Apresentação

Ao estudarmos os estereótipos e os preconceitos inevitavelmente nos deparamos com questões fascinantes. Em que medida estes fenômenos são automáticos e até que ponto conseguimos controlar a expressão dos nossos preconceitos?  Por que mudamos os padrões de julgamentos a depender das categorias sociais que estão sendo julgadas?  Por que o mero fato de lembrar de uma categoria social é suficiente para despertar determinados sentimentos e emoções? Por que preferimos as pessoas do nosso grupo em detrimento das afiliadas aos outros grupos sociais?

Por dever de ofício, cometo aulas sobre estereótipos e preconceitos para estudantes de graduação e pós-graduação. Digo isso para admitir que, independente das inúmeras discussões e controvérsias teóricas e conceituais, o principal interesse dos interlocutores reside quase sempre em saber se e como podemos enfrentar os preconceitos e estereótipos. A presente obra, ainda que não se atreva a oferecer uma resposta precisa para estas perguntas, assim como para as demais previamente aludidas, procura indicar e passar em revista as contribuições oferecidas pela psicologia social na tentativa de explicar e compreender fenômenos como os estereótipos, os preconceitos e a discriminação.

Este livro eletrônico, embora possa ser qualificado como uma obra de psicologia social, não foi redigido numa linguagem acadêmica. Evitamos, sempre que possível, introduzir discussões técnicas e deixamos de lado cuidados comuns em estudos científicos, a exemplo do relato dos testes de significância estatística, da estimativa do tamanho do efeito e da apresentação dos intervalos de confiança dos resultados. Em contrapartida, inserimos, ao longo dos capítulos, uma série de quadros, diagramas e gráficos, como também incluímos guias de leitura, nos quais estão referidos e comentados muitos dos estudos arrolados no texto.

O livro foi concebido tendo por alvo um público universitário mais amplo, sem treinamento formal na área da psicologia ou das ciências humanas e sociais, bem como o leitor curioso, incomodado ou simplesmente interessado em saber o que podemos fazer para enfrentar os preconceitos e estereótipos – não apenas os dos outros, mas também os nossos.

Procuramos, ao longo das páginas, revisar alguns estudos clássicos e relatar de forma panorâmica o estado atual das pesquisas na área. Apresentamos e discutimos conceitos que julgamos imprescindíveis, a exemplo das noções de estereótipos, preconceitos, discriminação, estigmas, sexismo, racismo e, sempre que possível, procuramos discorrer sobre estratégias que podem ser traduzidas em ações práticas, de execução relativamente fácil por professores, estudantes, trabalhadores, transeuntes ou por qualquer pessoa que se sinta ultrajada pela experiência de enfrentar ou mesmo testemunhar a expressão de atos discriminatórios, de atitudes preconceituosas ou de julgamentos estereotipados.

Três gotas de pessimismo…

Assinale-se, no entanto, que acentuar as estratégias de combate aos preconceitos não nos obriga a adotar uma profissão de fé otimista. As revisões sistemáticas da literatura científica sobre o tema (Brown, 1995; Paluck & Green, 2009) nos fazem crer que o sucesso das diferentes estratégias de enfrentamento dos preconceitos é bem limitado. Inicialmente destacaremos três grandes dificuldades que restringem as ações de combate aos preconceitos e aos estereótipos e, em seguida, indicaremos porque esta visão amarga pode ser temperada com algumas gotas de otimismo.

Uma primeira dificuldade se refere à facilidade com que acreditamos nas coisas e a natureza bastante estável dos nossos sistemas de crenças, o que nos obriga a acentuar o quão difícil é abandonar concepções arraigadas de mundo, substituindo-as por novas formas de encarar a realidade, por mais benéficas que possam vir a ser estas mudanças. A segunda reside no número de exemplares de crenças estereotipadas em circulação e na maneira pela qual estas crenças se organizam, sempre sob a forma de sistemas. Por fim, uma terceira e última  dificuldade se relaciona com o efeito dos sistemas normativos e como eles podem inibir as nossas ações, levando-nos a não sustentar em público muitas coisas que acreditamos e a afirmar outras que estamos bem distantes de crer.

