Os estereótipos são crenças, um constructo de base cognitiva e, como tal, fortemente associado aos nossos pensamentos, à nossa imaginação ou até mesmo às nossas fantasias. Definidos como crenças, não devem ser confundidos com a discriminação, um constructo situado além do domínio do pensamento e das fantasias, por estar associado com o plano das condutas, em especial daquelas nas quais alguém é alvo de um tratamento diferenciado, usualmente injusto. Certamente, as condutas discriminatórias podem estar fundamentadas, ou quase sempre se sustentam, em estereótipos, donde a necessidade de diferenciar o estereótipo, a crença, da ação resultante do acolhimento dessa crença, a discriminação.
1.2.1. Os estereótipos são crenças
Estereótipos são crenças e crer significa simplesmente acreditar em algo, acolher como verdadeira uma proposição, uma sentença na qual algo é afirmado sobre a realidade. Dada a conotação negativa que os caracteriza, sempre imaginamos que os estereótipos devem ser enfrentados. Enfrentá-los significa, portanto, modificar ou abandonar as nossas crenças. Desafortunadamente não temos por que achar que do nada, ou por muito pouco, simplesmente deixaremos de acalentar crenças acolhidas ao longo de uma vida! Perseveramos em defender aquilo em que acreditamos e isto não se restringe às crenças sobre a nossa própria identidade. A dificuldade em abandonar as crenças é particularmente grave no que concerne às nossas crenças a respeito das outras pessoas, sobre o mundo e sobre a maneira pela qual este funciona (Anderson, Lepper, & Ross, 1980; Anderson, & Lindsay, 1998; Ross, Lepper, & Hubbard, 1975). O apego às crenças, a dificuldade em abandoná-las é um tema central de estudos na psicologia social, sendo particularmente importante no campo de estudos dos estereótipos.
Por mais que acreditemos no poder libertador do saber, o conhecimento desafortunadamente não contribui muito para reduzir os estereótipos. Conhecer é um empreendimento difícil, especialmente quando o novo se opõe àquilo em que acreditamos profundamente, pois exige um enorme esforço cognitivo e precisamos estar animados, motivados e afetivamente envolvidos com o que estamos aprendendo para abandonar o fluxo das experiências habituais e buscarmos novas maneiras de experimentar a vida. Indubitavelmente dispomos de recursos que nos permitem dar conta de viver, assumir responsabilidades, sem que, para isso, tenhamos de estar, a todo o tempo, pensando cuidadosamente em todas as coisas. Estes atalhos mentais, as denominadas heurísticas, oferecem as respostas que precisamos, de forma quase automática, sem que nos preocupemos muito com o que está acontecendo e sem que cuidemos em refletir cuidadosamente sobre cada uma das nossas ações.
O efeito das heurísticas, no entanto, não elimina a nossa adesão à crença de que o ser humano se dedica a conhecer, da melhor forma possível, o mundo em que vive. A busca da explicação e do sentido das coisas é algo inerente a qualquer um de nós, todos somos assim. A experiência perceptual, aliada ao raciocínio, oferece um suporte bastante razoável para que possamos saber o que está acontecendo no mundo lá fora. Não é porque somos crédulos que deixamos de buscar informações sobre o ambiente em que vivemos, tanto no que se refere ao mundo físico quanto ao mundo social (Festinger, 1954). Tentamos diferenciar as crenças justificadas das insustentáveis e não nos saímos mal nisso. Desafortunadamente, este reconhecimento se mostra limitado e os erros de julgamento ao quais estamos sujeitos nos levam a crer que a nossa racionalidade é um tanto circunscrita, pois é mais do que comum cometermos erros de raciocínio e nos deixarmos levar pelos vieses de julgamento (Gilovich, Griffin & Kahneman, 2002; Kahneman, Slovic & Tversky, 1982).
A partir do exposto, obrigamo-nos a admitir que a dúvida não é um dos componentes essenciais da episteme; nós, humanos, de modo geral, somos essencialmente crédulos. Essa certeza confirma a centralidade da noção de crenças na psicologia social, levando-nos a aceitar a ideia de que somos as nossas crenças. O papel central das crenças na nossa vida tem sido tradicionalmente acentuado por muitos estudiosos (Bem, 1973; Rokeach, 1981), sendo particularmente significativo para o nosso argumento o modelo realista dependente das crenças (Shermer, 2012), adotado prioritariamente para investigar as causas e as razões pelas quais acolhemos crenças com diferentes graus de credibilidade.
Conforme observado na figura 2, a concepção realista dependente das crenças difere dos modelos clássicos sobre o crer por abandonar uma noção amplamente aceita pelos estudiosos, a cartesiana, e acolher uma perspectiva diametralmente oposta, a espinosiana (Gilbert, 1991). O fluxo da informação compatível com a perspectiva cartesiana clássica sustenta que ao acolher uma crença o agente cognitivo busca ativamente a informação presente no mundo real, inicialmente levanta dúvidas sobre o próprio julgamento avaliativo para, como um bom cartesiano, avaliar sistematicamente cada peça de informação até se sentir apto a proferir um julgamento acerca do valor de verdade daquilo em que ousou acreditar.
