizinhos egípcios ou, pelo menos, eram assim apresentados nas inúmeras representações pictóricas que nos chegaram, conforme observado na figura 16.

Se, conforme assinalamos na seção anterior, pouco sabemos sobre a civilização suméria e outras civilizações antigas, em contrapartida somos bem mais informados sobre os egípcios, algo devido à indústria cultural e a enorme fascinação exercida pelos faraós, por Elizabeth Taylor a interpretar Cleópatra com uma cobra bem fotogênica a deslizar pelo colo e, claro, pelas inúmeras múmias que, de quando em vez, retornam para causar calafrios nas salas de cinema.
Acentue-se, no entanto, que o interesse pela civilização egípcia não é um fenômeno dos nossos dias, pois já despertara admiração entre estudiosos antigos. Nas palavras de Heródoto (485 – 425 antes do presente), o famoso historiador grego, em um ponto os egípcios em nada diferiam dos outros povos; eles também denominavam bárbaros a todo e qualquer povo que não falasse a língua egípcia, ainda que o próprio Heródoto, como um bom grego, considerasse bárbaro a todo aquele que não compartilhasse a língua e a cultura grega. Se este era o caso, por outro lado entre os gregos era corrente a interpretação de que os egípcios não se assemelhavam fisicamente a nenhum outro povo e nem adotavam quaisquer costumes estrangeiros, preservando a própria ancestralidade (Isaac, 2004).
O barbarismo dos egípcios, tal como interpretado pelos gregos, se expressava nas práticas cotidianas que adotavam, absolutamente estranhas a outros rincões, pois era dito que na terra do Nilo enquanto as mulheres se dedicavam ao comércio e urinavam em pé, os homens, indolentes, permaneciam sentados em casa, não se levantando nem mesmo para verter água. Como se não fosse o suficiente, acreditava-se que os egípcios se aliviavam fora de casa e se alimentavam no interior das residências, no mesmo espaço onde mantinham inúmeras criaturas de estimação, algo execrável em outras terras. O costume considerado mais estranho à época era a devoção mais do que religiosa aos bichos de estimação, acolhendo-se o costume de condenar à pena capital o incauto causador da morte, mesmo que acidental, de algum animal sagrado (Gruen, 2011).
No plano religioso, além da zoolatria, os egípcios também eram alvos de uma acusação que horrorizava muitos povos da antiguidade, ainda que os acusadores também adotassem o mesmo costume de oferecer vítimas humanas em sacrifício aos deuses. No caso egípcio, porém, a acusação era particularmente grave pois se as vítimas habituais eram os estrangeiros, imagine-se, pois, a hospitalidade com que se premiava o incauto visitante atrevido o suficiente para colocar os pés naquelas terras.
Em um terreno mais ameno, a História universal de Diodoro Sículo (90 – 30 AP) relata um costume interessante dos egípcios que pode estar na base dos estereótipos contemporâneos sobre uma categoria profissional frequentemente alvo de crenças estereotipadas. Ele se referia à interdição imperante nos tribunais egípcios que os abstinha de acolher relatos orais, pois todas as provas deveriam ser apresentadas por escrito, dado que um defensor dotado de eloquência e de destacada capacidade retórica poderia comover, e até mesmo levar às lágrimas, um magistrado experiente e beneficiar injustamente um acusado sobre o qual recaía claramente uma acusação verídica. Para minorar os riscos inerentes a uma boa retórica, o acusador deveria elaborar um documento escrito, expondo as queixas e acusações, o que e como ocorrera o evento e o tipo de dano ou injúria proporcionado pelo ato. Por sua parte, o defensor deveria recolher o documento apresentado pelo acusador, responder, também por escrito, a toda e qualquer acusação, indicando porque o seu cliente não poderia ser responsabilizado pelos atos de que era acusado ou, caso reconhecesse a falta, indicar os atenuantes que obsequiariam a aplicação de uma sentença mais leniente. Oferecia-se, posteriormente, a possibilidade da réplica para o acusador, da tréplica para o defensor, até a sentença ser finalmente lavrada pelos tribunais (Diodoro Sículo, 2001, parágrafos 75 a 79).
Na antiguidade, os estereótipos estavam fortemente sedimentados em crenças sobre o determinismo ambiental. Ao discorrer sobre a qual povo caberia a primazia de ter habitado o planeta e do qual todos os outros derivariam, Diodoro Sículo acena com o argumento de que o povo que estivesse mais perto do sol por certo deveria receber esta distinção, pois a luz do sol ao aquecer o planeta e secar a terra impeliria o pronto florescer da vida. E qual povo estaria mais próximo ao sol senão os etíopes, cujo nome significa precisamente aquele que tem a face tostada pelo sol?

Os estereótipos sobre os africanos foram influenciados por um debate de considerável peso na antiguidade greco-romano em torno do simbolismo das cores e o quanto este simbolismo poderia ser associado às características físicas e psicológicas dos diferentes povos. Este simbolismo gravitava em torno da dicotomia branco negro e se manifestava em um conjunto de oposições binarias: a luz e as trevas; o dia e a noite; a alva limpeza e a enodoada sujeira; a nítida clareza e a opaca escuridão; o alvorecer da vida e o denegrir da morte. Alguns destes simbolismos ainda se encontram presentes no nosso linguajar cotidiano e têm sido combatidos por um movimento de oposição ao racismo que ainda se insinua na nossa linguagem cotidiana (Bagno, 1999; Labov, 2008; Oneill, & Massini-Cagliari, 2019).
Este simbolismo não deve ser interpretado, no entanto, como um indicador da existência de intensos estereótipos negativos sobre a cor da pele. A se considerar as evidências apresentadas por muitos historiadores (Isaac, 2004; Snowden, 1999), os estereótipos sobre os africanos na antiguidade eram relativamente positivos ou, pelos menos, se mostravam bem menos negativos do que os atribuídos pelos gregos aos persas ou pelos romanos aos cartagineses. De guerreiros valorosos e justos nos relatos homéricos até uma representação equilibrada entre os satíricos romanos, a representação dos africanos na antiguidade em nada se confundia com a versão extremamente negativa vigente nos últimos séculos.
Gregos
A civilização minoica, denominação supostamente derivada do Rei Minos, a quem se atribui a paternidade do Minotauro, floresceu em Creta, a maior das ilhas gregas, desenvolvendo-se durante centenas de anos até desaparecer por razões que ainda hoje intrigam os historiadores. Hábeis no cultivo das vinhas e da oliva, os produtos mais característicos do Mediterrâneo, e famosos pela produção artística e pelo artesanato, especialmente pelos vasos que marcaram época, foram considerados os responsáveis por introduzir os ideais civilizadores na Grécia continental.

Um dos primeiros registros da antiguidade clássica a chamar a atenção para a questão das diferenças entre as pessoas é a alegoria poética “O trabalho e os dias”, provavelmente escrito no século VIII antes do presente, cujo ponto de partida reside numa analogia entre a qualidade dos metais e cada uma das raças humanas (versos 109 a 201). Apresenta-se, no alvorecer da história, um modelo de hierarquização das qualidades com a raça de ouro ocupando posição privilegiada em uma ordem superior na qual se vivia uma eterna primavera e todos usufruíam do mel a gotejar incessantemente de frondosos arvoredos. Para que lavrar? Para que trabalhar se os deuses suprem o necessário para a eterna felicidade? Este paraíso duraria pouco, pois os deuses gregos sempre se caracterizaram pela instabilidade emocional e, no meio de uma pugna entre Pandora e Prometeu, Zeus, impaciente, decidiu punir essa raça primeva, dizimando-a. Surge a raça dos homens de prata; se os homens de ouro desfrutavam a eterna primavera, os de prata se encontravam sujeitos aos ciclos de frio e calor, obrigando-se a construírem abrigos para se protegerem das inclemências do clima. Se a raça de ouro vivia numa eterna juventude e a morte se aproximava apenas quando o doce embalo dos sonhos sinalizava o fim da vida, os de prata foram obrigados a esperar o fim da vida a magoar as mãos ao ritmo do arado e a sulcar os campos para dele retirar o alimento que já não mais brotava das árvores. Essa raça, dominada pelo orgulho tão caro aos gregos, deixa de prestar reverência aos deuses sendo extinta por um outro ato discricionário divino e dá lugar a outra ainda menos consagrada, a raça dos homens de bronze. Bronze não é prata, muito menos ouro, o que a destituía da nobreza característica das raças superiores. Os homens de bronze se esmeravam nas lutas com armas feitas do mesmo bronze que moldava o caráter com o qual eram distinguidos e, de tanto lutarem uns contra os outros, pereceram. Por fim, no ponto mais baixo da escala, Hesíodo se referiu à raça dos homens de ferro entre os quais miseravelmente se incluiu ao afirmar que preferia ter perecido antes ou vivido depois dessa raça infame, cuja vida se restringia a vaguear sem rumo em um mundo marcado pelas mentiras, enganos, maldades e vergonhas.
Para Vernant (1990), a obra de Hesíodo acena, na antiguidade clássica, para uma ordem na qual a hierarquia ocupa um papel decisivo; descender significa antes de qualquer coisa mergulhar na desordem e na decadência. Na obra As origens do pensamento grego o mesmo Vernant postula diferenças dignas de nota entre os sistemas de pensamento da civilização micênica que ocupa o lugar deixado pela cultura minoica e a civilização dos dórios. A realeza micênica representava uma aristocracia constituída por guerreiros orientados por demonstrações individuais de coragem e destemor, qualidades que se mostraram insuficientes para livrá-los das inúmeras invasões às quais estiveram sujeitos durante séculos. Ao analisar a mentalidade dos gregos, Vernant (2002) comparou a organização social micênica contrastando-a com a organização social implementada a partir da ascensão dos dórios, uma civilização orientada por uma visão de mundo mais centrada nas ações e nas decisões coletivas, politicamente definidas nos acordos obtidos no espaço público da ágora e organizada militarmente a partir de uma estrutura de tropas que avançava ou se defendia sob formação cerrada, algo que a diferenciava dos atos intrépidos e corajosos, porém, desembestados e inócuos, dos guerreiros micênicos.
Desde os tempos antigos, as diferenças hierárquicas entre os indivíduos vinham sendo observadas; donde a origem da preocupação de diferenciar seres humanos em função de suas características particulares. Uma destas diferenciações envolve uma concepção hierarquizadora composta por três classes de pessoas: as nascidas para comandar e, portanto, regidas pelo cérebro; as que eram talhadas para o campo de batalha e dominadas pelas paixões; e as escravas, subordinadas única e exclusivamente aos apelos do ventre, cuja satisfação se restringia exclusivamente a comer e a fornicar. Podemos supor que muitas destas tipologias pioneiras se difundiram ao longo dos séculos e, não apenas tenham chegado aos nossos dias, como também refletiam um estado de espírito geral da sociedade ateniense de então a respeito dos fatores que determinavam as relações entre as cidades-estados.
Os atenienses cultivavam uma forte ojeriza a qualquer estrangeiro, sendo extremamente restritivos em relação à definição de um verdadeiro ateniense: aquele nascido em Atenas, e filho de pais e mães atenienses. Fora deste universo marcado pela pureza em relação à própria denominação, sobravam os escravos e os bárbaros (Delacampagne, 1995).
O declínio da civilização helenística favoreceu a formação de estereótipos bastante negativos sobre os gregos. Os romanos estabeleceram uma distinção fundamental entre a cultura grega clássica e as suas incomensuráveis contribuições intelectuais e os gregos da época em que viviam, cujos atributos pouco lisonjeiros serviam para reafirmar a tese de que qualquer sociedade, mesmo a mais bem civilizada, poderia se degradar com a passagem do tempo. Para se ter uma vaga ideia das diferenças entre os costumes da elite romana e os das classes privilegiadas gregas, a ostentação de uma reluzente barba, prática quase obrigatória entre os gregos, era explicitamente rejeitada entre as classes superiores do Império Romano. Muitos romanos se insurgiram contra os costumes gregos e o uso da língua grega no dia a dia de Roma, o que pode ser interpretado como uma atitude de afirmação da latinidade em relação à então decadente cultura helenística (Isaac, 2004).
Fenícios e persas
Em um mundo cujas fronteiras geográficas começaram a se tornar voláteis, o Tratado sobre o ar, água e os lugares, supostamente atribuído à pena de Heródoto, estabelece uma distinção essencialista entre Oriente e Ocidente, fundamentando-a em arrazoados ambientalistas. Por viverem em climas mais suaves e prazerosos do que os europeus, faltariam aos asiáticos coragem, tenacidade e energia. Os eflúvios do bom clima os tornariam menos propensos às atividades guerreiras e os condenariam a terem uma constituição física e de caráter bem mais frágil que a dos europeus, moldados sob climas mais carregados (Cairus, 2012). As diferenças entre estas duas visões de mundo, Oriente e Ocidente, se refletem nas batalhas e escaramuças frequentes no século IV antes do presente, entre os gregos e os persas.

Discute-se, amiúde, a origem do sentimento de xenofobia ainda que, para alguns estudiosos, a xenofobia não representasse necessariamente, nesta época, a desqualificação dos inimigos (Gruen, 2011). No caso da civilização grega, a xenofobia se sustentava na distinção entre a civilização helenística e os seus valores de liberdade, poder de decisão e democracia em contraposição aos regimes despóticos orientais, regidos pelas noções discrepantes de opressão, servidão e barbarismos. Teríamos de um lado, nós, os civilizados e, no campo oposto, eles, os desclassificados, aqueles que fomentam e convivem com a tirania. A diferenciação entre nós, os civilizados, e eles, os tiranos, seria a mais corriqueira nas relações entre os povos no alvorecer da história? Como ampliar esta afirmação e incluir povos como características semelhantes não exatamente bélicas? Consideremos os fenícios (Quinn, 2018) e assumamos que os estereótipos sobre os fenícios cultivados na antiguidade nos levam a acreditar que se tratava de um povo nascido a bordo de impressionantes embarcações tingidas de negro a singrar todos os mares do mundo conhecido. Capazes de fundar assentamentos onde fosse necessário e empreender inúmeras jornadas comprando aqui e vendendo acolá, eles granjearam fama em todo o mundo conhecido.