I Credulidade

Os preconceitos se nutrem de estereótipos e os estereótipos são crenças. Crer significa simplesmente acreditar em algo, acolher como verdadeira uma proposição, uma sentença na qual se afirma algo sobre a realidade. As pessoas enfrentam dificuldades quando se defrontam com a situação de abrir mão daquilo em que acreditam. Não temos porque achar que elas, do nada, ou por muito pouco, simplesmente vão deixar de lado crenças acalentadas ao longo de uma vida, desde pequeninas lá em Barbacena!

Conhecer é um empreendimento difícil, especialmente quando o novo se opõe àquilo em que se acredita profundamente. Exige um enorme esforço cognitivo e aquele que crê precisa estar animado, motivado e afetivamente envolvido com o que está aprendendo para abandonar o fluxo de experiências a que está acostumado e buscar novas maneiras de apropriar e experimentar a vida. Dispomos de recursos que nos permitem dar conta de viver, assumir responsabilidades, sem que para isso tenhamos de estar a todo o tempo a pensar cuidadosamente em todas as coisas. Estes atalhos mentais, as heurísticas, como são denominadas na psicologia social, se encarregam de oferecer as respostas que precisamos, de forma quase automática, sem que nos preocupemos muito com o que está acontecendo e sem que cuidemos em refletir cuidadosamente sobre cada uma das nossas ações.

O efeito das heurísticas, no entanto, está longe de eliminar a nossa adesão à crença de que o ser humano se dedica a conhecer, da melhor forma possível, o mundo em que vive. A busca da explicação e do sentido das coisas é algo inerente a qualquer um de nós, eu, você, nossos amigos e conhecidos, todos somos assim. A experiência perceptual, aliada ao raciocínio, oferece um suporte bastante razoável para que possamos saber o que está acontecendo no mundo lá fora. Não é porque somos crédulos que deixamos de buscar informações sobre o ambiente físico e social em que vivemos (Festinger, 1954). Tentamos diferenciar, e não nos saímos mal nisso, as crenças justificadas daquelas que não conseguem se sustentar. Desafortunadamente, este reconhecimento é limitado e os erros de julgamento ao qual estamos sujeitos nos levam a crer que a nossa racionalidade é um tanto circunscrita, pois é mais do que comum que cometamos erros de raciocínio e nos deixemos levar pelos vieses de julgamento (Gilovich, Griffin & Kahneman, 2002; Kahneman, Slovic & Tversky, 1982).

A01

Ao expor os resultados de um estudo conduzido no ano de 2009, sobre em que os estadunidenses creem, Shermer (2011) mostrou-se estarrecido (não sem razão!) por algo que igualmente nos parece perturbador. Conforme se observa nos resultados apresentados na figura 1, os entrevistados acreditavam em Deus, em milagres, no céu, que Jesus Cristo é o filho de deus, em anjos, na sobrevivência da alma depois da morte, na ressurreição de Jesus Cristo, no inferno, no diabo a quatro e, somente lá na rabeira, bem no final da fila, encontramos que menos da metade dos entrevistados afirmava acreditar na teoria da evolução.

Figura 1: um mar de crenças (adesão, em percentual, a cada uma das crenças)

Um mar de crenças

Nos parece extremamente perturbador que mais pessoas acreditem em anjos do que numa hipótese que tem recebido respaldo científico, como é o caso da teoria da evolução. Esta tendência à credulidade, no entanto, não se restringe apenas aos entrevistados estadunidenses. Em um outro levantamento, desta vez com participantes britânicos, muitos asseguraram serem capazes de ler a mente de outras pessoas, de ter premonições, de terem visto fantasmas ou mesmo de que eram capazes de antecipar o exato momento em que um ente querido estaria em vias de enfrentar algum problema.

Face aos números encontrados na figura 1, não temos como negar a importância das nossas velhas crenças. Retomaremos ao modelo de Shermer, no qual se expõe a nossa dependência daquilo em que acreditamos, em um capítulo posterior. Por ora, é suficiente assinalar quão crédulos somos e quão pouco refratárias e imunes às ações educativas são as crenças tradicionais. Mudá-las, particularmente as supersticiosas e as que se fundamentam em hábitos mentais, depende de uma combinação na qual deve estar presente o estado de prontidão necessário da pessoa para abandonar aquilo em que crê, assim como mudanças culturais na visão de mundo acolhida majoritariamente pela sociedade. Isso depende não apenas de esforços educacionais consistentes, como também de mudanças significativas nos planos econômico, político, social e cultural.