Comerciar significa barganhar e barganhar não está separado de levar vantagem, daí a aproximação milenar entre os labores do comércio e a desconfiança entre as partes. Os fenícios conviviam com esta dupla fama de serem navegadores exímios e comerciantes traiçoeiros, raramente dispostos a arcar com algum prejuízo nas transações. Esta fama acabou por firmar um dos principais estereótipos sobre os fenícios na Antiguidade, o de serem avaros.
Um outro estereótipo muito impopular na Antiguidade, mas também atribuído aos fenícios, era a prática religiosa de oferecer sacrifícios humanos, embora eles se defendessem assegurando que tal ritual não lhes pertencia com exclusividade, sendo amiúde adotado por outras civilizações (Mazza, 1988).
No contexto da sociedade asiática do século V antes do presente os estereótipos estavam fortemente vinculados com povos cujas relações eram fortemente marcadas por conflitos e os persas eram conhecidos como exímios guerreiros. Nos campos de batalha, segundo Heródoto, os exércitos persas eram imbatíveis e se distinguiam por nele porfiarem os mais portentosos e corajosos soldados de toda a Ásia (Isaac, 2004). Algum tempo depois, no entanto, os persas não passavam de afeminados e desprezíveis aos olhos dos gregos. Afinal, como esta representação se transformou e, dois séculos depois, predominou a interpretação de que se tratava de um povo afeminado, degenerado e covarde? Na guerra, o doce sabor da vitória nunca se confunde com o fel da boca dos derrotados. Por mais que os historiadores da Antiguidade tenham procurado preservar a saga heroica de comandantes militares como Xerxes ou Ciro e dos seus poderosos exércitos, estas narrativas não conseguiram se sobrepor a uma outra, na qual os derrotados foram dilapidados em vida e tiveram as suas memórias destroçadas após as cinzas. As crenças coletivas passaram a festejar a vitória da Europa, da razão e da democracia sobre a tirania e a irracionalidade dos bárbaros asiáticos (Isaac, 2004). Os gregos representavam os ideais europeus e, uma vez derrotados os persas, a expansão da civilização europeia por outras terras seria uma mera questão de tempo. As crenças ambientalistas forneciam ímpeto a esse discurso, aceitando que o clima tornaria os europeus mais aptos para o combate e a dominação enquanto os asiáticos, corruptos e amaciados pela riqueza, pela dissolução moral, fisicamente degenerados pelos governos despóticos e afeminados pela tepidez do clima, jamais poderiam se opor ao extraordinário destino que aguardava a civilização europeia.
A representação dos persas entre os romanos pouco difere da elaborada pelos gregos, cingindo-se a reproduzir as acusações tradicionalmente levantadas contra os inimigos de guerra. Traiçoeiros, truculentos, pérfidos, brutais, selvagens, dissolutos, impetuosos, insolentes, corruptíveis… a lista de adjetivos é enorme; um a mais ou outro a menos, pouco bastaria para desqualificá-los o suficiente.
Romanos e cartagineses O estudo dos estereótipos sobre os romanos na Antiguidade deve ser entendido como uma via de mão dupla, na qual se festeja a conquista e o ideal de um império de fronteiras intermináveis forjado às custas de batalhas e subordinação de povos valorosos, porém de qualidades inferiores já que foram derrotados, e o temor de que a vida dos valentes romanos nestes locais de dissolução e de imoralidade poderia acarretar o enfraquecimento dos soldados do exército imperial e trazer à Roma, o centro do mundo, imigrantes que patrocinariam cultos estranhos, costumes dissolutos e hábitos nefastos.

Gregos, judeus, asiáticos e todos os povos considerados inferiores representavam uma ameaça à integridade do império e não poucos tribunos, retóricos e políticos se dedicaram a acentuar o quanto os atributos negativos dos estrangeiros eram perigosos, o que permitiu construir uma narrativa na qual se festejava a superioridade dos romanos e de Roma e os perigos da proximidade com os povos submetidos. A Roma eterna, cujas fronteiras alcançavam os limites do desconhecido, sofria da própria grandeza, das conquistas e dos germes invisíveis importados nas bagagens dos soldados de volta dos campos de batalha e infestados no batalhão de submetidos trazidos sob grilhões. O grande temor dos romanos era o de que a grandeza do império poderia ser a razão da própria derrota, sendo imprescindível acender todos os sinais e ativar todos os alertas sobre os perigos que vêm de fora. O que corromperia mais do que usufruir sem limites as riquezas dos vencidos? Como manter a dignidade se o luxo poderia ser encontrado em todos os sítios? Como permanecer na retidão moral se um punhado de vícios estava ao alcance, na dobra de cada esquina? O que seria de Roma, a eterna Roma, se os seus valorosos cidadãos se deixassem arrastar pelos prazeres do mundo e mergulhassem na degenerescência imoral dos conquistados? Os estereótipos sobre os estrangeiros são decisivos na construção da imagem e da elaboração dos estereótipos referentes ao próprio povo; se os romanos sabiam não ser tão numerosos quanto os hispanos, artísticos quanto os gregos, espertos quanto os fenícios ou fortes quanto os gauleses, não encontravam dificuldades em se reconhecerem, e em serem reconhecidos, como o povo escolhido para se impor sobre todas as nações (Isaac, 2004).

Na Roma antiga, os cartagineses foram objeto de uma intensa estereotipia. A reputação deste povo, oriundo dos fenícios, também os distinguia como arrojados marinheiros, hábeis em estabelecer assentamentos e empreender negócios. Os negociantes são frequentemente objeto de estereótipos e a associação entre os termos fenícios e negócios pode ter criado a reputação de que se tratava de um povo sem palavra, sempre voltando atrás naquilo previamente combinado, donde a expressão punica fides, popularizada pelos romanos para se referir a quem não honra a palavra empenhada.
Depois de três guerras contra os cartagineses, entre 264 e 146 antes da era moderna, naturalmente começaram a circular entre os romanos a crença de que todo os cartagineses, e não apenas os soldados regulares, eram particularmente cruéis, como também eram os seus comandantes que não vacilavam em ordenar aplastar o corpo dos inimigos capturados sob as enormes patas dos elefantes de campanha. A esta acusação se acrescentava a suposição de que, em algumas circunstâncias, adotavam o costume do canibalismo e a prática religiosa de imolar vítimas humanas, sacrificando-as aos deuses (Isaac, 2004).
Voltando à expressão punica fides que supostamente retrata os cartagineses, pode-se assinalar que ela contribuiu muito mais para moldar a identidade social dos romanos, utilizando as características negativas dos outros como contraponto àquilo que consideravam positivo na própria identidade. Se os romanos se viam como respeitadores dos tratados, acusavam os cartagineses de não os levarem a sério quando as circunstâncias o exigiam; se os romanos se viam como seres civilizados, consideravam os cartagineses traiçoeiros; se se viam como sinceros, aqueles eram enganadores, iníquos e soberbos. De onde vieram estes estereótipos? Uma interpretação possível se assenta no entendimento de que a destruição de Cartago na terceira guerra púnica foi absolutamente prescindível, pois o domínio do Mediterrâneo pelos romanos já se cristalizara. Como justificar o ato de dizimar uma civilização? Como enfrentar as admoestações dos estrangeiros de que uma civilização foi desnecessariamente destruída? Simplesmente mediante o vilipêndio infligido aos derrotados, a partir do desenvolvimento de argumentos acusatórios destinados a arrasar a reputação e a humanidade dos vencidos (Gruen, 2011).

Gauleses, germanos e bretões
A tentativa de dominar outros povos parece ser um terreno fértil para a criação e difusão de estereótipos, particularmente sobre aqueles que contrapõem uma intensa resistência a serem conquistados. Os estereótipos cultivados pelos romanos a respeito dos gauleses, contra os quais Júlio César lutou durante quase uma década, reforçam este entendimento. Eles eram retratados como altos, fortes e musculosos, o que explicaria a resistência às investidas das forças romanas; ao mesmo tempo, eram reputados como beberrões convictos, orgulhosos, dissimulados, nada confiáveis, irascíveis, pouco persistentes e absolutamente sujeitos às influências supersticiosas dos druidas e bardos. Estas características negativas justificavam porque jamais teriam conseguido se furtar a serem submetidos, mesmo sendo fortes e valorosos.

A relação dos romanos com os germanos, um conjunto de tribos que viviam de forma quase nômade, em harmonia com a natureza, forjados pelo gelo e pela neve e em condição de quase pobreza, tornou-se particularmente desarmoniosa após a conquista da Gália e a aproximação dos romanos com os territórios situados além das margens do rio Reno. Os constantes ataques e as incursões ferozes de algumas tribos germanas contribuíram para a formação de estereótipos que os caracterizavam como gente pouco confiável e inimigos sorrateiros. Sêneca, o poeta, estabeleceu uma analogia entre os germanos e os animais, sugerindo que a vida livre e selvagem característica dos germanos os aproximariam muito mais de bichos como lobos e leões do que dos humanos, entes bem mais fáceis de serem submetidos e governados (Isaac, 2004). Após discorrer genericamente sobre os germanos, valorizando-os pelos ideais de pureza, simplicidade, por viver a vida em comunhão com a natureza e o respeito às mulheres e à prole, o historiador Cornélio Tácito (1952) descreveu as particularidades de algumas tribos da Germânia. Aos catos acusou de adotarem o costume de deixarem crescer o cabelo e a barba até terem abatido a um inimigo no campo de batalha; daí a origem da expressão popular barba, cabelo e bigode. Sobre os cheruscos asseverou que se faziam notar pela covardia e estultice, atributos que os tornavam diferentes dos suevos, que eram apenas sujos e preguiçosos. Muitos cuidados deveriam ser tomados em um fortuito encontro com os fenos, um bando de salteadores, selvagens e miseráveis. Em relação aos helúsios e oxiômes, mesmo considerando o relato um tanto lendário, não deixou de acenar quão estranho seria se defrontar com estes estranhos seres de cabeça e rosto humanos e membros de feras.

Importante assinalar, no entanto, que os estudiosos da obra de Tácito aludem que os argumentos a respeito dos germanos se referiam muito mais à fantasia dos romanos do que às características próprias dos povos da Germânia; o que não difere muito do uso que tem sido feito das representações estereotipadas até nos nossos dias.
Como não poderia deixar de ser, por conta da expansão do Império Romano, os habitantes da Bretanha também foram objeto de estereótipos a se considerar a advertência de Cícero a Ático para não adquirir escravos na Bretanha, pois estes seriam tão estúpidos, incapazes e desprovidos de qualquer possibilidade de aprender que não se prestariam a fazer parte de um lar civilizado (Biesanz & Biesanz, 1972).
Judeus
Segundo Delacampagne (1995), uma das primeiras diatribes contra os judeus registradas na história se deve ao sacerdote egípcio Manetone, que em 275 antes do presente escreveu, em grego, uma História do Egito, no qual registra que os judeus expulsos do Egito eram portadores da lepra, então reputada como uma doença hereditária. Esta representação alcança o século I, época em que já estava estabelecido o estereótipo, comum entre os gregos e posteriormente entre os romanos, dos judeus como um povo imundo, marcados por um odor característico que causava náuseas aos olfatos mais sensíveis.

Os judeus foram objeto de inúmeros estereótipos cultivados no Império Romano, particularmente na época do cerco a Jerusalém pelas tropas romanas no ano 70. A interpretação predominante era a de que a percepção dos romanos sobre os judeus não era nem a de fobia, nem a de acolhimento e sim a de uma relativa indiferença vez que se tratava de um povo até interessante, embora não tanto quanto os egípcios ou os fenícios. Um interesse maior pelos judeus se tornou manifesto apenas com a difusão e a popularização do cristianismo em razão deles passarem a ser vistos como um dos poucos povos que se furtaram à onda da cristianização e preservaram religião e os costumes autóctones (Bohak, 1997).
O determinante demográfico pode ser considerado um elemento importante na elaboração dos estereótipos dos romanos sobre os judeus; ao contrário de outros grupos nacionais e étnicos cujo quantitativo não era digno de nota, os judeus representavam uma comunidade numericamente importante entre os estrangeiros residentes na cidade de Roma (Isaac, 2004). Ao chamar a atenção pelo tamanho da comunidade, pelo envio corriqueiro de contribuições financeiras para o Templo de Salomão em Jerusalém, pela ausência sistemática de contato com outros grupos, pela natureza relativamente diferenciada das práticas alimentares e pelo exotismo dos ritos religiosos como guardar o Sabbath e circuncidar os filhos, desenvolveu-se o estereótipo de que se tratava de um povo antissocial, que se afastara dos deuses e marcado por uma inclinação toda própria para a luxúria. Os seus ritos eram vistos como desqualificados e as restrições alimentares objeto de zombarias, como bem se retrata nas obras de Cornélio Tácito e de Sêneca, nas quais esses hábitos eram reputados como perniciosos, a se considerar as palavras colocadas na boca do poeta por Santo Agostinho (Gruen, 2011).
No contexto específico do Mediterrâneo, registra-se uma das medidas mais antigas de discriminação no Concílio de Elvira, celebrado no século IV na Hispânia romana, no qual se proibia aos cristãos, sob pena de serem excluídos da comunidade cristã, compartilhar a mesa com os judeus, uma medida menos dura, se comparada com outras, nas quais se ameaçava de excomunhão a todo cristão que permitisse um judeu benzer a colheita ou atrevido o suficiente para estabelecer laços matrimoniais com um judeu. Muitas práticas discriminatórias em relação aos judeus sobreviveram durante a ocupação muçulmana da Europa e persistiram mesmo com a reconquista cristã, época a partir da qual começa a aparecer a ideia de se conduzir testes de pureza racial para identificar aqueles em que não corria o puro sangue europeu nas veias. Esta prática atravessou parte da idade moderna, tendo sido abolida apenas em 1835 (Delacampagne, 1995).
Numa tentativa de discorrer sobre uma das marcas registradas do racismo no mundo antigo e medieval, Delacampagne indagou sobre a época em que surge o antissemitismo na Europa medieval e, mesmo acenando para algumas datas mais marcantes, nos deixa sem resposta. Teria sido no início do cristianismo, quando os evangelhos foram escritos, a exemplo do de São João, no qual o judaísmo servia de contraponto à formalização da doutrina cristã? Ou teria sido em 313, quando o cristianismo se torna religião de estado? Ou na Gália, entre 558 e 629, quando os judeus se viram forçados a se batizar e foram alvos de inúmeros episódios de violência? Ou então no século XIII, quando Luís IX estabeleceu um estatuto especial relativo aos judeus, acusando-os de praticarem homicídios rituais ou de profanarem a hóstia sagrada dos católicos? Ou ainda no século XIV, com os assassinatos seletivos da população judia em Navarra e na Andaluzia? Ou apenas no século XVIII, quando os discursos religiosos e moralizadores que até então serviam de fundamentos para a discriminação cederam lugar a arrazoados que consideravam o povo judeu biologicamente inferior e corrompido pela própria natureza? A resposta exata para esta questão, claro, não é decisiva, pois cada alternativa oferece diferentes interpretações e ajudaram a amalgamar uma constelação de crenças estereotipadas. Estes estereótipos decerto contribuíram para oferecer legitimidade a um número substancial de políticas de exclusão e segregação, cujos exemplos mais marcantes estão associados com as recorrentes expulsões dos judeus: da França em 1182, 1306, 1322 e 1394; da Inglaterra, em 1290; da Alemanha, em 1343. Em que medida este conjunto de acontecimentos contribuiu para a formação do estereótipo do judeu errante e reforçou no imaginário da antiguidade as crenças sobre um povo maldito, condenado a vagar sem rumo a procura de uma inalcançável terra prometida?
Bárbaros e vândalos
Se o mais comum na elaboração dos estereótipos sobre os povos da antiguidade era vincular determinadas características psicológicas com os nomes dos grupos sociais aos quais aquelas eram associadas, dois casos merecem destaque particular, o dos bárbaros e o dos vândalos. O conceito de vandalismo permanece até hoje associado às noções de crueldade e destruição, ainda que, na sua origem, se referisse apenas aos vândalos, um povo que viveu no norte da África e que se dedicava a fazer incursões e ataques a algumas regiões do mediterrâneo com uma certa frequência, sendo muito conhecido o cerco à cidade de Hippo, onde vivia Agostinho, o santo.
O termo bárbaro possui uma conotação diferente, pois se com os vândalos encontramos uma situação na qual um substantivo evolui até se transformar em adjetivo, o termo bárbaro, ainda que tenha uma história prévia, foi popularizado pelos gregos para se referir ao balbucio incompreensível dos estrangeiros marcado por sons guturais em nada semelhante aos maviosos sons do linguajar grego. Um outro indicador do barbarismo de alguns povos era se deixarem submeter a governos despóticos e não terem desenvolvido um regime político tão sofisticado quanto a democracia grega. Com o passar do tempo, o termo mudou de concepção, cristalizando-se em definitivo na antiguidade clássica ao ser associado aos povos não subordinados à civilização imposta pela pax romana, em particular, as tribos germânicas que frequentemente invadiam e conquistavam porções do Império Romano.

Indianos
A ocupação da Índia se inicia há cerca de 3.500 anos, a partir de um fluxo populacional oriundo da Ásia Central e que se estabelece no vale do Rio Indo. A civilização harappiana floresceu durante entre 2500 e 1600 antes do presente, em seguida refluiu provavelmente em decorrência de fatores climáticos, até sucumbir sob o peso das armas dos invasores nômades arianos.
As informações que dispomos sobre os arianos são bem mais abrangentes que as disponíveis sobre os harappianos, particularmente por estarem registradas em um conjunto de escritos que se convencionou denominar Vedas, nos quais podem ser encontrados alguns indicadores sobre a vida na sociedade indiana no período clássico.
A visão de ser humano dos invasores se assentava em uma diferenciação quadripartite, organizada a partir de uma analogia com as diferentes partes do corpo humano (Flaherty, 1990; Venchi, 2020). Na parte superior, a boca, associada, aos brâmanes, os humanos dedicados à recitação dos mantras, aos cuidados rituais e à meditação. Os troncos e os braços se associavam com a categoria dos guerreiros, os xátrias, cujo papel era oferecer proteção aos rituais e, consequentemente, aos brâmanes. A parte inferior do corpo, representada pelas pernas, estava associada com os vaixás, um termo genérico que se refere aos agricultores, comerciantes e escultores e, por fim, no ponto mais baixo da escala, os pés, a parte mais suja do corpo, representada pelos sudras, os intocáveis.

Na Índia ariana o termo mleccha era adotado para se referir aos sons desagradáveis emitidos por todos aqueles que não dominavam o sânscrito. De acordo com Thapar (1971), tratava-se de uma estranha situação, na qual um grupo sedentário era considerado inferior a um outro que se encontrava em condição de nomadismo. Com o avançar do tempo e estabelecido o domínio territorial e político pelos arianos, o termo bárbaro assumiu uma conotação mais ampla, passando a ser utilizado tanto para aludir a grupos linguísticos cuja linguagem era incompreensível, como também para se referir aos povos que viviam em florestas ou em regiões remotas, a exemplo dos habitantes do Himalaia. A relação das estranhas raças cujas vidas transcorriam ao largo da civilização foi recenseada pelo geógrafo grego Megástenes que viajou pela Índia no século IV antes do presente. Além dos pigmeus já conhecidos dos gregos pela obra de Homero, Megástenes se referiu a outros povos fabulosos: um que tinha os pés com oito dedos virados para trás; um povo da montanha, cujas vestes eram feitas com animais e que tinham a cabeça de cachorro em lugar da humana; uma raça de povos nômades que no lugar das narinas apresentam apenas uns orifícios e falavam sibilando como as cobras; um povo que vivia nos confins das montanhas, não era dotado da cavidade oral e se alimentava apenas dos odores das plantas e raízes que conseguiam aspirar (McCrindle, 2008).
Ao longo do tempo, o termo bárbaro, de modo semelhante ao que ocorrera na cultura ocidental, amplia os alvos de referência, passando também a ser utilizado para aludir, no contexto do sistema de castas, a toda e qualquer pessoa associada às categorias consideradas impuras, assim como também para se referir aos invasores estrangeiros, particularmente hunos e, posteriormente, turcos, que, por sua parte, consideravam os pagãos indianos um tipo de gente feia, escura e servil (Armstrong, 1996).
Conclusões sobre os estereótipos na antiguidade
Para sintetizar algumas destas crenças estereotipadas e facilitar o acompanhamento do até aqui assinalado incluímos um grafo (figura 29), no qual visualizamos as relações entre os entes sociais objeto de julgamento estereotipado e algumas das principais teorias implícitas aplicáveis a estes grupos durante a antiguidade. Os fundamentos a partir dos quais as teorias foram elaboradas sugerem o quanto elementos inerentes ao ambiente, particularmente as diferenças entre o Ocidente e o Oriente e entre a Europa e a Ásia, ocuparam um papel destacado na elaboração das teorias implícitas. Além deste elemento contextual, também assinalamos o papel decisivo desempenhado pelas teorias implicitamente acolhidas a respeito das características dos indivíduos e de como elas foram adotadas para estabelecer diferenciações no interior de uma mesma sociedade. Estas características foram interpretadas como atributos transmitidos e herdados pelas gerações posteriores e contribuíram para a formulação de teorias implícitas ainda mais especializadas a respeito das características particulares dos vários povos. Assinalamos, ademais, a importância das teses hierarquizadoras e como elas levaram ao entendimento de que, tanto os indivíduos quanto os povos, poderiam ser posicionados ao longo de uma escala na qual se estabelece a diferenciação entre os melhores, nascidos para dominar e, os demais, sujeitos a um destino funesto que lhes reservara apenas o direito de ocupar os sítios inferiores.
Os fundamentos a partir dos quais as teorias foram elaboradas sugerem o quanto elementos inerentes ao ambiente, particularmente as diferenças entre o Ocidente e o Oriente e entre a Europa e a Ásia, ocuparam um papel destacado na elaboração das teorias implícitas. Além deste elemento contextual, também assinalamos o papel decisivo desempenhado pelas teorias implicitamente acolhidas a respeito das características dos indivíduos e de como elas foram adotadas para estabelecer diferenciações no interior de uma mesma sociedade. Estas características foram interpretadas como atributos transmitidos e herdados pelas gerações posteriores e contribuíram para a formulação de teorias implícitas ainda mais especializadas a respeito das características particulares dos vários povos. Assinalamos, ademais, a importância das teses hierarquizadoras e como elas levaram ao entendimento de que, tanto os indivíduos quanto os povos, poderiam ser posicionados ao longo de uma escala na qual se estabelece a diferenciação entre os melhores, nascidos para dominar e, os demais, sujeitos a um destino funesto que lhes reservara apenas o direito de ocupar os sítios inferiores.
2.3.3. Mundo medieval
Denomina-se medieval o período que se estende por quase mil anos, cujo marco inicial foi a queda do Império Romano no ano 47. O período medieval pode ser considerado uma era de paradoxos, pois se pode ser considerada a idade da fé, face à imensa espiritualidade que marcou o período, como se depreende pela construção de catedrais de imponente beleza, pelos incessantes peregrinos a se espalharem nas estradas e caminhos e os inúmeros cruzados a tentarem resgatar o cálice sagrado na longínqua Terra Santa, também pode ser qualificada como uma época de corrupção das instituições, de culto à morte, de obscenidades e de xenofobia (Hughes, 2006). Isto se refletiu no surgimento de termos e expressões, de base religiosa, cunhadas com a finalidade de desqualificar o outro, em particular, aqueles que se dedicarem à reforma da Igreja Católica. O termo perversão exemplifica bem esta tendência, ao aludir a uma condição oposta à conversão. O perverso é aquele que pela sua própria natureza não pode ser considerado um membro da comunidade cristã (Hughes, 2006).
Esta é a marca decisiva dos bárbaros no mundo medieval. As crenças sobre os bárbaros, como vimos, ocuparam uma posição central no imaginário dos povos da antiguidade, sendo utilizadas para estabelecer a diferenciação dos habitantes de um ideal mundo civilizado em contraposição aos povos que viviam fora dos limites da sociedade helenista e, posteriormente, do mundo abarcado pelo Império Romano.
Jones (1971), numa monografia dedicada ao estudo da imagem dos bárbaros na Europa medieval indica que, uma vez soçobrado o poder político do Império Romano entre os séculos V e VII, o sentido habitual atribuído até então ao termo bárbaro se tornou insustentável. A manutenção desta classificação imporia que a Europa como um todo, dominada por povos como os germanos, os ostrogodos, os visigodos, os vândalos e os francos, tivesse de ser considerada bárbara. Isso, claro, tornaria o termo sem sentido, pois a persistência do uso tradicional obrigaria tais povos a aplicarem o termo bárbaro em referência a si mesmos, o que seria um contrassenso.
Com a crescente conversão dos reis e da população da Europa ao cristianismo e a forte influência exercida pelas instituições e práticas religiosas nos costumes e na sociedade, o termo bárbaro logo conhece um deslize no significado e passa a se referir sobretudo aos pagãos. Com isso, perde o caráter cultural com o qual estava investido na antiguidade clássica e ganha uma forte conotação religiosa, passando a ser utilizado para fazer alusão os povos não subsumidos pela fé cristã. No entanto, essa nova concepção não impediu a preservação das antigas associações semânticas, imputando aos bárbaros atributos psicológicos extremamente negativos como as noções de brutalidade, ferocidade e traição. A partir de então, o termo passa a aludir principalmente aos eslavos, aos vikings e aos sarracenos; ou seja, àqueles povos ainda situados fora da crescente zona de influência do cristianismo.
Segundo o mesmo Jones, no período tardio da Idade Média o termo conheceu mais um deslize de significado passando a ser aplicado aos infiéis muçulmanos numa acepção por certo confusa, pois poderia tanto se referir aos povos berberes habitantes do norte da África quanto aos turcos, cuja imagem se tornara particularmente negativa no final da Idade Média devido aos relatos de mercadores gregos e italianos que acompanharam in loco o cerco e a tomada de Constantinopla.
Qual seja o significado assumido, o principal contexto no qual o termo continuou a ser adotado não diferia de forma significativa do encontrado no mundo antigo, referindo-se ao conflito de longa duração entre os que se viam como civilizados e aqueles que eram percebidos como alheios ao alcance da civilização, a exemplo das tribos germânicas nos séculos VI e VII, dos mongóis nos séculos XIII e XIV, e dos infiéis otomanos durante o período das cruzadas.
Conforme assinala Bethencourt (2020), na época das cruzadas, um período no qual as invasões e as execuções dos infiéis se tornaram motivo de honra e orgulho, os estereótipos visuais eram amiúde adotados para, resguardada uma certa distância física, identificar os inimigos, em especial aqueles que representavam uma ameaça existencial imediata. Um encontro fortuito com uma expedição viking entre os anos 800 e 1050 não deveria ser uma experiência tranquila dada a descrição deste povo como feroz e obstinado por espoliar os bens dos incautos que se deixavam capturar. Os estereótipos assim entendidos poderiam ser interpretados como mapas mentais ou princípios orientadores e cumpririam um papel funcional de proteção já que forneceriam um certo senso de segurança em uma longa jornada, amiúde insegura e sujeita a percalços, intempéries e emboscadas. A ideia de mapas mentais ou de princípios orientadores respalda o entendimento de que cada sociedade cultivava a respeito das outras um conjunto de representações marcadas por elementos que poderíamos, à luz do nosso conhecimento atual, configurar como assentada em generalizações. Os exageros na avaliação deveriam ser interpretados como o resultado de um processo de simplificação funcionalmente válido, a partir do qual se tornava mais fácil assegurar a diferenciação imediata entre os aliados e os que poderiam ser classificados como inimigos.
2.3.3.1. Imagens e identidade nacional
Na época da formação dos estados nacionais é possível postular um importante papel desempenhado pelas crenças estereotipadas, particularmente pela facilidade com que elas poderiam ser adotadas para fundamentar estratégias discursivas destinadas a amalgamar materiais simbólicos e pictóricos importantes para a diferenciação étnica e construção das identidades nacionais.
Em um estudo a respeito das representações estereotipadas acolhidas pelos universitários radicados em Paris no século XII, Weeda (2010), após assinalar a frequência das dissenções e disputas entre os estudantes em função das suas vinculações nacionais e o quão estas condutas incomodavam aos tutores, passa a recensear um farto catálogo dos estereótipos em circulação na comunidade de estudantes da Universidade de Paris: os ingleses, beberrões; os franceses, arrogantes, fracos e afeminados; os germanos, furiosos e de maneiras desagradáveis; os normandos, fúteis e orgulhosos; os bretões, frívolos e inconstantes; os lombardos, gananciosos, maliciosos e covardes; os romanos, sediciosos, violentos e avaros; os sicilianos, tirânicos e cruéis; os flamencos, autoindulgentes, ricos e comilões.
É interessante notar na interpretação de Weeda que os estereótipos acima listados constituem uma novidade; exceto os aplicados aos germanos e italianos, não se tem constância de terem sido documentados nos séculos anteriores, representando produtos do próprio século XII e do contexto social e histórico no qual se situavam aqueles estudantes e os grupos nacionais aos quais os estereótipos se referiam. Reforça-se o entendimento de que os estereótipos podem ser interpretados como mecanismos utilizados pelos membros de um grupo com a finalidade de reforçar a própria identidade mediante a desqualificação e desvalorização dos outros grupos, uma tese que ganhará popularidade na psicologia social europeia na segunda parte do século XX. O atributo covarde reflete bem a formação destes novos estereótipos. Origina-se do termo coart, cauda, e foi introduzido na linguagem corriqueira em torno de 1250, na França, a partir da analogia com a retração da cauda dos animais derrotados como elemento de sinalização para um oponente, um indicador do uso consistente da analogia com os animais como um recurso recorrente na formulação dos estereótipos (Hughes, 2006).
Conforme assinala Bethencourt (2020), a avaliação negativa dos outros grupos e a concomitante aplicação dos estereótipos possui uma conotação relacional, vez que o bom muçulmano Ibn Khaldûm (1332-1406) se referia aos muçulmanos da Península Ibérica onde residiu, quando comparados com os verdadeiros seguidores do islã, como fracos de espírito e sem sentimento de pertença ao grupo, já que lhes faltavam o instinto de cooperação e capacidade de ação necessária para resistir às investidas dos inimigos cristãos. Neste universo de enfrentamentos entre os grupos, a atribuição de características negativas aos oponentes era imperativo. Os ingleses acusavam os irlandeses de falta de higiene por adotarem cabelos compridos, não se barbearem ou usarem calçados e serem chegados à bestialidade. Para enfatizar a natureza relacional dos estereótipos e preconceitos, Bethencourt (2020) também se vale da obra do geógrafo Abd Allah Yaqut (1179-1229) ao acentuar que este se referia com desprezo aos sicilianos, acusando-os de serem capazes de ultrapassar os judeus em imundície e desonestidade. Esta mesma tendência relacional fica ainda mais nítida se consideramos o comentário de um intelectual árabe do século XI: “As raças ao norte dos Pirineus são de temperamento frio e nunca atingem a maturidade, são de grande estatura e de cor branca, mas não possuem agudeza de espírito e de penetração intelectual” (Biesanz & Biesanz, 1972).
O caso dos judeus se reveste de importância nas discussões a respeito do surgimento e da sobrevivência dos estereótipos porque, se não foram alvos de estereótipos particularmente negativos na antiguidade, a partir do período medieval se tornaram objeto preferencial de representações muito negativas, especialmente no que concerne à acusação de terem sido os responsáveis pela crucificação de Jesus Cristo. Talvez, por isso, tenham sido retratados como possuidores de uma inclinação perfeitamente natural para a realização de rituais diabólicos.