Afinal, é possível abandonar as crenças antigas, aquelas que aprendemos desde a infância e que ajudam a sustentar os nossos preconceitos, substituindo-as por outras menos perniciosas? Esta é uma questão que vem despertando o interesse dos psicólogos sociais há algum tempo. Como veremos, as crenças não estão isoladas, uma vez que elas se organizam sob a forma de teorias, doutrinas, argumentos, sistemas de pensamento e visões de mundo. A aceitação de uma determinada interpretação de mundo, por exemplo, a concepção cristã da salvação, depende de vários fatores: as características da pessoa que crê, o seu apego, em maior ou menor grau, ao raciocínio lógico, o meio em que foi socializada, assim como de fatores objetivos, como a presença de instituições religiosas e a existência de pregadores da palavra divina. Por ser um sistema, podemos afirmar que as crenças congregam as características básicas de qualquer sistema: estar circunscrito a um contínuo geográfico e temporal e sustentar relacionamentos funcionais identificáveis e reconhecíveis entre os seus elementos constitutivos.

Importa assinalar que as relações entre os elementos dos sistema de crenças, embora sejam regidas pelos ordenamentos inerentes ao próprio sistema, não são necessariamente lógicas, sendo possível insinuar que as crenças estereotipadas podem ser representadas mais facilmente como um sistema psico-lógico do que propriamente lógico. Oskamp (1984) oferece um exemplo, representado na figura 2, que ajuda a entender a diferenciação entre estas duas dimensões e, para os nossos propósitos, ajuda-nos a compreender mais facilmente porque é tão difícil abandonar crenças arraigadas, como as que fundamentam os estereótipos.

Na cena 1, uma frota, constituída por três embarcações e um helicóptero, navega em formação, com todas as partes se comunicando de forma constante e ininterrupta. A posição de cada equipamento é reconhecida pelos demais, o que permite a cada unidade manter a navegação a uma velocidade consistente e guardar distância segura em relação aos outros componentes do sistema. Uma vez que os requisitos de continuidade espaço-temporal e de relacionamento funcional entre as partes estão preservados, não temos dificuldade em reconhecer que dispomos de um sistema perfeitamente funcional.

Figura 2: a imagem 3 ainda representa um sistema?

frota

Na cena 2, uma interferência externa se abate sobre o sistema, no caso, uma forte tempestade, que afeta e faz com que os recursos comunicacionais das unidades da frota deixem de funcionar. Este evento obriga cada elemento da frota a definir de forma independente o curso de navegação e a velocidade de cruzeiro, o que se reflete no cenário 3, onde podemos perceber que embora as três embarcações e o helicóptero continuem a navegar mantendo a formação original, não são capazes de estabelecer qualquer modalidade de comunicação entre si, ainda que ocupem um mesmo contínuo espaço-temporal. Podemos sustentar, afinal, que no cenário 3 ainda dispomos de um sistema?

Se considerarmos o conceito de sistema a partir de uma perspectiva estritamente lógica, não é difícil entender que, embora aparentemente naveguem em formação, nenhum componente estabelece conexões com os demais, o que o torna incapaz de referenciar a sua própria posição e ser referenciado pelos demais. Neste sentido, dificilmente poderíamos falar, segundo a definição previamente apresentada, em um sistema. Se, no entanto, consideramos que um sistema de crenças é muito mais psico-lógico do que propriamente lógico, então a coisa muda de figura. Podemos supor, por exemplo, que depois da tempestade o responsável pela navegação do helicóptero seja capaz de estimar a posição relativa das embarcações e ajustar a posição e a velocidade da sua própria aeronave, enquanto outras pessoas a bordo trabalham para consertar o piripaque no sistema de comunicação, ao tempo em que podemos imaginar, da mesma forma, que os responsáveis pelas demais embarcações estejam adotando procedimentos similares. Neste sentido, embora a comunicação não esteja factualmente presente, ela o está virtualmente, pois o potencial para voltar a estabelecer contatos com as demais unidades permanece presente em todo e qualquer elemento do sistema.