Felsenstein (1990) chama a atenção da persistência destas representações na Inglaterra, perguntando-se como os estereótipos negativos sobreviveram se os judeus foram expulsos em 1290 por um decreto do Rei Eduardo I, retornando apenas em 1655. A persistência das crenças estereotipadas na ausência física dos alvos sugere que uma representação estereotipada pode ser interpretada muito mais como uma versão imaginária, irreal e fantasiosa do uma descrição fundamentada em elementos de realidade. No caso particular dos judeus na Inglaterra, essa tese se reforça se considerarmos algumas particularidades dominantes na sociedade inglesa da época com relação aos estereótipos sobre os judeus: 1) por serem os responsáveis pela morte de Jesus Cristo, os judeus passaram a exalar um cheiro acre característico que milagrosamente se transformava num odor mais doce do que a ambrosia no momento em que eram premiados com o batismo cristão; 2) por Pedro ter negado a Cristo por três vezes, os judeus eram dotados de uma propensão absolutamente natural a xingar e a se servirem de uma linguagem profana e grotesca; 3) por causa do sangue de Cristo derramado na cruz, tanto os homens quanto as mulheres estavam condenados a menstruar mensalmente e a sofrerem frequentes hemorroidas; e 4) por serem extremamente lascivos, nunca se furtavam a perpetrar orgias com meninos e meninas em rituais nos quais as cerimônias cristãs eram parodiadas (Felsenstein, 1990).
A atribuição de características negativas não se restringia aos judeus e nem se fundamentava apenas em arrazoados religiosos. De modo geral, os grupos nacionais e étnicos se tornaram objeto de descrições que nem de perto poderiam ser consideradas positivas ou de valorização. Os africanos foram retratados como selvagens, indolentes e pouco inteligentes; os turcos, como infiéis; os bizantinos, vistos como maus; os eslavos, representados como covardes; os indianos, tratados como promíscuos. Não poucos documentos, elaborados sobretudo por intelectuais e autoridades religiosas, esmeraram-se em identificar uma série de adjetivos moralmente reprováveis aplicados aos infiéis: os sarracenos imorais; os sírios desonestos; os egípcios afeminados; os árabes fracos; os judeus usurários. Intelectuais de renome e muito prezados na história do pensamento filosófico não se encontravam imunes a estas interpretações estereotipadas, a exemplo de Santo Tomás de Aquino que associava os judeus à escravidão perpétua e não fazia questão de esconder a opinião de que estes dependiam da usura para a sobrevivência econômica. O renomado historiador de ascendência árabe Ibn Khaldûn, numa obra de introdução à história, acentuou que os negros se prestam à escravidão porque, praticamente, nada possuíam que fosse essencialmente humano, assemelhando-se muito mais aos animais irracionais por viverem nas matas ou escondidos em cavernas, em um isolamento selvagem, alimentando-se de ervas que conseguiam encontrar, embora fossem mais chegados a se banquetear uns aos outros (Bethencourt, 2020).
Esta tendência a minimizar as características positivas e enfatizar as negativas perdura por toda a Idade Média e alcança a modernidade. O poeta e filósofo escocês James Beattie (1735-1803) ao discutir o contexto político do século XVIII sugeriu que todas as nações europeias, e talvez do mundo, seja nas questões de traje ou de conduta, ridicularizavam-se mutuamente (Rothbart, 1995).
2.3.3.2. Os estereótipos e o conhecimento
O papel dos doutores cristãos e dos intelectuais árabes na criação e difusão dos estereótipos não pode ser desprezado. Mais do que uma particularidade que afligiria especificamente alguns povos, devemos entender este movimento como uma tendência geral; sobretudo se considerarmos a nossa interpretação de que os estereótipos dependem da formulação de teorias implícitas, o que nos habilita a sustentar que o ambiente no qual os intelectuais circulam deve ser considerado um espaço privilegiado para a criação e difusão dos estereótipos, os quais encontram um forte nicho de expressão nos livros didáticos, nos romances, bem como nas canções, gestas e anedotas registradas pelos estudiosos da cultura popular.
As artes, a exemplo da escultura e da pintura, ocuparam um papel nada desprezível na formulação e difusão dos estereótipos ao incrementarem associações entre, por exemplo, a cor preta e uma série de referências negativas como o pecado, o mal, as trevas, a imundície, a infidelidade, o luto e o infortúnio (Bethencourt, 2020). A associação entre as características simbólicas da cor preta aos negros reflete esta tendência, parecendo-nos lícito admitir que o poder comunicacional e persuasivo dos símbolos impediu a ruptura destes significados que, ainda hoje, estão entranhados na nossa linguagem cotidiana ao enunciarmos sentenças como “isto aqui está preto!” ou “um futuro negro se avizinha para todos nós!”
Os livros e manuscritos também foram decisivos na difusão dos estereótipos. No caso dos tratados médicos, isso se tornou claro no empréstimo tomado à antiga teoria dos humores até então adotada para diferenciar os indivíduos como um recurso retórico destinado a postular diferenças entre os grupos nacionais, por exemplo, ao se sustentar que os europeus do norte eram fleumáticos ou que os judeus eram melancólicos (Weeda, 2014). Os poucos livros publicados na época, independente da área de conhecimento, retratavam e difundiam imagens estereotipadas, tal como observado no título de uma obra cuja capa é reproduzida na figura 31.

Uma outra área de conhecimento na qual a utilização de estereótipos ocupou uma posição preponderante foi a geografia, particularmente com a elaboração dos mapas do mundo que se tornaram muito populares a partir do século XII. Nestes mapas, elementos pictóricos, cuja base poderia ser encontrada na antiga disciplina da fisiognomia, foram utilizados com a finalidade de identificar as características físicas e psicológicas dos povos que viviam espalhados em um vasto mundo que começara a se descortinar. Belos mapas do mundo como os de Pietro Visconti (1320), o atlas catalão (1375), o de Mecia de Viladestes (1413), o mapamundi dos Borgia (1450), o genovês (1457), o português (1471) e o Atlas de Diego Homem (1565) se tornaram objeto de desejo das camadas letradas e se encarregaram de difundir representações estereotípicas sobre os não-europeus, mediante o uso profuso de imagens de indivíduos associadas aos povos de origens raciais diversas, usualmente acompanhadas de descrições vívidas sobre as características físicas, psicológicas e costumes destes estranhos personagens. Para o leitor mediano da época se tornara claro que o mundo se estendia além das fronteiras conhecidas e que os costumes civilizados, aparentemente naturais, não eram acolhidos em todos os sítios e nem valorizados em todos os cantos.
2.3.3.3. Classificações e taxionomias
A preocupação com a identificação das diferenças físicas, psicológicas e morais entre os povos ganhou corpo com o avanço da Idade Média. Os intelectuais árabes desenvolveram um esquema classificatório das civilizações no qual estavam incluídos persas, sírios, gregos, romanos, líbios, turcos, indianos e chineses, diferenciados segundo suas qualidades, defeitos e a aparência física. Com a apropriação dos textos árabes pelos estudiosos europeus, muitas destas formulações se tornam a base da difusão dos estereótipos ao longo do período de expansão colonial europeia (Bethencourt, 2020).
O catálogo dos povos existentes na Terra, de inspiração bíblica, tal como antecipado pelo historiador romano Flávio Josefo (37–100), sistematizado por Santo Agostinho (354-430) e padronizado na enciclopédia do conhecimento da época publicada no século VI por Isidoro de Sevilha (560-636), assegurava a existência de 73 povos descendentes de Noé, 15 dos quais oriundos de Jafé e seus filhos, 31 da descendência de Sem, enquanto os restantes 27 se deviam à ascendência do filho caído em desgraça, Cam. Ainda que catalogar estes povos seja uma empreitada necessariamente imprecisa, uma listagem relativamente incompleta pode ser visualizada na figura 32.
Se atentarmos para as épocas em que viveram Isidoro de Sevilha ou Santo Agostinho não encontraremos dificuldades em reconhecer quão bem sobreviveu a interpretação religiosa com relação às características destes povos, sendo identificados relatos com poucas mudanças dignas de nota, cujo início remonta à antiguidade cristã, atravessa todo o período medieval e alcança praticamente intacto o início da idade moderna. A interpretação predominante sobre as características destes povos decerto foi marcada por exageros e generalizações sem fundamentos, achando-se frequentemente entremeada por alusões a povos monstruosos ou aos habitantes dos antípodas, não sendo difícil entender o quão estas caracterizações devem ter exercido um efeito marcante nas percepções mútuas entre os povos por mais simplificadoras, exageradas ou fantasiosas que tenham sido.
A necessidade de elaborar narrativas cada dia mais descritivas e persuasivas a respeito das relações entre os povos ou etnias fortaleceu a preocupação com a criação de um movimento intelectual dedicado a descrever e caracterizar os diversos grupos. Dada a diversidade de povos e as características por eles apresentadas, a identificação de critérios capazes de ajudar na elaboração das classificações se torna objeto de acalorados debates entre os estudiosos. Regino de Prum (842-915), ainda no século X, elaborou uma listagem na qual deveriam ser incluídos fatores como a ascendência, os costumes, as línguas e a formalização das relações estabelecidas através do direito. Um pouco depois, o geógrafo muçulmano Abu Abdulá Maomé Idrisi (1099-1165 ou 1166) ampliou esta lista, passando a incluir elementos como a aparência física, a tendência natural, a religião, os ornamentos, o vestuário e a linguagem. Estabelecia-se, cada vez mais, os elementos a serem considerados na elaboração dos relatos a respeito dos diferentes povos e, na medida em que esta listagem de critérios diferenciadores ganhava amplitude, os detalhes se tornaram decisivos, derivando-se daí a frequente utilização nos relatos de elementos estereotípicos chamados à cena para enfatizar as particularidades dos grupos-alvo (Bethencourt, 2020).
As narrativas acerca das diferenças entre os povos ganham em sofisticação a partir do momento em que surgem os primeiros catálogos dos tipos humanos. Muitos destes registros ostentam uma forma estritamente visual, conforme a análise de Bethencourt (2020) sobre o afresco criado pelo escultor Nicola Pisano (1220 – entre 1278 e 1284) em meados do século XIII, na catedral de Siena, Itália, no qual os povos africanos, nórdicos, mediterrâneos e asiáticos foram representados com a vivacidade trazida pela pintura.
Aos poucos, uma tendência presente na Antiguidade se torna hegemônica no mundo medieval, pois a elaboração das tipologias passa a caminhar ao lado do conhecimento geográfico disponível e as descrições das características dos povos se tornaram consonantes com os continentes por eles ocupados, conforme assinalado, em 1310, pelo poeta Dante Alighieri (1265-1321), ao diferenciar as características dos povos asiáticos, africanos e europeus. Esta tendência a associar algumas características estereotípicas aos três continentes é analisada por Braude (1997), ao comentar como o mito de Noé deixou de ser tratado na complexidade analítica esperada e acabou por se tornar um dos elementos de legitimação do discurso racista, a partir do momento em que a descendência de um dos filhos passou ser associada com a depravação, ao tempo em que esta noção termina associada ao continente africano. A permanência das representações religiosas sobre a origem humana pode ser observada na figura 33.