Como base neste exemplo, podemos considerar duas características que contribuem decisivamente para reforçar as nossas crenças e manter a nossa credulidade. Em primeiro lugar, devemos considerar que as partes do sistema são relativamente autônomas ou, pelo menos, que o funcionamento de um sistema não depende de conexões necessariamente lógicas entre as partes. Isso significa dizer que crenças incompatíveis ou mesmo contraditórias podem conviver com relativa tranquilidade no interior de um mesmo sistema psicológico. Podemos conviver com uma crença há muito acolhida, mesmo que disponhamos de informações que se mostrem contraditórias ou inconsistentes em relação ao que previamente acreditamos (Festinger, Ricken, & Schachter, 1956). Isso faz com que a mudança das crenças pela oferta de informações seja relativamente limitada, o que reduz substancialmente o poder persuasivo de novos argumentos. No que concerne aos estereótipos e preconceitos, podemos acolher e, mais do que isso, cultivar crenças igualitárias (Devine, 1989), ao mesmo tempo em que convivemos com crenças estereotipadas ou atitudes preconceituosas, sem que isso necessariamente venha a produzir mudanças substanciais naquilo em que acreditamos ou possa vir a gerar impactos dignos de nota na imagem que fazemos de nós mesmos.

Atividade 02

 Uma segunda questão se refere à relação entre as crenças e o sistema cognitivo humano, uma vez que a crença é o resultado de um processo, o de crer. Dois mecanismos da cognição, a assimilação perceptual e o contraste, exercem um papel significativo na maneira pela qual uma crença pode vir a ser incorporada ao sistema (Allport, 1956). A ação conjunta destes dois mecanismos impõe que as semelhanças entre elementos não muito díspares entre si sejam acentuadas, ao mesmo tempo em que as diferenças entre elementos distintos se tornam ainda mais salientes. A assimilação, neste sentido, favorece a aceitação daquilo que é compatível com o que previamente acreditamos, enquanto o contraste determina que as evidências pouco compatíveis com o que acreditamos sejam vistas como disparatadas e, em seguida, negligenciadas ou mesmo rejeitadas, ainda que as evidências sejam facilmente observáveis ou inteiramente plausíveis. Isso pode, claro, acarretar erros de julgamento. No nosso exemplo, os responsáveis pelo sistema de navegação estão sujeitos a exagerar por excesso de confiança e a acreditar que as partes continuam se deslocando em formação e numa velocidade consistente em relação às outras, ao tempo que negligenciam as evidências incompatíveis com essa crença, seja por considerar os indicadores que parecem irrelevantes ou por negar as evidências contraditórias.

Não podemos levar o nosso pessimismo ao extremo e dizer que crenças nunca possam ser abandonadas. Muitas crenças são frequentemente contestadas, particularmente na nossa época, na qual a oferta de informações pelos meios de comunicação de massa e, agora, pelas redes sociais, é avassaladora. A contestação de uma crença, entretanto, não acarreta necessariamente a descrença. Em algumas circunstâncias, a contestação de uma crença pode suscitar estados como o desconforto, a ansiedade e a raiva, respostas disruptivas no plano emocional ou mesmo condutas violentas. O papel das diferenças individuais é muito importante, uma vez que a maneira pela qual novas informações ou experiências alternativas de vida afetam as crenças, as atitudes e os valores, depende de atributos psicológicos como o grau de dogmatismo, de intolerância ou de rigidez mental. Da mesma forma, o papel dos contextos histórico, cultural e social deve ser considerado, como salientam os estudos sobre o papel exercido pela cultura New Age na aceitação e na difusão das teorias conspiratórias (Barkun, 2003).

Esta discussão nos leva a pensar quão difícil é modificar uma crença, assim como nos permite entender porque é tão fácil continuar a aceitar aquilo que há muito acreditamos. Julgamos que o caminho mais razoável para reverter crenças firmemente estabelecidas é a adoção de uma atitude científica e, mesmo nesse caso, não consideramos esta operação garantida. O método científico está longe de representar um caminho seguro para a redenção, pois os cientistas também são humanos e, como tais, estão sujeitos às mesmas ilusões e irracionalidades que a todos afligem (Pracontal, 2002; Sokal, 2000). Como seja, a discussão acerca da manutenção e estabilidade das crenças é particularmente importante para o estudo dos preconceitos e estereótipos. Mesmo que nos reconheçamos ignorantes e sejam oferecidas informações que nos permitam superar as trevas e alcançar a luz e a sabedoria, temos muitas dificuldades na hora de abandonar visões e modelos de mundo enraizados. Desafortunadamente, esta não é uma tarefa que se notabiliza pela facilidade com que pode ser alcançada. Abandonar uma atitude científica e acolher uma concepção de mundo pouco crítica pode tornar este enfrentamento ainda mais difícil.