Com o decorrer do tempo, a descrição dos tipos humanos se tornou cada vez mais especializada, passando a levar em consideração as diferenças entre os povos que habitavam um mesmo continente, como é o caso da diferenciação entre os europeus do Norte, brancos, e os do Sul, mistos, criando-se, assim, um enorme potencial para a criação de estereótipos ainda mais rebuscados. A utilização de elementos fenotípicos como a cor da pele e dos cabelos facilitou a criação de narrativas das diferenças entre os povos, embora não tivessem sido os únicos critérios adotados para a elaboração das representações estereotipadas. Essas tipologias particulares, uma vez associadas a determinados grupos sociais, se tornaram espaços privilegiados para a criação e a difusão de novos estereótipos.
2.3.3.4. Novas categorias
A intensificação dos estereótipos nacionais no período medieval muda de registro a partir do momento em que um atributo até então adotado estritamente para aludir a uma categoria profissional passa a ser associado a grupos nacionais, étnicos ou religiosos. Mell (2018), fundamentando-se numa profusa bibliografia, analisa como o estereótipo de usurário, até o século XII aplicado sem nenhuma conotação nacional ou étnica específica, se transforma em um estereótipo generalizado sobre os judeus, servindo como umas das justificativas utilizadas para legitimar a expulsão deste grupo da França no século XIV.
Os estereótipos sobre as profissões ganham popularidade e se tornam cada vez mais difundidos em função da representação dos profissionais em romances, peças de teatro e crônicas literárias. Um exemplo claro desta tendência é encontrado nos estereótipos dos cozinheiros como pessoas violentas e oriundas das camadas de baixo status, frequentemente manipulados pelos aristocratas para alcançar fins inconfessáveis. Esta representação se populariza a partir do século XII conforme assegura Merceron (1998) ao analisar a utilização dos estereótipos dos trabalhadores de cozinha nas obras literárias francesas da época.
As tipologias se tornam cada vez mais especializadas com o decorrer do tempo. Em uma obra publicada em 1575, o médico Juan Huarte de San Juán, ao classificar as pessoas segundo o grau de engenhosidade, sustentou que em todas as repúblicas seria possível identificar três tipos de pessoas engenhosas, além dos verdadeiramente sábios: as que são sábias e não parecem; as que parecem sábias, mas não o são; e as que nem são e nem parecem sábias (Huarte de San Juán, 2000, cap XII).
Outros critérios também passam a ser adotados para a criação de narrativas, a exemplo da ascendência. Na Península Ibérica, a antiga teoria do sangue puro foi utilizada para diferenciar e criar narrativas capazes de fomentar atitudes estereotipadas, especialmente em relação aos judeus e muçulmanos convertidos ao cristianismo. Esta diferenciação, em si, acentua a importância das crenças religiosas na formação das representações dos diversos povos e, com base nas características supostamente atribuíveis aos crentes, passam a ser difundidos muitos estereótipos ainda presentes nas sociedades modernas.
2.3.3.5. Raça e sangue
O final da Idade Média testemunhou, na Espanha, uma nova forma de discriminação fundamentada na ideia de raça e sustentada na noção de sangue, cujas características diferiram muito das encontradas na Antiguidade, pois na antiguidade clássica os povos conquistados eram assimilados e se tornavam cidadãos da Grécia ou de Roma, desde que acolhessem a língua dominante e os hábitos e costumes dos vencedores.
Um crescente número de judeus, particularmente os que apresentavam sinais visíveis de riqueza, foram forçosamente convertidos ao catolicismo, algo que proporcionou o surgimento de uma forte inquietação entre os cristãos verdadeiros abastados. Neste contexto de embates econômicos se inaugurava a prática de diferenciar os convertidos dos cristãos verdadeiros, de raiz, impondo-se aos primeiros um conjunto de restrições sociais, políticas e econômicas, caso fosse identificado que ostentavam algum indicador de ascendência judaica nas cinco gerações anteriores. Estabelece-se, assim, uma nova prática, a prova de pureza racial, definindo-se um marcador biológico destinado a identificar diferenças intransponíveis entre as raças superiores e as inferiores. A partir de 1478, com o advento da Inquisição, as provas de pureza racial se tornam muito mais inclusivas, passando a abranger os muçulmanos conversos e os ciganos e, transplantadas para as Américas, também passam a ser aplicadas aos descendentes dos negros e indígenas (Sussman, 2014).
Conclusões sobre os estereótipos no período medieval
Em resumo, podemos afirmar que muitos estereótipos da Antiguidade continuaram a prevalecer na Idade Média, ao tempo em que outros foram modificados e ganharam uma nova roupagem. Devido ao incessante fluxo de pessoas entre as fronteiras, em decorrência das atividades comerciais, missões diplomáticas e guerras de conquista, o conhecimento das características morais e psicológicas dos diversos grupos étnicos e linguísticos se tornou uma tarefa imperativa para o europeu médio, suscitando a preocupação de conhecer, em detalhes, os costumes e as características psicológicas e sociais dos diversos povos. Com o surgimento das primeiras universidades, especialmente por causa do perfil nacional diversificado dos estudantes que as frequentavam, as descrições sobre as características nacionais se tornaram cada vez mais objeto de interesse e de estudos, principalmente porque os debates em torno das identidades nacionais não raro se transformavam em altercações resolvidas pelas vias de fato. As discussões sobre as características que impunham diferenças entre os povos se tornaram objeto de reflexão e discussão, tanto por parte daqueles versados nas minúcias das discussões filosóficas quanto nos que se dedicavam à retomada das disciplinas científicas. Uma vez que os estereótipos eram elaborados a partir de teorias do senso comum, e estas se originavam em argumentos relativamente bem fundamentados, as crenças estereotipadas terminaram por se difundir entre as camadas mais educadas da população e, a partir daí, ganham força, intensidade e se difundem com facilidade em um novo mundo que se descortina.
2.3.4. Período moderno
Na historiografia tradicional, o início da idade moderna é inseparável da ampliação dos horizontes geográficos, pois o entendimento de que o universo se resumia à Europa, a Ásia e a África se encontrava estabelecido desde a Antiguidade e se manteve intacto durante todo o período medieval. Com as navegações e a descoberta de um novo continente, a América, tornou-se evidente que o mundo estava longe de ser limitado por bordas e beiras, crença que abriu espaço para a exploração de caminhos possíveis e inimagináveis.
Aludir a descobertas parece ser impróprio, por se tratar de um eufemismo. O que ocorreu foi um movimento pelo qual as aristocracias europeias se envolveram numa disputa cujo prêmio maior representava a conquista e o domínio de novas terras, o que ampliou consideravelmente a grandeza das monarquias absolutistas. Ao se imporem pela violência, os impérios coloniais europeus exterminaram os povos autóctones e impuseram a expansão dos idiomas espanhol, português, francês e inglês em territórios então habitados por povos incapazes de defesa face a enorme inferioridade em relação às armas e ao poder de fogo dos conquistadores. A expansão das línguas europeias nas Américas, África e Ásia acarretou não apenas o transplante de diferentes modos de fala, pois uma língua representa muito mais do que um recurso expressivo, podendo ser caracterizada como uma forma de violência, sustentada na imposição de uma visão de mundo a povos que viviam sujeitos a uma outra mentalidade. O resultado desta expansão no que concerne ao nosso objeto de estudos está fortemente associado com o que pode ser denominado eurocentrismo, um fator ainda poderoso na expressão dos estereótipos e preconceitos.
2.3.4.1. Navegações e descobertas
Se no início do século XI muito viajantes ocidentais se lançam em viagens ao Extremo Oriente, à China e à Índia, esta primeira época de viagens se estende até o ano de 1350, quando foram inibidas pelo avanço dos turcos e mongóis (Delacampagne, 1995). As grandes viagens são retomadas apenas entre a última década do século XV e a primeira do século XVI, quando inúmeros eventos produziram reviravoltas extraordinárias na maneira pela qual as sociedades europeias se viam e se representavam.

A chegada de Cristóvão Colombo ao continente americano em 1492, o estabelecimento do Tratado de Tordesilhas celebrado em 1494 no qual se definiam os critérios para a distribuição das terras encontradas fora da Europa, a chegada às Índias do navegador português Vasco da Gama em 1498, a exploração do continente sul-americano pelo navegador Américo Vespúcio em 1499, a descoberta do Brasil por Pedro Álvares Cabral em 1500, o desbravamento do Oceano Pacífico por Nunes Balboa em 1513 e do Rio da Prata por Juan Dias de Solis em 1516, e a derrota imposta em 1519 ao Império Asteca por Hernán Cortés são registros mais do que suficientes para antecipar as transformações econômicas, políticas e sociais que se avizinhavam.
Uma das primeiras narrativas das grandes viagens foi publicada em 1684. Trata-se da obra A nova divisão da terra de acordo com a as diferentes espécies ou raças de humanos que nelas habitam, na qual o médico e viajante francês Francois Bernier (1625-1688) formula uma das primeiras tentativas de classificar a população mundial, sugerindo a intensa admiração dos europeus em relação a aparência e aos costumes de povos tão diferentes (Stuurman, 2000).
As navegações se tornaram cada vez mais frequentes e as descobertas proporcionaram contatos com povos nunca vistos. O catálogo das gentes conhecidas, já por si extenso na Idade Média, tornou-se ainda mais volumoso com a inclusão das criaturas encontradas durante estas viagens. Ainda que estes povos fossem catalogados e incluídos em um extenso inventário, os exploradores não se inibiam em enviar à Europa exemplares das estranhas gentes encontradas durante as viagens de exploração e conquista, inicialmente para o deleite de reis e da aristocracia e, posteriormente, para atender à curiosidade da população que não hesitava em pagar somas não exatamente desprezíveis para assistir ao espetáculo das raças.
Os catálogos de povos foram elaborados por autores genuinamente europeus ou oriundos de outras áreas, mas que tiveram a sua formação intelectual realizada em terras europeias. A imposição de uma interpretação eurocêntrica se tornou ainda mais nítida com a posição de proeminência exercida pelas potências europeias e a posição destacada por elas ocupada após as viagens de domínio, colonização e escravização. As novas informações trazidas por navegadores que estabeleceram contato com povos tão diversos e cujas vidas transcorriam em locais tão distantes, por certo obrigaram os enciclopedistas a reformularem a cartografia das terras e mares conhecidos, assim como aperfeiçoar os catálogos das gentes do mundo. Os 73 povos descendentes de Noé se multiplicavam na mesma rapidez com que eram elaborados novos atlas da superfície terrestre e se abriam espaços para as representações reais, imaginárias e fantasiosas destas novas gentes que rapidamente passaram a despertar curiosidade entre as pessoas letradas, sustentando um mercado editorial que florescia desde a época medieval tardia.

2.3.4.2. Colonizar
Até o início do século XX, época em que o colonialismo e a escravidão ainda dominavam as mentes, ser preconceituoso estava longe de ser um problema e o tratamento desigual era visto como algo natural, uma resposta inevitável dos dominadores para com os dominados.
O que afinal justificaria o direito de dominar, colonizar e tornar civilizadas outras terras? Como assinalaram dois antropólogos brasileiros da segunda metade do século XIX após terem analisado crânios subtraídos de cemitérios indígenas, civilizar seria necessário porque “os indígenas brasileiros, ao lado dos esquimós e dos habitantes da Patagônia, ocupavam a posição mais baixa na escala de evolução humana das Américas, num estado biológico de selvageria que havia se mantido imutável por mais de 3000 anos” (Andermann, 2004, pp. 137).
O domínio colonial de uns povos sobre outros também era visto como algo normal, como um processo imanente à natureza humana sendo, para muitos, um dever sagrado levar a cultura e a civilização para bárbaros e selvagens, o que servia como pretexto ou justificava para os esforços despendidos no árduo dever de colonizar. Exercido o domínio pela força, a tarefa dos colonizadores se desdobrava em duas direções. Por um lado, o imperativo destrutivo de dizimar pelas armas os resistentes, os revoltados, os que se insurgiam contra a metrópole e, por outro, a tarefa ‘construtiva’ de civilizar, trazer luzes para o reino das trevas, salvar as almas dos primitivos, oferecer os meios para os infelizes se tornarem gente de verdade. O esforço civilizatório podia se dar mediante o extermínio dos remanescentes de uma população inteira se esta não contasse com as letras L, F e R no alfabeto (Gandavo, 1575) o que a impediria de conceber as ideias de lei, fé e rei; ou poderia se dar pela via da educação, a exemplo do sistema educacional imposto pelos portugueses em Moçambique, onde o ensino oferecido aos nativos tinha por objetivo conduzir gradualmente o nativo da vida selvagem para a vida civilizada (Maloa, 2013).
É interessante acentuar, e isto interessa à nossa discussão sobre a origem e a difusão dos estereótipos, duas particularidades sobre a colonização europeia. Em primeiro lugar, que ela foi avassaladora, conforme observado no diagrama encontrado na figura 36, na qual identificamos as colônias europeias na África em 1914. Em segundo lugar, importa salientar que os últimos impérios coloniais – Portugal, Inglaterra, França, Alemanha e Bélgica – ainda resistiram até mais da metade do XX (Ukawuilulu, 2008a, 2008b; Trumbull IV, 2008; Ndege, 2008; Neumann, 2008; Pretes, 2008.
2.3.4.3. Escravizar
A escravidão, não a decorrente de dívidas contraídas ou proveniente do tráfico internacional de seres humanos, caracterizada como criminosa e ilegal, ainda é um desafio a ser vencido. A escravidão, com caráter oficial e regulamentada por lei, persistiu até 1961, quando foi abolida na Arábia Saudita desaparecendo, em definitivo, somente nos anos oitenta do século passado ao alcançar, finalmente, o estatuto de ilegal na Mauritânia, ainda que as suas consequências não tenham simplesmente desaparecido (Otazu, 2015).
Conforme analisa Hofbauer (2006), na antiguidade a escravidão compreendia uma relação muito mais complexa do que simplesmente um grupo atacar outro, vencer a batalha, se apossar dos bens materiais, escravizar os vencidos e forçá-los a trabalhar em meio a incessantes e intermináveis maus-tratos. A escravidão, desde o período helênico, passando pelos romanos e árabes até chegar aos conquistadores europeus, envolvia uma relação particular entre senhor e escravo. Configurava-se como algo absolutamente inerente a alguns tipos de relações sociais, sendo impensável em algumas sociedades conceber outras formas de organização social que não a fundamentada nas práticas escravistas (Walvin, 2007).
Entre os antigos, os escravos estavam diretamente vinculados aos serviços domésticos. Geralmente capturados nas incursões e conquistas militares, os escravizados eram usualmente estrangeiros. Neste sentido, aproximavam-se mais da condição de servos do que da conotação que atribuímos usualmente ao termo escravizado, sendo uma figura bastante comum no cenário das cidades gregas e no Império Romano. A paz romana estabeleceu uma trégua na escravização dos povos espalhados pelos territórios conquistados, ainda que a aquisição de escravos em regiões estranhas ao império continuasse sendo praticada. Em 476, com a queda do Império Romano e os conflitos geopolíticos suscitados pela expansão dos povos germânicos, foram retomadas as condições para o ressurgimento de ataques a populações indefesas e a intensificação das práticas escravistas, embora, aos poucos, estas tenham se mostrado economicamente inviáveis, face ao custo da supervisão constante inerente ao controle do trabalho obrigatório. O empobrecimento da população e as novas condições econômicas inviabilizaram a continuidade do trabalho escravo na Europa, o que proporcionou o surgimento de uma nova relação de trabalho, a servidão, e um nova categoria social, os servos. Estas mudanças acarretaram transformações profundas no mercado escravista, levando os traficantes a se voltarem para uma rota bem mais lucrativa, o Oriente Médio. A partir do século VII se inicia uma nova era de incursões, capturas e comercialização desta valiosa matéria prima viva para os novos mercados consumidores. Estas incursões se tornaram generalizadas, persistindo sem grandes interrupções até o surgimento, a partir do século VIII da nossa era, dos primeiros estados nacionais europeus, cujo equilíbrio militar acabou por inibir a prática de invadir, conquistar e escravizar estrangeiros. A escravidão no continente europeu praticamente desapareceu, embora tenha persistido nas regiões dos Balcãs e próximo ao Mar Morto, reduzindo-se apenas com a expansão do Império Otomano no século XIV, o que faz com que os mercadores de escravos voltem os seus esforços para a a captura das presas nas costas africanas, nos séculos XV, XVI e, sobretudo XVII, época em que o comércio escravista se intensifica com a expansão do capitalismo, em particular, com o desenvolvimento da mineração e da agricultura no continente americano (Inikori, 2008).
Quem teria outorgado aos europeus o direito de escravizarem os indígenas encontrados no novo mundo? Este foi um debate fundamental no início da expansão europeia nas Américas. Notificación y requerimiento que se ha dado de hacer a los moradores de las islas en tierra firme del mar océano que aún no están sujetos a Nuestro Señor era o título do texto elaborado pelo jurista espanhol Juan López de Palacios Rubios, em 1513, e lido obrigatoriamente em alto e bom som pelos conquistadores espanhóis diante dos povos conquistados, informando-os do direito divino certificado aos domadores de povos bárbaros, o Rei Don Fernando e à Rainha Juana, de se apossarem daquelas terras e convidando os nativos a se submeterem docilmente à autoridade da coroa espanhola (Wikisource, 2021). O direito divino real foi objeto de briosos debates entre clérigos favoráveis à causa da escravidão e os que detratavam esta prática e se posicionavam ao lado dos indígenas, acusando e documentando a intensidade e extensão dos atos genocidas (Las Casas, 2011).
No início da idade moderna, não somente a escravidão, mas, em especial o tráfico de escravos nos navios negreiros se tornou uma atividade moralmente condenável entre os que se concebiam civilizados. Os que sustentavam este comércio e dele dependiam para enriquecer tentaram justificar esta prática mediante o acolhimento de um sistema de crenças no qual os escravos africanos eram considerados seres inferiores, quase animais, que jamais se igualariam aos civilizados europeus. De acordo com Delacampagne (1995), a primeira formulação sistemática de uma analogia entre os negros e os macacos veio à luz no último ano do século XVII, quando da publicação da obra A anatomia dos pigmeus comparada com a dos macacos, dos grandes símios e dos homens, pelo anatomista Edward Tyson (1650-1708). Este tratamento animalizador se torna sedimentado com a introdução nas línguas europeus do termo mulato (por analogia com as mulas), em 1604, e mestiço, em 1615. Expandiu-se rapidamente a crença de que os europeus apenas reproduziam o que encontraram estabelecido, uma vez que no continente africano a escravidão era uma prática mais do que corriqueira. Se, por fim, os negros se escravizavam mutuamente, por que os europeus não se concederiam o direito de também escravizá-los? Estas linhas argumentativas ainda atraem adeptos nos nossos dias, mesmo sendo insustentáveis; não apenas por se fundamentarem em generalizações infundadas ao considerar que a África como um todo era semelhante em termos de relações econômicas e práticas culturais, como também por não reconhecer que a escravidão entre os africanos era uma prática relativamente restrita, encontrada apenas nas áreas de influência islâmica, uma vez que na costa atlântica do continente africano não foram encontrados, até a chegada dos europeus, indicadores da extensão das práticas escravistas (Inikori, 2008). Uma outra crença também ligada à escravidão negra foi elaborada com a finalidade de oferecer justificativas não para a escravidão em si, mas para a migração forçada à qual milhões de africanos foram submetidos durante um período de quase quatrocentos anos. O argumento legitimador se fundamentava na suposição de que as condições de vida na África, fossem pelo clima desértico, fossem pelo subdesenvolvimento econômico, eram tão degradantes que o resultado teria sido o mesmo; mesmo que os europeus não tivessem forçosamente obrigado os africanos a se deslocarem, estes imigrariam naturalmente para outros continentes em busca de melhores condições de vida.