II Crenças

A segunda dificuldade se refere a uma dimensão estritamente quantitativa, pois as crenças estereotipadas que fundamentam os preconceitos e a discriminação não são idiossincráticas. Quando falamos de eliminar um estereótipo, por exemplo, o de que as mulheres dirigem mal, não estamos falando apenas de um punhado de gente que acredita nisso e nem que este julgamento se aplique a uma mancheia de indivíduos. Podemos estimar, por alto, que esta crença estereotipada seja acolhida por milhões de homens e, ironicamente, por muitas mulheres. Quem a acolhe, termina por difundi-la, reforçando-a para os que a ela foram apresentados, ao tempo em que a apresenta para os demais. Podemos falar que dezenas de milhões de brasileiros acreditam numa mesma coisa, ou seja, que cerca de 40 milhões de mulheres habilitadas não são muito hábeis na condução de veículos automotores. Dito de uma forma menos eufemística, talvez algo como cinquenta milhões de brasileiros acreditem que quarenta milhões de mulheres ao volante podem significar perigo constante!

Todo aquele ou aquela que tentou convencer um outro, seja quem for, qual seja o motivo, reconhece que modificar as crenças de uma, duas ou três pessoas é uma tarefa árdua, mesmo que conheçamos a quem queremos influenciar, saibamos como agradá-la, estejamos cientes dos argumentos a serem enfatizados e conheçamos o tom de voz a ser adotado para persuadi-la. Face a isso, não podemos deixar de estimar a magnitude da dificuldade que representa modificar as crenças de milhões de pessoas a quem nunca vimos, com as quais nunca mantivemos qualquer tipo de contato, sem que tenhamos qualquer noção das características psicológicas e do meio social de onde elas são oriundas e pouco saibamos acerca do ambiente em que habitam e circulam.

O cenário se torna ainda mais complicado caso reconheçamos que as crenças estereotipadas não se apresentam de forma isolada, mas sim sob a forma de sistemas. Podemos sustentar que nem todas as partes dos sistemas de crenças são compartilhadas de forma homogênea por todos os indivíduos que pertencem a uma coletividade, grupo ou categoria social. Exatamente por isso, não consideramos aceitável a ideia de representações reificadas ou de um universo consensual, pois nos sentimos obrigados a levar em consideração as diferenças na forma pela qual as crenças são compartilhadas na sociedade. Em outros termos, não nos parece aceitável a tese de que exista um ente coletivo que compartilhe crenças, uma vez que as entendamos como proposições, acolhidas como verdadeiras por ao menos uma pessoa, que afirmam as relações entre um objeto e um atributo (Krüger, 1995). Ao admitirmos que as crenças não são reificadas, obrigamo-nos a aceitar que os indivíduos simplesmente acolhem diferentes versões de uma mesma crença. Isso é bastante importante, pois uma crença pode ser considerada compartilhada quando o indivíduo reconhece como semelhante à sua uma proposição enunciada por outra pessoa na qual se encontra expressa uma formulação similar àquela em que acredita.

Por que é importante reconhecer que os exemplares de uma crença compartilhada, mesmo sendo relativamente semelhantes entre si, podem provocar distintas reações em pessoas diferentes? Substancialmente, porque somos afetados não pelo sistema como um todo, mas sim pela maneira como as proposições estão articuladas no sistema de crenças de cada um. Ao reconhecer que compartilho uma crença com um outro indivíduo, que ele ou ela acredita em algo que eu também creio, compartilhamos não o sistema de crenças na sua totalidade, mas algumas das proposições particulares subsumidas pelo sistema de crenças que ambos acolhemos. Isso nos obriga a encontrar um formulação que permita representar a maneira pela qual os sistema de crenças estão organizados.

A figura 2 exprime o que entendemos por sistemas de crenças e evidencia os dois domínios segundo os quais esses podem ser diferenciados, as dimensões horizontal e vertical. O primeiro domínio se refere a uma série de proposições que se encontram articuladas em níveis mais centrais ou periféricos, enquanto a dimensão vertical se refere aos silogismos que permitem ao indivíduo acolher e encontrar justificativas para as crenças com as quais convive.