A diáspora africana, o nome pela qual ficou conhecida a transumância forçada de africanos para outros continentes, envolveu o tráfico de um número estimado entre 12 e 20 milhões de indivíduos entre os anos 1440 e 1860 (Inikori, 2008), sendo especialmente significativa nas Américas onde persistiu por quase dois séculos, estendendo-se entre 1688, quando os Quakers transportaram os primeiros africanos aos Estados Unidos e 1888, após a abolição formal da escravatura no Brasil (Sinha, 2008).
2.3.4.4. Iluminar
Ezel (1997), ao elaborar o capítulo introdutório de uma coletânea de textos sobre as relações entre raça, racismo e o iluminismo, sugeriu que quase duzentos anos de viagens, navegações, descobertas e acúmulo de riquezas foram suficientes para os europeus se considerarem os principais responsáveis pelas grandes contribuições científicas, culturais e artísticas encontradas na trajetória da humanidade. Esta crença na própria superioridade, aliada a um vigoroso mercado de livros de relatos de viagens por terra distantes e estranhas, terminou por acentuar o interesse em comparar a civilização europeia com os costumes e práticas encontradas em outros locais, fortalecendo ainda mais o entendimento de que existia uma clivagem fundamental entre o mundo civilizado e banhado pelas luzes e as outras terras imersas na escuridão e ocupadas por povos inferiores, selvagens e primitivos. O sentido do iluminismo, iluminar, não significava apenas encandear as trevas das superstições com o facho da cultura, opor a razão ao pensamento religioso ou substituir o mito por logos; levar as luzes da civilização para a parcela do mundo que vivia sob a égide da ignorância e das superstições representava um segundo desiderato fundamental.
Pouco importava para os iluministas o valor das contribuições intelectuais não europeias como as dos antigos chineses, egípcios ou indianos, ou as obras de nomes como os de Avicena ou Ibn Khaldum, decisivas para manter viva a chama do conhecimento em uma época na qual as discussões religiosas eram prioridade entre os pensadores europeus. Os grandes nomes do pensamento filosófico iluminista europeu não estavam alheios a este ideal civilizatório e, em algumas passagens, interpretá-los à luz do nosso tempo pode ser muito injusto. Insinuar, entretanto, que os comentários por eles tecidos e atualmente interpretados como racistas representam a parte menor da obra destes grandes autores se configura, no máximo, como um lenitivo que, de uma certa forma, pode minimizar o mal-estar, mas em nada retira a crueza dos enunciados.

No Novum Organum, publicado no início do século XV, um texto que se encontra na origem da ciência moderna, o filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626) sugere que no ermo e na solidão das vinte e cinco centúrias do saber humano apenas três épocas geraram contribuições frutíferas, a época dos gregos, a dos romanos e a dos povos ocidentais da Europa. Bacon inaugura uma tendência que se mostrou relativamente comum entre os iluministas posteriores, pois se o principal ponto de discussão sobre o racismo na obra de David Hume (1711-1776) foi uma nota de pé de página, posteriormente modificada, na qual ele informa suspeitar que os negros e as outras espécies de humanos eram naturalmente inferiores aos brancos e que, seguindo John Locke (1632-1704), não lhe constava algum conhecimento sobre outras civilizações tão complexas quanto as erigidas pelos brancos ou já ouvira notícias de pessoas tão eminentes em termos de ações ou de especulação intelectual quanto os brancos, isso não significa que o que se afirmou é menos importante na obra de Hume por se tratar de um pé de página, ainda que escrita pelo autor dos Ensaios sobre o entendimento humano. Se os textos kantianos sobre a geografia e a antropologia, nos quais as discussões raciais receberam destaque, não desfrutam da reconhecida importância da Crítica da Razão Pura, isso não retira o fato de que o grande filósofo assentiu que os negros oriundos da África, ao contrário de espanhóis, ingleses, franceses, alemães e outros povos europeus, não foram dotados pela natureza de sentimentos que lhes permitiam ultrapassar a barreira da insignificância. Também não temos como evitar fazer alusão às insinuações de George W. F. Hegel (1770-1831) de que o continente europeu, por estar sujeito ao predomínio do clima temperado, difere muito dos outros, principalmente se comparado com a América onde até mesmo os animais são menores, mais fracos e menos poderosos, ou mesmo a cultura dos humanos aí encontrados que, de tão fraca e sem importância, desapareceu facilmente submetida pelo vigor cultural das nações coloniais europeias mais avançadas.
A grandeza do iluminismo vai além disso, pois, nas palavras de Eze, este movimento intelectual inaugura a dimensão da intertextualidade, pois Kant, ao elaborar o argumento sobre as diferenças raciais, cita Hume, que por sua vez já citara Buffon, que se referira a Linneus. Da mesma forma, e numa perspectiva distinta, James Bettie apresentou firmes objeções a Hume, que se viu obrigado a diminuir o peso da mão, enquanto Kant se sentiu obrigado a se posicionar face às objeções de von Herder relativas a alguns pontos de vista que defendera vigorosamente em publicações prévias.
Dentre as contribuições mais emblemáticas do Iluminismo se destacam as enciclopédias, obras monumentais dedicadas a compilar o conhecimento adquirido pela espécie humana em todos os campos de estudos. Enciclopédias universais renomadas, como a britânica ou a francesa, atravessaram gerações e impuseram aos seus leitores perspectivas de apreender a realidade que, por certo, podem ser interpretadas como um retrato dos sistemas de crenças predominantes em cada época. O verbete negro, publicada na versão norte-americana de 1798 da Enciclopédia Britânica, elucida de forma significativa a representação estereotipada acolhida na época, pois nele os negros são definidos como uma variedade da espécie humana, encontrada nas zonas tórridas, em especial na parte da África situada entre os trópicos. Após esta breve contextualização antropológica e geográfica, o verbete não se inibe em desenhar um retrato bastante estereotipado das particularidades físicas dos negros, acentuando características como as bochechas salientes, a testa elevada, um nariz grande e achatado, os lábios espessos e entumecidos, os ouvidos de pequena dimensão, a feiura e a irregularidade das formas, especialmente nas mulheres, desafortunadamente dotadas de uma cintura muito fina e de nádegas avantajadas que as faziam parecer como se carregassem uma sela de cavalo nas costas. Do ponto de vista das características psicológicas, o verbete também não economizou impropérios, acentuando o quão deveria ser infeliz esta raça marcada por inúmeros atributos desqualificadores: a ociosidade, a trapaça, a vingança, a crueldade, o descaramento, o roubo, a mentira, a difamação, a sensualidade, a maldade, o descontrole, a ausência de sentimentos de compaixão, enfim, todas as formas vis de corrupção.
Note-se, no entanto que, por mais estarrecedor aos nossos olhos possa ser o relato, ele retrata a percepção das gentes instruídas, daquelas que circulavam em um circuito na qual se produzia e consumia livros de esclarecimento. Se a nossa imaginação é marcada por fortes associações entre a Idade Média e noções como a de trevas, superstições e as perseguições da inquisição espanhola, isto se deve em boa parte às contraposições feitas pelos iluministas entre a era das luzes e o período medieval. O iluminismo representou bem mais do que um movimento de revolta contra os exageros do cristianismo ao postular o retorno à idade da razão e a valorização das virtudes humanas que deveriam se sobrepor às superstições do passado. O retorno à sabedoria dos gregos e dos romanos da idade clássica, desterrada durante a longa noite do medievo, deveria ser uma tarefa imperativa, uma obrigação para os intelectuais e algo desejável para a maior parte da população ainda sob o domínio das trevas.

Uma diferença fundamental se apresenta no século XVIII. Se por um lado encontramos parte da população tomada por um autêntico fervor religioso, no lado oposto se identifica uma outra parcela, constituída por camadas mais intelectualizadas e apegadas a uma interpretação de mundo secular e racional. Se a oposição entre as nascentes disciplinas científicas e o fervor religioso foi o primeiro conflito que caracterizou o iluminismo, não devemos desconsiderar um outro, tão importante quanto o inicial, que se sustentava na ênfase a ser oferecida ao conhecimento científico ou aos cânones da estética (Mosse, 1999). Estes dois conflitos repercutem acentuadamente nas discussões posteriores sobre o lugar dos seres humanos no mundo, das semelhanças que os aproximavam e das diferenças que os apartam e nos acalorados debates suscitados pelas discussões a respeito das hierarquias entre os povos e as raças.
Ademais, estes dois conflitos se relacionavam fortemente com a questão dos estereótipos raciais. Por um lado, encontrávamos uma nascente antropologia, cujos esforços se encaminhavam no sentido de identificar o lugar do ser humano na natureza, mediante observações, mensurações e, sobretudo, comparações entre humanos e animais. Este movimento suscitou a revalorização da antiga disciplina da fisiognomia e favoreceu o aparecimento da doutrina da frenologia. Em contrapartida, numa dimensão oposta, poderiam ser encontradas pessoas fremidas por um autêntico fervor religioso, imbuídas por um espírito de congraçamento que supostamente apenas as religiões seriam capazes de oferecer e que se sentiam compelidos a concluir que todo e qualquer ser humano deveria ser acolhido e definido como filho de deus. Como, afinal, levar a sério o ponto de vista dos doutores e dos estudiosos que, com seus limitados instrumentos elaborados para apalpar, medir e calcular, jamais conseguiriam entender aquilo que apenas a intuição e os instintos, aquilo que o senhor tinha colocado em cada ser humano, seria capaz de conceber?
Se o conflito no plano do conhecimento se materializava nas discussões entre razão e intuição divina, no plano estético ganhou força um movimento no sentido de retomar os ideais de beleza dos clássicos, sendo particularmente relevante a utilização dos parâmetros reconhecidos nas estátuas de deuses gregos e romanos, adotados como critério para o estabelecimento de comparações entre os diversos grupos humanos e entre os humanos e os símios. Acentue-se, no entanto que, por mais científica que tenha sido esta aproximação, a dimensão padrão para a implementação das comparações permaneceu sendo a estética. Isto sugere, portanto, que desde as origens o saber científico jamais desprezou ou deixou de lado a busca por soluções marcadas pela beleza e por um forte senso de ordenamento estético (Mosse, 1999).
Conclusões sobre os estereótipos no período moderno
O período moderno, cujos limites temporais alcançam o final do século XVIII, foi inaugurado com as descobertas possibilitadas pelas grandes navegações, pelas batalhas entre as potências da época para conquistar e manter os territórios de suas colônias, pelas estratégias de colonização dos territórios conquistados e a posterior subjugação dos povos que os ocupavam. Ainda que muito antiga, a escravidão desempenhou um papel decisivo na expansão colonial europeia, resultando em diásporas que espalharam a população negra por outros continentes, sobretudo nas Américas. O iluminismo, ao estabelecer a distinção entre a razão e o mito, aponta as grandes direções dos debates a serem encetados a respeito dos grupos humanos e as suas relações.
Ao lado das abordagens individualista e contextualista, a noção de hierarquia permanece uma característica central na representação sobre os povos no período moderno, tal como podemos identificar no relato do historiador espanhol López (2021), o qual recolhe em uma nota ao livro no qual narra história militar da conquista mexicana, por Hernán Cortés e sua gente, uma passagem atribuída ao já aludido jurista espanhol Palácios Rubios. Este, eivado pela melhor das intenções, redige um tratado com a finalidade de ensinar ao filho o valor do justo combate e no quanto nele estão envolvidos o ideal cavalheiresco do esforço como marca registrada dos vencedores e a clemência como a norma exigida em relação aos derrotados. Um aspecto importante da obra se relacionada ao desprezo demonstrado pelo aristocrata com as armas que matam à distância – espingardas, mosquetes, trabucos, escopetas etc. -, dispositivos de guerra que não apenas impediam a luta franca a curta distância, uma oportunidade para os cavaleiros demonstrarem as habilidades aprendidas ao longo dos anos de formação, como também permitiam, pasmem, um plebeu ter a chance de matar um nobre. A perspectiva hierárquica conflitualista, enquanto tal, permanece sendo uma característica decisiva no julgamento social, interferindo inclusive no entendimento de como as vidas de superiores e inferiores poderiam, e deveriam, ser subtraídas.
No imaginário europeu no final do período moderno as diferenças entre os indígenas do novo mundo e os negros africanos passara a ser objeto de discussão. Duas novas crenças começam a ganhar espaço. Uma delas se referia às diferenças entre o continente africano e mundo que acabara de ser descoberto, local em que o evangelho nunca havia sido predicado, um espaço virgem onde a verdadeira palavra de Deus nunca fora ensinada, no que diferia do continente africano, sempre imune aos ensinamentos de Cristo. Uma segunda crença estava centrada nas diferenças relativas aos destinos dos povos escravizados, cuja formulação se expressa na crença estereotipada de que, ao contrário dos negros africanos, os indígenas não suportavam e nem se se submetiam docilmente ao trabalho escravo (Delacampage, 1995).
2.3.5. Mundo contemporâneo
A revolução francesa tem sido adotada pelos historiadores como o divisor de águas que introduziu a modernidade; afinal, as ideias que lhes serviram de sustentação defendiam a liberdade em contraposição aos modelos que pregavam o absolutismo político e religioso, a igualdade em um mundo marcado pela diferenciação entre os aristocratas e os que vieram ao mundo apenas para a estes prestar serviços, e a fraternidade, em um mundo onde as conquistas e a colonização estavam perfeitamente instaladas.
2.3.5.1. Ciência, raça e tipos humanos
Diferentes dos viajantes e navegadores, preocupados apenas em relatar o que viam com os próprios olhos, os biólogos do século XVIII ostentavam uma preocupação genuinamente científica em organizar as evidências com as quais se deparavam num sistema em que o anseio final era classificar e ordenar a natureza em consonância com um padrão racional capaz de representá-la em sua totalidade (Curtin, 1999). Esta tradição de pensamento é bem representada pelo médico e botânico sueco Carl von Linnaeus (1707-1778), cuja obra mais representativa, Systema Naturae, publicada em 1735 e revisada inúmeras vezes, exerceu uma profunda influência nos estudos subsequentes. Como não poderia ser diferente, os humanos, ainda que situados no cimo da hierarquia, também deveriam estar inscritos neste grande esquema de classificação dos seres vivos.
Uma crença fundamental acolhida pelas camadas educadas da população e por uma enorme parcela dos intelectuais, asseverava que deus, ou a natureza, na perfeição que a ambos caracteriza, ordenou todos os seres, do mais alto até o mais baixo, numa hierarquia irrepreensível e irretocável, conformando uma Grande Cadeia do Ser. Uma questão ganha importância neste contexto: se durante as navegações foram encontrados tantos humanos em inúmeros lugares e se estes eram tão diferentes entre si por suas próprias características e por viverem em diferentes estágios civilizacionais, como sustentar que estes distintos grupos humanos estariam sujeitos à mesma ordem hierárquica que presidia o mundo natural? Como oferecer resposta para esta questão, se o debate esbarrava no dogma cristão de que o criador teria sido o responsável pelas suas criaturas que seriam, neste particular, uma única e mesma espécie?
A tentativa inicial de solução envolveu a elaboração de um sistema de classificação fundamentado tanto na nascente biologia quanto nas teorias climatológicas ambientalistas presentes desde a antiguidade. Neste sistema se supunha a diferenciação entre quatro raças humanas: branca, amarela, negra e vermelha, as quais se encontravam associadas aos determinantes climáticos dos quatro continentes onde elas se desenvolveram, Europa (Homo europeaus), Ásia (Homo asiaticus), África (Homo afer) e América (Homo americanus). Esta classificação rapidamente ganhou prestígio, passando a ocupar o lugar então desfrutado pela classificação religiosa tripartite, fundamentada na diferenciação geográfica relacionada às vicissitudes dos filhos de Noé.
Esta solução não apenas eludiu o conflito travado entre os iluministas a respeito das relações entre as leis da natureza e a força da religião, como também facilitou a proliferação de vários sistemas de crenças nos quais se atribuíam aos indivíduos de distintos perfis raciais uma série de características físicas e psicológicas capazes de diferenciá-los entre si.

Os povos autóctones da América foram caracterizados como de cor de cobre, cabelos escuros e espessos, cenho severo, face sem pilosidades, narinas largas, trajados com nada mais do que linhas pintadas com tinta vermelha, coléricos, obstinados e regulados pelos costumes. Os europeus, de cor branca, olhos azuis e cabelos claros, cobriam completamente as vergonhas com vestes magníficas, eram sanguíneos, gentis, agudos, inventivos e governados pelas leis. Os asiáticos, de pele amarelada, cor de fuligem, cabelos negros e olhos escuros, se vestiam com roupas leves, eram altivos, cobiçosos, sérios, dignos, avaros e regulados pelas opiniões. Os africanos, com a pele negra, nariz achatado, lábios túmidos, no lugar de trajes se ungiam com graxa, foram caracterizados como fleumáticos, astutos, preguiçosos, lúbricos e governados pelos caprichos (Linné, 1997). Além destas grandes categorias, Linneaus também encontrou espaço para se referir aos habitantes das áreas montanhosas, ativos, pequenos e tímidos; aos naturais da Patagônia, grandes e indolentes; aos poucos férteis hotentotes; aos americanos sem barba; aos chineses de cabeça cônica; e aos canadenses de cabeça achatada.
A noção de raça não se mostrava um conceito unívoco, pois as fortes associações que mantinha com os modelos taxionômicos da florescente biologia, embora aceitável para a classificação dos animais, não se prestava exatamente para a elaboração de modelos a respeito das diferenças entre os grupos humanos. A busca de um termo mais maleável, cujo uso se prestasse mais facilmente à condução de comparações, favoreceu a aceitação do conceito de tipos humanos que se impôs como uma ideia facilmente utilizável tanto na história natural quanto na linguagem comum (Banton, 1999). Um problema fundamental suscitado por esta definição passou a ser o de alocar a ordem dos tipos humanos na Grande Cadeia do Ser. Na ausência de critérios objetivos capazes de sustentar esta classificação, os ideais de objetividade científica foram abandonados e substituídos por critérios compatíveis com os supostos valores definidores da civilização europeia, a exemplo das realizações na arte e na ciência ou do simples fato de Deus ter legado aos brancos europeus a verdadeira religião.
Estes novos sistemas de crenças não apenas ofereceram legitimidade intelectual às hierarquias raciais e nacionais como também contribuíram para amalgamar diferentes tradições de pensamento em uma linha argumentativa na qual as relações entre as características raciais, os estereótipos, os preconceitos e as produções culturais se tornaram perfeitamente articuladas (Curtin, 1999). Esta tendência pode ser exemplificada no trabalho publicado em 1770 pelo anatomista holandês Petrus Camper (1722-1789) em que se apresenta um método para a diferenciação das raças mediante a análise do ângulo das faces, cujo modelo, publicado postumamente em 1791, encontra-se representado na figura 41.