Figura 3: crenças horizontais e verticais

sistema_simples

No que concerne ao domínio horizontal, podemos identificar que as crenças x, y e z fazem parte do sistema C e, adicionalmente, que algumas estão localizadas numa região central e  outras numa posição mais periférica. O exemplo da crença estereotipada de que mulher é ‘meia roda’ nos ajuda a entender melhor a diferenciação aqui proposta. Podemos supor que este sistema seja composto pela crença z, expressa pela proposição ‘mulheres não tem controle emocional para dirigir’, pela crença x, retratada na proposição ‘mulheres não são capazes de manejar veículos pesados’, e pela crença y, sintetizada pela proposição ‘mulheres não usam apropriadamente os equipamentos de segurança do veículo’. Estes são apenas exemplos de crenças e poderíamos incluir vários outros, pois os sistemas usualmente são constituídos por um número substancial de proposições. Para o nosso argumento é suficiente assinalar que entendemos que o sistema de crenças pode ser e continuará sendo o mesmo, ainda que alguns indivíduos excluam a crença x, substituindo, por exemplo, por uma suposta crença k, expressa pela proposição ‘mulheres dirigem devagar, o que atrapalha a fluidez do trânsito’.

No que concerne à dimensão vertical, uma vez que as crenças são constituídas por proposições, aceitá-las depende de uma estrutura constituída por silogismos que se encadeiam de uma maneira relativamente plausível e sustentam as relações lógicas entre as proposições que as constituem e fundamentam. Deste modo, a crença z pode ter sido acolhida pela experiência pessoal de ter observado uma mulher bastante nervosa durante a condução (Cz0), a crença x pelo relato de um camarada que trabalhou com uma mulher que enfrentava dificuldades quanto era obrigada a manejar veículos de grande porte (Cx1) e a y por ter ter lido um relatório de um investigador cuja pesquisa empírica o levou a constatar que as mulheres não usam com frequência os itens de segurança disponíveis nos veículos modernos (Cy2).

A diferenciação entre as dimensões horizontais e verticais das crenças impõe o entendimento de que alguns indivíduos possam compartilhar o sistema de crenças C, acolhendo as crenças x, y ou z, enquanto outros aceitam as crenças x, z, y, z, k, w ou r, pouco importa a natureza das crenças horizontais, desde que essas estejam subordinadas a um mesmo sistema. Adicionalmente, indivíduos podem ter passado a acreditar em algo a partir do raciocínio inferencial indutivo ou dedutivo, devido à influência de um argumento de autoridade ou pela própria experiência pessoal. É possível supor, que por mais semelhantes que sejam os sistemas de crenças acolhidos por dois indivíduos, em alguma medida as conexões horizontais e verticais entre as proposições que fundamentam as crenças devem ostentar alguma marca diferenciadora. Alguém que reconhece que o outro possui uma crença que se assemelha àquela que também acolhe é capaz de identificar as similaridades em algumas das proposições do sistema, mas não no sistema como um todo.

atividade 03

Esta diferenciação permite introduzir um outro elemento igualmente importante relacionado com a adesão aos sistemas de crenças. Diferentes segmentos de uma sociedade ou coletividade podem acolher um determinado sistema de crenças e, a depender da esfera de socialização ou do grau de exposição às várias versões dessa mesma crença, cada pessoa estará sujeita a aderir, com maior ou menor intensidade, a esta crença e a se engajar em atividades que se relacionem mais amiúde com as crenças que aceitam com mais intensidade e se manter alheia às atividades relativas às crenças as quais não aderem de forma tão intensa.

Ainda que o grau de centralidade contribua de forma decisiva na maneira pela qual a crença é compartilhada por uma pessoa, nem todas as crenças de primeira ordem, derivadas da experiência pessoal, são igualmente compartilhadas. Não duvidamos que uma pessoa que creia estar a ver uma mula sem cabeça desfilando de salto alto na garupa do motoqueiro fantasma acredite naquilo, especialmente se sabemos que esta pessoa é um delirante contumaz. Ainda que algumas crenças sejam acolhidas de forma independente de qualquer compartilhamento social e dependam da experiência de primeira ordem com o objeto da crença, elas provavelmente continuarão sendo crenças idiossincráticas e, como tais, terão pouca probabilidade de ser coletivamente compartilhadas. Podem, e geralmente têm, um significado todo especial na vida de quem as acolhe, mas em quase nada contribuirão para o gerenciamento dos encontros sociais e serão de pouca valia na preparação e implementação de agenciamentos grupais ou coletivos.

III Descompasso

Um terceiro elemento que inibe o nosso otimismo diz respeito à relação peculiar que as pessoas estabelecem com as suas próprias atitudes preconceituosas ou com as crenças estereotipadas, pois nem sempre o que elas dizem ou fazem é o que elas pensam ou sentem. Um dos primeiros estudos a chamar atenção para esta tendência acentuava a discrepância entre as atitudes sociais e as ações, o que contraria a relação de congruência supostamente esperada entre as nossas avaliações e as ações que manifestamos (LaPiere, 1934). 

atividade 05

No estudo, modelo para muitas pesquisas posteriores na área dos preconceitos e estereótipos, LaPiere perguntou a proprietários, gerentes e funcionários de hotéis e de restaurantes se aceitariam uma reserva para ele e para um casal de chineses e avaliou se a ação foi compatível com o que se afirmou. Para entender a lógica da pesquisa, é importante considerar o contexto histórico e geográfico no qual ela foi realizada, pois à época, os anos trinta do século passado, os asiáticos não ostentavam uma reputação muito positiva na sociedade estadunidense, não sendo incomum que estabelecimentos, a exemplo de hotéis e restaurantes, adotassem políticas restritivas visando impedir ou inibir o acesso de clientes associados a determinados grupos étnicos ou categorias sociais.

Quadro 1: estrutura e resultados do estudo de LaPiere (1934)

lapiere

A discrepância entre as atitudes e as condutas dos responsáveis pelos estabelecimentos é nitidamente observada no quadro 1, pois mesmo que muitos gerentes e funcionários tenham previamente afirmado que não receberiam, concretamente apenas seis hotéis e catorze restaurantes rejeitaram ou apresentaram restrições em relação à aceitação do casal de asiáticos. Na segunda etapa do estudo, conduzida seis meses depois, foi confirmada a contradição entre o que se afirma e o que se pratica, pois se quase todos os hotéis e restaurantes aceitaram e receberem os hóspedes, quando previamente contactados por carta, menos de dez por cento dos estabelecimentos confirmaram a reserva solicitada.

Atividade 05O exemplo, por certo, não reflete bem os estudos atuais acerca dos preconceitos, uma vez que o aspecto mais pragmático acabou dominando, pois os empreendedores preferiram o lucro aos preconceitos. Nos estudos atuais, o descompasso é de outra ordem, sendo mais comum a situação em que a pessoa não exprime claramente os preconceitos que continua intimamente a aceitar. No capítulo 5, dedicado à discussão das novas formas de expressão dos estereótipos e preconceitos, trataremos mais amiúde desta tendência e aprofundaremos a presente discussão. Finalizaremos este capítulo introdutório mudando um pouco de tom, pois não podemos causar a falsa impressão de que somos excessivamente pessimistas.

… e alguns suspiros de otimismo

Se não podemos ser muito otimistas, pois 1) somos crédulos e temos dificuldades em abandonar hábitos e modos de pensar arraigados; 2) as crenças estereotipadas e as atitudes preconceituosas são acolhidas por muita gente;  e 3) não temos porque acreditar que o que as pessoas dizem ou fazem é o que de fato elas sentem ou pensam, também não encontramos justificativas para acolher uma visão exageradamente pessimista. Acreditamos ser possível desenvolver estratégias de relativo sucesso no combate aos preconceitos e estereótipos desde que esta visão positiva se encontre subordinada a um princípio básico, de natureza cognoscitiva: para modificar a realidade é necessário conhecê-la. O princípio geral que rege a presente obra é este: se queremos modificar a realidade, é imperativo que procuremos conhecê-la.

Atualmente parece estar em curso uma nova sensibilidade em relação aos grupos marginalizados ou objeto de preconceitos e discriminação. Em muitas sociedades ser explicitamente preconceituoso não é uma atitude ostentada de forma completamente aberta, pois parece ser mais natural adotar uma atitude de tolerância e de compreensão em relação às diferenças e aos diferentes. Em muitos grupos sociais, e em muitos contextos, a abominação ou a crítica ao preconceito é algo normativo. Isso é o reflexo de um conjunto de pressões resultantes da ação dos grupos de militância, passando pelas políticas públicas de inclusão social. Nessa mesma direção, no âmbito acadêmico, a adesão a uma perspectiva emancipatória ganhou corpo de forma acentuada e tem orientado uma boa parte dos estudos e pesquisas sobre o tema.