O modelo foi construído a partir de uma linha horizontal traçada entre a abertura do ouvido e a base do nariz e uma outra, a linha facial, que unia a testa aos lábios, calculando-se o ângulo facial a partir da interseção entre as duas linhas (Brace, 1999). Com base em esqueletos de orangotangos provenientes de parte da Indonésia sob controle holandês, no crânio de um adolescente negro e restos esqueléticos obtidos na Ásia Central, todos materiais que encontrou à disposição na Holanda natal, Camper desenvolveu o argumento de que, se nas estátuas dos deuses gregos e romanos, exemplares por excelência da representação artística humana, o ângulo da face correspondia a valores entre 95 e 100 graus, na população branca o valor médio correspondia a cerca de 80 graus. A comparação destes valores com os mensurados para os negros e os asiáticos, de aproximadamente 70 graus, indicaria o quanto estes estariam mais próximos dos orangotangos, cujos valores do ângulo facial oscilavam entre 42 e 58 graus, do que dos humanos (Haller, 1971).
Em 1781, Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) procurou ser ainda mais inclusivo em relação aos critérios de classificação ao considerar a combinação de elementos como a cor da pele, o cabelo, o esqueleto, a forma do crânio e algumas caraterísticas faciais. Estes parâmetros permitiram a elaboração de uma taxionomia na qual a espécie humana foi diferenciada em cinco grandes grupos raciais, tal como representado na figura 42. Os mongóis e os etíopes nada mais eram que uma degeneração da raça original, os caucasianos; os indígenas americanos, a transição dos caucasianos para os mongóis; os malaios, a fase intermediária entre os caucasianos e os etíopes (Gould, 2014; Junker, 1998).
Nesta classificação a proeminência dos europeus continuou a receber destaque fundamentando-se na crença de que, se algumas raças eram apenas uma degeneração da perfeição, outras representavam a degeneração dos degenerados. O termo degeneração se destaca, pois com ele fica clara a conclusão exposta no final a obra de Blumenbach, na qual se sustenta que apesar das particularidades e dos destinos de cada raça, todas pertencem a uma única e mesma espécie, a humana.
Nem todos aceitaram a tese monogenética difundida por Blumenbach. Um forte movimento, presente desde o final do período medieval, sustentava um sistema de crenças na qual se supunha não apenas que as raças humanas diferiam entre si, mas também que os brancos não se originaram de um mesmo tronco compartilhado com raças tão degeneradas. A crescente importância do pensamento naturalista fez com que a análise das características físicas, sobretudo as que se manifestavam na superfície corporal, tenha se tornado um critério decisivo para a elaboração de argumentos destinados a provar a existência de diferenças entre os povos ou as raças e a posicionar uma delas, a branca, no topo desta hierarquia.
Uma técnica de grande sucesso no século XIX, a craniometria, cultivada pelos chamados frenologistas, ofereceu um forte impulso às teses hierarquizadoras ao sugerir que a diferença entre os brancos e as demais raças residia no volume da caixa craniana, significativamente superior nos brancos se comparados com os valores encontrados entre os inferiores. A frenologia se tornou popular inicialmente entre anatomistas europeus e encontrou espaço para continuar se desenvolvendo ao chegar às Américas. A viagem aos Estados Unidos do médico alemão Johann Gaspar Spurzheim (1776-1832), um discípulo de Franz Joseph Gall e uma estrela em ascensão do movimento frenologista, ilustra bem as ideias sobre o quão as diferenças entre as pessoas poderiam ser estimadas pela mensuração do crânio. Recebido entusiasticamente pela elite, morre inesperadamente acometido pela febre tifoide, sendo honrado com uma cerimônia fúnebre na qual multidões se enfileiraram para prestar uma última homenagem ao grande homem de ciência.
Os anos seguintes não testemunharam o crescimento do prestígio dos apalpadores de crânios; pouco a pouco o conhecimento frenológico perdeu importância entre os estudiosos, embora tenha passado a ganhar espaços nas demonstrações sempre populares das barracas de feira, ao lado de ilusionistas, leitores de fortuna e prestidigitadores, o que indica quão popular era a noção de que as características das pessoas poderiam ser identificadas mediante a análise da aparência física. Apesar disso, a sobrevida da craniometria nos anos 1830 foi garantida graças à apropriação dos argumentos frenológicos por parte do movimento escravista do sul dos Estados Unidos que aí encontrou suporte científico para a defesa da inferioridade inata dos negros, propagar as virtudes da escravidão e, sobretudo, arregimentar fundamentos intelectuais para justificar e oferecer legitimidade ao extermínio dos povos nativos (Horsman, 1999).
Ainda que vozes tenham se insurgido contra os argumentos racialistas, a suposição sobre as diferenças insuperáveis entre as raças se popularizou na primeira metade do século XIX e conseguiu sobreviver até a segunda metade do século, apesar das fortes críticas. Os estudiosos passaram a desenvolver critérios cada vez mais esmerados para sustentar a diferenciação e hierarquização; neste sentido, Peter A. Browne publica em 1852 um trabalho no qual considera a dimensão capilar para estabelecer as distinções raciais entre os brancos de cabelos ovais em relação aos negros dotados de cabelos excentricamente empilhados sob forma elíptica e aos indígenas com os seus cabelos cilíndricos.
A procura de uma ciência apta a sustentar as hierarquias entre os povos e confirmar a posição de superioridade dos brancos em relação aos demais se espalhou pelas Américas na segunda metade do século XIX. O livro Types of Mankind, publicado em 1854 por Nott e Glidon, obteve sucesso imediato, esgotando a primeira edição em menos de um ano e alcançando dez reimpressões até o ano de 1871. Qual a principal tese defendida e em que sentido ela contribui para que a obra se tornasse um sucesso estrondoso de vendas? Basicamente apresentava argumentos pseudocientíficos baseados nas ideias de pensadores então muito populares, as quais ofereciam justificativas científicas para a escravidão. Fundamentalmente, não apenas a tese da superioridade branca ganhava uma roupagem científica como também se acentuava o perigo para a civilização da mistura das raças, advogando-se a inutilidade de envidar esforços no sentido de escolarizar e educar as chamadas pessoas de cor.
Uma das principais linhas de argumentação dos escravistas residia nas admoestações contrárias aos casamentos interraciais e ao risco que esta prática poderia gerar em termos de degeneração da espécie humana. Em 1867, J. Douglas, após analisar parâmetros como a dimensão corporal, o tamanho da cabeça, a força, os dentes, a visão, a respiração e a capacidade pulmonar de brancos, negros, mulatos e indígenas, sustentou que os resultados deveriam ser interpretados como indicadores de que a miscigenação proporcionava um produto com a qualidade bastante inferior à identificada entre os brancos puros. Uma prova ainda mais definitiva da qualidade do sangue branco em relação ao das raças inferiores foi supostamente apresentada em 1869 por Sanford B. Hunt. Após comparar os cérebros de soldados mortos na guerra civil estadunidense, Hunt acreditou ter identificado que o cérebro dos mulatos era menor do que o dos brancos e maior do que o dos negros, se permitindo concluir que o fluxo de sangue branco, mesmo em pequena quantidade, fora suficiente para aumentar o tamanho do cérebro dos desvalidos negros.
Aos negros, claro, restaria agradecer a enorme deferência por parte destes criteriosos cientistas brancos, sem esquecer de outros benefícios como o de ser escravizado, pois, conforme assinalado por Paul Topinard, em 1868 houve um aumento considerável das taxas de mania e de idiotia entre a população emancipada negra, levando-o a concluir que o fim da escravidão gerou um maior acometimento de doenças mentais na população negra, configurando um indicador preciso de quão benéfica fora a escravidão para a vida mental dos negros.
Médicos que exerciam os seus afazeres no exército estadunidense também se encarregaram de reforçar os discursos relativos às diferenças raciais. Em 1882, W. J. Burt analisou inúmeros relatórios e sustentou que se comparados aos soldados brancos, os militares negros demonstravam menor chance de resistir a um procedimento cirúrgico, o que provaria o quanto a raça negra estava menos preparada para sobreviver já que as condições de vida no exército eram as mesmas para soldados brancos e negros. R. M. Cunningham, em 1894, não se permitiu ficar para trás e, fundamentado na suposição de que, se as taxas de mortalidade dos prisioneiros negros eram maiores do que as dos prisioneiros brancos, fez questão de concluir que os negros estariam menos preparados para sobreviver que os brancos, visto as condições de vida na prisão serem as mesmas para todos os prisioneiros.
Indicadores relativos ao crime e à delinquência também representaram um terreno fértil para a formulação de comparações raciais como, por exemplo, a conduzida em 1903 por William T. English, na qual se vaticinou uma maior propensão dos negros para a delinquência moral e sexual por estarem bem mais próximos aos ancestrais sub-humanos do que os brancos, algo facilmente evidenciado pelo ávido apetite sexual característico dos descendentes dos africanos. Esta relação entre os negros e o animais ainda se encontrava presente em trabalhos publicados em pleno século XX como o artigo de Edward C. Spitzka de 1903 no qual, com base na análise de necrópsias, comparou o cérebro de um intelectual notável com o de um negro zulu e conclui que a diferença de proporção entre o cérebro de uma pessoa inteligente e um africano é a mesma que a deste último em relação a um gorila, um argumento que lhe pareceu suficiente para sustentar, a partir das diferenças de mensuração do volume cerebral, a tese de que os negros estão bem mais próximos aos ancestrais sub-humanos do que aos brancos.
O conjunto de exemplos apresentado nesta seção, compilados na obra de Haller (1971), ajuda-nos a refletir sobre os cuidados a serem tomados quanto aos critérios de aceitação do conhecimento científico. Por mais absurdas que possamos considerá-las nos dias de hoje, as teorias sobre as diferenças raciais acima aludidas já foram consideradas cientificamente justificadas e uma parcela importante da comunidade científica foi incapaz de se dar conta de que as conclusões respaldadas pelo que se supunha ser o conhecimento científico da época sobre a evolução das espécies deveriam ser interpretadas como discursos legitimadores elaborados com a finalidade precípua de considerar a raça branca como a mais desenvolvida e, as demais, em particular a negra, como o resultado do processo de degenerescência da raça original ou, na melhor das hipóteses, uma raça inferior.
2.3.5.2. Exposições e zoológicos
A ausência de qualquer sensibilidade ou preocupação em relação aos diferentes pode ser exemplificado pelos espetáculos públicos nos quais os “anormais” eram expostos num autêntico circo de aberrações, no sentido literal da expressão. Anões, obesos, africanos, indígenas, bosquímanos, uma fila de gente com formas, altura, estrutura morfológica, cor de pele, modos de fala e estilos de vida diferentes se tornaram objeto de curiosidade e escárnio do público que inundava as grandes feiras e desembolsava os centavos de praxe para assistir ao incessante desfile dos ‘infra-humanos’.
O exemplo de Ota Benga ilustra, da pior maneira possível, como eram obtidos os exemplares desta fauna exótica exibida ao público (Bradford & Blume, 1992). Originário da floresta tropical da hoje República Popular do Congo, Benga foi capturado após ter a aldeia incendiada e a família morta, durante a incursão de uma tribo inimiga e tomado como escravo por uma tribo fiel ao rei Leopoldo da Bélgica, nação que dominava o então Congo Belga. Permaneceu em regime de escravidão até ser adquirido por um santo homem, o missionário Samuel P. Werner, que recebera a missão de “contratar” alguns pigmeus, que então despertavam um interesse popular extraordinário, para serem exibidos na Exposição de St. Louis de 1904. Benga não apenas se juntou aos esforços do missionário como também convenceu alguns dos seus que se encontravam nas mesmas condições a demonstrarem, na exposição, o autêntico modo de vida africano. Finalizada a mostra, volta à África com o missionário onde permanecem por um ano e meio antes de retornarem a Nova Iorque. O missionário-explorador, ao não conseguir vender a coleção de objetos adquiridos durante o tempo de peregrinação na África, declara falência e o “acervo” é apropriado por uma companhia seguradora. Antes de voltar para a sua Carolina do Sul natal, o missionário deixa Benga aos cuidados dos curadores do Museu Americano de História Natural. Os responsáveis pelos cuidados de Benga, eivados pela melhor das intenções, decidem doá-lo ao zoológico do Bronx onde passa a ocupar uma jaula, tendo como companheiro de residência um sisudo orangotango. Retirado do zoológico e após trilhar por inúmeras de instituições de caridade, Benga finalmente veio alcançar a paz ao se infligir um tiro de revólver, desencantado por não poder mais voltar à sua terra natal.
Estas exposições atendiam uma dupla finalidade: a de exibir o estranho para obter lucros e a de educar para obter frutos. A prática de trazer exemplares de povos conquistados para exibição sempre foi uma constante na história. Os romanos o faziam com os escravos conquistados na Ásia e na África; entre os conquistadores europeus era comum a prática de embarcar nativos nas caravelas para expô-los ao público civilizado. Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio e Cabral forneceram nativos para a Península Ibérica, Jacques Cartier para a França, Martin Frobisher e James Cook para a Inglaterra, em uma época em que que não se hesitava em retirar os nativos do solo natal para levá-los a terras distantes para o deleite de imperadores, aristocratas e súditos.
O alemão Carl Hagenbeck fez fortuna com a aquisição de animais exóticos para serem vendidos a zoológicos e, com um tino de negociante acima do comum, percebendo uma queda no interesse do grande público pelos animais e a depreciação dessas commodities no mercado interno, iniciou o negócio de exposição de gente. Aconselhado por um amigo, incluiu uma família de lapões, suas armas, cabanas e trenós no que deveria ter sido uma exposição de renas. Percebendo o grande interesse do público em assistir pessoas de origens diferentes fazendo coisas habituais, em especial, a curiosidade do público em acompanhar uma mamãe amamentando cuidadosamente uma doce garotinha de quatro anos, o empreendedor não hesitou em encomendar ao seu fornecedor habitual, residente no Sudão, além de animais e de objetos de labuta diária, um bom número de nativos. E o show de Hegenbeck não parou. Esquimós, uma tropa constituída por elefantes e habitantes originários do então Ceilão foram visitados pelo grande público, bem como pela realeza e pela fina flor da aristocracia (Rothfels, 2002).
A segunda preocupação, a educação do povo, também estava na origem destas exposições extremamente populares no final do século XIX (Arteaga & El-Hani, 2010). Elas colocavam em manifesto que as raças humanas, segundo o ponto de vista da biologia e da antropologia, pertenciam a diferentes espécies, devendo os grupos não-brancos serem vistos muito mais como pertencentes à categoria dos símios do que a dos humanos.
2.3.5.3. Uma mãozinha para a natureza
O substrato teórico para estas aproximações “científicas” era a teoria eugenista, fortemente associada ao nome do francês Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882). Aristocrata por origem familiar e, como tal, renhido opositor da Revolução Francesa, poderia ser considerado um pessimista ao acreditar que a humanidade tinha se enredado num franco processo de decadência, impossível de ser interrompido, pois os europeus perderam a pureza do sangue ao misturá-lo com o das raças inferiores durante o período de expansão colonial. Neste sentido, também poderia ser considerado um ambientalista ao acentuar que, se os brancos tivessem permanecido nas suas fronteiras, sem se acercar de outros climas, o mundo por certo seria outro, e bem melhor (Banton, 1999). Gobineau considerava os negros inferiores e muito mais próximos à dimensão da animalidade do que a de humanidade, algo comprovado pela energia, vitalidade e sensualidade que os caracterizam. Apesar dessa vivacidade, a proximidade com os animais os condenariam a serem incapazes de diferenciar a virtude dos vícios e a desprezarem o valor da vida, não apenas as dos outros, como também as suas próprias vidas. Estes estereótipos diferiam dos atribuídos aos obstinados asiáticos, também caracterizados como apáticos, sem energia, sem vontade e medíocres. Em contrapartida e ao contrário dos negros, eram respeitadores das leis e se mostravam muito mais dedicados à reflexão do que à ação. O que dizer dos brancos se comparados aos negros e aos amarelos senão que eram seres tão energéticos como os negros, embora com uma energia bem temperada pela inteligência? Muito além das qualidades que os diferenciavam dos negros, os brancos não eram tão impassíveis e sem propósito de vida quanto os amarelos e se diferenciavam por serem portadores de um senso de utilidade que os colocava acima das demais raças. Nunca esmoreciam, mesmo frente aos grandes obstáculos, superados facilmente graças ao uso engenhoso da extraordinária força física com que foram premiados (Biddiss, 1999). Por tudo isso, como não se esperar que os brancos possuíssem uma tendência inata que, aliada a uma clareza insofismável, os obrigava a se reconhecerem como uma raça superior às demais?
Infelizmente, para os brancos, lamentou-se Gobineau, a hibridização conduziu esta raça extraordinária a caminhar em direção à decadência. O sangue se tornou conspurcado pelos casamentos inter-raciais, as virtudes desapareceram, inundadas pelo sangue contaminado. Mostraram-se incapazes de se furtar ao impacto de dois instintos contraditórios: a lei da atração, que impelia as pessoas de uma raça a demonstrarem uma doentia curiosidade e se sentirem sexualmente atraídas por aquelas de outras raças; e a lei da repulsão, que imporia que também sentissem ojeriza ao estabelecer contatos íntimos com as de outras raças, mesmo se sentindo atraídas. A civilização europeia ocidental estava definitivamente fadada ao extermínio, pois o efeito destas duas leis condenara inelutavelmente a raça branca a uma contínua e inevitável degenerescência (Poliakow, 1999).
Muitos pensadores, no entanto, não acolheram a perspectiva pessimista do taciturno Conde Gobineau e vislumbravam uma alternativa para salvar o mundo ocidental da quase inevitável decadência. A tese do eugenismo foi o exemplo mais conhecido deste sistema de crença e ofereceu fundamentos para o desenvolvimento de muitos estereótipos. O inglês Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin, cunhou o termo eugenismo, cuja origem retroage ao grego e se refere à vaga noção de bem-nascido, definindo-o como um saber destinado a limitar a força do acaso, substituindo-o por um controle social e científico destinado a aperfeiçoar a raça humana, afastando-a do desvirtuamento proporcionado pela miscigenação (Kevles, 1985).
A ideia de eugenismo por certo não era nova. Platão, na antiga Grécia, assinalara a importância de casamentos bem arranjados para o aperfeiçoamento da sociedade já que a descendência gerada por essa instituição deveria ser objeto de interesse e controle por parte do Estado. Esta ideia ganha um forte respaldo com a popularização da obra de Charles Darwin sobre a evolução das espécies por meio da seleção natural, na qual se postulava que o processo de evolução acarretaria um aperfeiçoamento consistente na qualidade dos organismos vivos. Esta evolução, no entanto, perdera força nas sociedades modernas, pois os avanços médicos, aliados às caridades pública e privada, ocasionaram a interrupção do processo de seleção natural e proporcionaram, desafortunadamente, um crescimento extraordinário no número de incapazes, idiotas e doentes que, não apenas tiveram a existência ceifada antes de alcançarem a idade reprodutiva, como também se lhes permitiram a união sexual com outros degenerados, favorecendo ainda mais a sobrevivência de uma enorme legião de humanos inferiores. Se esse era o retrato da maioria da população, no polo oposto, as camadas superiores, regidas por um ideal de paternidade responsável, estavam gerando muito poucos descendentes. Qual poderia ser o resultado deste duplo movimento senão a prevalência de uma sociedade cada vez mais imersa na degeneração?
Se o problema era de dupla ordem, um número cada vez mais reduzido de pessoas com características superiores e um acréscimo considerável de pessoas nas camadas inferiores, o programa eugenista deveria se desdobrar em duas grandes direções: o eugenismo negativo, cujo propósito fundamental envolvia desencorajar os inferiores a gerarem descendência, e o positivo, destinado a alentar as pessoas superiores a terem filhos no maior número possível e o quanto antes puderem.
De onde surgem estas ideias? Galton publicara em 1869 a obra o Gênio Hereditário na qual sustentara que as pessoas já nascem com traços fixos e, as que alcançaram sucesso na vida, o fizeram por terem herdado traços que as favoreceram. O inverso seria igualmente verdadeiro para os pobres, degenerados e fracassados, daí a necessidade de impedir que a plebe transmitisse as suas taras hereditárias. Uma leitura breve e superficial em um compêndio das pessoas de sucesso, supunha Galton, seria suficiente para demonstrar que seriam encontradas quase que exclusivamente entradas relativas às pessoas brancas, dado que estas seriam mais preparadas pela natureza para alcançar o sucesso, um resultado nada dependente do ambiente. As diferenças de qualidade seriam inerentes às próprias raças, concebendo-se uma hierarquia na qual os brancos ocupavam o topo, os negros se posicionavam dois degraus abaixo e os aborígenes australianos estariam numa posição ainda pior. No interior de cada grupo racial também poderiam ser identificadas diferenças hierárquicas, com os gregos da Antiguidade, como não poderia deixar de ser, ocupando a posição mais privilegiada entre os brancos. O fato das mulheres de Atenas não serem muito chegadas ao casamento e à procriação teria levado os excepcionais gregos a procurarem parceiras em outras terras, encontrando-se aí a raiz da decadência da civilização grega (Paul, 2008).
O movimento eugenista granjeou espaços e muito sucesso, sobretudo no século XX na Europa, nos países escandinavos, na Ásia e nas Américas. No Brasil, o movimento esteve imerso numa série de debates, alguns de natureza científica, a exemplo do conflito entre o neo-lamarckismo e o mendelianismo, outros relacionados com a ideologia racial no qual se discutia se os negros deveriam ser segregados ou assimilados, assim como sobre as múltiplas propostas de ação política relativas a temas como a higiene pública, a proteção materna, a legislação do trabalho e o controle de imigração (Stepan, 1990).
A tentativa de aperfeiçoar a raça brasileira, mediante a implementação de um programa eugenista, foi concebida segundo a perspectiva da chamada eugenia positiva, consonante com a suposição de que qualquer raça poderia ser aperfeiçoada, desde que a população, com o auxílio dos agentes públicos, se esmerasse em obter uma descendência saudável, o que dependeria da realização de matrimônios eugenicamente comprovados e da adoção de um ideal de paternidade consciente e responsável. Estas ações estavam subordinadas a um princípio eugenista, a tese do branqueamento, bastante popular entre os estudiosos brasileiros nos anos 1920 e 1930. O ideário eugenista contemplava comungar os esforços de políticos e das elites nacionais no sentido de fazer desaparecer de forma gradual, mas ininterrupta, o sangue negro e indígena da população brasileira, tornando-a, em algumas décadas, eminentemente branca. Se a própria natureza se encarregava de dar um empurrãozinho nessa direção, afinal os negros e indígenas eram vistos como mais propensos a serem dizimados por epidemias e doenças endêmicas, manifestavam uma clara preferência pela branquinha e se configurava como uma população dispersa e desorganizada após o fim da escravidão, seria necessário dar um impulso adicional ao trabalho da natureza e implementar políticas imigratórias destinadas a trazer genes brancos – europeus e não asiáticos, a se considerar o ácido debate sobre a conveniência de proibir a entrada de colonos japoneses no país – para purificar o sangue nacional.
Este ideário de extirpação da parte gangrenada incrementou a preocupação em criar um futuro para a nação, um futuro que deveria ser branco e ocidentalizado (Schwartz, 1994), embora não desconsiderasse o papel exercido pelas condições sociais, em particular, pelas condições sanitárias e de saúde pública. Nesse contexto, nem o clima, a raça e nem mesmo a saúva poderiam ser considerados os principais responsáveis pelo surgimento do personagem estereotipado do Jeca, o que levou parte do movimento eugenista brasileiro a considerar a saúde pública um fator bem mais decisivo que a seleção natural ou a genética (Stepan, 1990).
2.3.5.4. A afirmação da raça
A ampliação da importância dos discursos raciais é inseparável da reação dos intelectuais negros que vieram a público marcar um posicionamento contrário às teorias hierarquizadoras. De acordo com Banton (1999), um dos primeiros representantes deste movimento intelectual foi o médico James Horton, formado na Escócia, mas nascido em Serra Leoa que, em um livro publicado em 1868, desafiou as teorias raciais defendidas pelos antropólogos da época. A esta obra se seguem várias outras, publicados na Europa e nas Américas nos anos imediatamente posteriores ao livro de Horton, nas quais se acentua cada vez mais a crítica às teorias raciais até então prevalentes.
Se a divulgação e circulação destas ideias não parece ter sido suficiente para exercer um efeito de contraposição aos modelos teóricos hegemônicos, elas ganham importância por indicar, na origem, o surgimento de uma perspectiva intelectual que se imporá na segunda metade do século XX com o trabalho de pensadores que expressamente deixaram claro o quanto qualquer mudança da situação dos negros nas sociedades racistas será possível de ser alcançada apenas quando os próprios negros – ou os demais grupos vilipendiados – tomarem nas mãos os seus próprios destinos.
Conclusões sobre os estereótipos no período contemporâneo
A expressão dos estereótipos no mundo contemporâneo se tornou inseparável das teorias científicas que tomaram corpo com a finalidade de oferecer justificativas para o domínio colonial, para a legitimação das hierarquias sociais e raciais e a afirmação dos nacionalismos.

Os estudos subordinados à perspectiva do darwinismo social ganharam destaque, tendo sido adotado por uma parcela significativa dos estudiosos. Numa perspectiva distinta, assiste-se ao surgimento de uma nova sensibilidade social e científica, a partir da qual se torna possível a formulação e a difusão de teorias e obras destinadas a combater as teorias que respaldavam as visões hierarquizadoras ainda predominantes no final do século XIX.