No capítulo 4, dedicado à discussão do desenvolvimento histórico dos preconceitos,  teremos a oportunidade de assinalar a ruptura ocorrida em determinado momento do século XX, quando a expressão do preconceito e das práticas discriminatórias deixa de ser normativa e passa a ser objeto de algum tipo de sanção social. Fica claro, a partir de então, o entendimento do preconceito como uma atitude injusta e, adicionalmente,   passam a ser formuladas leis e normas destinadas a modificar costumes e práticas que condenavam algumas categorias e grupos sociais a serem tratados de forma diferenciada e injusta.

Uma série de normas internacionais e estudos de grande impacto ofereceram respaldo filosófico e político para o surgimento de leis contrárias à discriminação. Sob os auspícios da ONU, e de seus órgãos auxiliares, muito acordos foram assinados pela maioria dos países, destacando-se, entre outros, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (sic) (1948), a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem (sic) e das Liberdades Fundamentais (1950) e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1969). No Brasil, exemplos como as leis 7.716/89, que pune crimes de discriminação e preconceito de raça, cor, etnia, religião, ou procedência nacional e a lei 7.853/89, relativa à discriminação contra pessoas com deficiência, se perfilam nessa mesma direção.

As mudanças na legislação evidentemente são lentas e, por mais que sejam discutidas antes de serem aprovadas, não exercem um impacto imediato e direto na práticas sociais. Para se tornar efetiva uma lei depende do trabalho conjunto de uma série de atores, a exemplo dos sistemas judiciário e penal, dos partidos políticos e da sociedade organizada, merecendo destaque o esforço e a capacidade de organização de grupos de militância antidiscriminação. Alguns programas, como os subordinados às políticas de reparação, muitos acontecimentos, a exemplo dos episódios de desobediência civil, assim como movimentos, tais como o dos Panteras Negras, nos Estados Unidos da América, e os movimento negro e GLBTT no Brasil, servem de exemplo e refletem os anseios de muitos grupos e categorias sociais no sentido de combater práticas injustas e claramente discriminatórias. Por certo, tanto as políticas de inclusão social quanto as normas e leis de combate à discriminação devem muito da sua existência aos grupos socialmente organizados e aos seus militantes.Atividade 06

Um outro fator que suscita algum otimismo pertence mais ao domínio acadêmico do que propriamente social e está diretamente associado com o surgimento e a relativa popularização das denominadas perspectivas emancipatórias de estudo e pesquisa dos fenômenos sociais. Ao substituir o critério de validação empírica pelo critério de validade emancipatória estas tendências teóricas foram capazes de estabelecer laços de convivência e de atuação conjunta com uma parcela dos movimentos sociais, oferecendo uma base reflexiva de orientação para a ação. Perspectivas como as da teoria crítica, nas ciências sociais, e o construtivismo e a análise do discurso, na psicologia social, favoreceram o desenvolvimento de estudos em áreas antes pouco abordadas pelas modalidades tradicionais de estudo e, como tal, contribuíram para que grupos e movimentos sociais de pouca visibilidade no meio acadêmico pudessem ser escutados.

Julgamos, no entanto, de bom alvitre temperar este otimismo com uma pitada de comedimento e evitar a adoção de posturas pouco realistas. É importante assinalar que o mundo está longe de ser o que gostaríamos que ele fosse ou o que imaginamos que ele é. Não é porque achamos que as coisas não deveriam ser assim que elas deixam de ser. Não nos parece aceitável acolher um tipo de voluntarismo que se sustenta na suposição de que, uma vez organizados e preparados para a luta, os grupos serão capazes de superar todas as barreiras dos preconceitos e da discriminação. Certamente a luta, a militância, a organização, todos estes elementos são absolutamente necessários; não duvidamos disso, porém não julgamos este tipo de voluntarismo suficiente para produzir mudanças significativas nos cenário em que os estereótipos e preconceitos se expressam. Acreditamos que os militantes, assim como os grupos de defesa das minorias e maiorias alvos dos estereótipos e preconceitos, devem se apropriar de teorias e técnicas de intervenção cientificamente justificadas para conseguir impor uma orientação mais sistemática às suas atividades e ações. Nos capítulos finais discutiremos as distintas modalidades de intervenção e indicaremos o que podemos esperar de cada uma delas. Antes disso, julgamos importante apresentar, mesmo que de forma breve e sucinta, os conceitos a serem utilizados ao longo do livro. Este será o objeto do próximo capítulo.

Capítulo 2. Agir, sentir, acreditar: uma antiga diferenciação ainda prevalente

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