A teoria realista dependente das crenças não apenas postula a existência de um mundo real, como também admite que as pessoas indiscriminadamente professam e difundem teorias sobre as várias dimensões da realidade. O agente cognitivo, a princípio, não tem por que duvidar de nada, pois não dispõe de imediato de recursos intelectuais que o habilite a estabelecer contrastes entre o que observa ou entende e as suas próprias crenças ou as crenças hegemonicamente acolhidas na sociedade em que vive. A dependência do agente em relação aos outros, sejam pessoas da própria família, parentes, amigos, educadores ou especialistas, termina por torná-lo naturalmente inclinado a aceitar os pontos de vista hegemônicos sem estabelecer objeções dignas de nota. Apenas depois de acolhida a crença, o agente pode se dispor a buscar informações adicionais, sobretudo se encontra indícios que lhe permita duvidar daquilo em que acredita e, com base nessas novas informações, tanto pode vir a desenvolver arrazoados explanatórios que o levará a duvidar daquilo do que crê quanto elaborar ou buscar explicações compatíveis com os sistemas de crenças previamente acolhidos.
Ao expor os resultados de um estudo conduzido no ano de 2009 sobre as crenças dos estadunidenses, Shermer (2011) se mostrou estarrecido e, não sem razão, por algo que igualmente nos parece assustador. Conforme observado na figura 3, os entrevistados, pela ordem de importância, acreditavam em deus, em milagres, no céu, que Jesus Cristo é o filho de deus, nos anjos, na sobrevivência da alma depois da morte, na ressurreição de Jesus Cristo, no inferno, no diabo a quatro e somente lá na rabeira, bem no final da fila, se posicionava a teoria da evolução.
Parece-nos perturbador que mais pessoas acreditem em anjos do que em hipóteses respaldadas pela comunidade científica. Esta tendência à credulidade (Forgas, & Baumeister, 2019), no entanto, não se restringe apenas aos entrevistados estadunidenses. Em um outro levantamento, desta vez com participantes britânicos, muitos entrevistados se consideravam habilitados a ler a mente de outras pessoas, afirmavam ter premonições, asseguraram terem visto fantasmas ou mesmo que eram dotados da capacidade de antecipar o exato momento em que um ente querido estaria em vias de enfrentar algum infortúnio. No início do período da pandemia de COVID-19 conduzimos, ao lado dos nossos colegas do Laboratório de Estudos dos Processos Psicológicos e Sociais (LEPPPS/UFBa), um estudo no qual encontramos um padrão de resultados muito semelhante e identificamos o quanto as crenças tradicionais continuam sendo acolhidas em um mundo secular como o nosso.
Conforme o grafo, elaborado com o aplicativo Gephi e apresentado na figura 4, a crença em deus foi considerada a mais relevante pela maior parte dos respondentes do nosso estudo. Bem mais importante do que isso, no entanto, foi a maneira pela qual os participantes ordenaram a importância das crenças, pois identificamos duas classes de participantes, os que atribuíram sistematicamente uma maior importância às crenças cientificamente justificadas (teoria da evolução, átomos e moléculas, genética, vacinas, big bang e aquecimento global) e aqueles que adjudicaram maior importância às crenças tradicionais (deus, milagres, céu, anjos, diabo, inferno). É interessante assinalar que muitos participantes com maior apego às crenças cientificamente justificadas posicionaram a crença em deus como a mais importante e, em seguida, as demais crenças científicas, um indicador de que as crenças se organizam de uma maneira não necessariamente lógica.
Face ao exposto, não podemos deixar de reconhecer o quanto as pessoas diferem em relação à importância atribuída às coisas e entidades nas quais acreditam. As crenças são decisivas na nossa vida e muitas delas são praticamente impossíveis de sofrerem modificações. A importância de uma crença deve ser dimensionada levando em consideração as demais crenças a ela relacionadas. As relações entre as várias crenças acolhidas por uma mesma pessoa devem ser interpretadas à luz do conceito de sistemas de crenças. As crenças no interior de um sistema se organizam em termos da dimensão centralidade – periferia, pois algumas são mais centrais do que outras. As crenças mais centrais por certo possuem mais importância para a vida de quem as acolhe. Crenças existenciais sobre a própria identidade, assim como as crenças experienciais sobre a realidade física, são mais centrais e críveis do que crenças baseadas em autoridade ou crenças que se fundamentam em questões de gosto.
Face aos números, não temos como negar a importância das crenças tradicionais, sendo suficiente assinalar quão crédulos somos e quão as crenças são pouco refratárias e imunes às ações educativas. Modificá-las, particularmente as supersticiosas e as que se fundamentam em hábitos mentais, depende de uma combinação na qual deve estar presente o estado de prontidão necessário da pessoa para abandonar aquilo em que acredita, assim como mudanças culturais na visão de mundo acolhida majoritariamente na sociedade, o que depende não apenas de esforços educacionais consistentes, como também de mudanças significativas nos planos econômico, político, social e cultural.
Afinal, é possível abandonar as crenças antigas, aquelas que aprendemos desde a infância e que ajudam a sustentar os nossos preconceitos, substituindo-as por outras menos perniciosas?
As transformações nos sistemas de crenças não são fáceis, sobretudo pelo fato das crenças não estarem isoladas, uma vez que elas se organizam sob a forma de teorias, doutrinas, argumentos, sistemas de pensamento e visões de mundo. A aceitação de uma determinada interpretação de mundo como, por exemplo, a concepção cristã da salvação, depende de muitos fatores: as características da pessoa que crê; o seu apego, em maior ou menor grau, ao raciocínio lógico; o meio em que ela foi socializada; assim como de fatores objetivos como a presença de instituições religiosas e a existência de pregadores da palavra divina. Por ser um sistema, podemos afirmar que as crenças congregam as características básicas de qualquer sistema, pois estão circunscritas a um contínuo geográfico e temporal e sustentam relacionamentos funcionais identificáveis e reconhecíveis entre os seus elementos constitutivos.
Ademais, julgamos importante assinalar que as relações entre os elementos dos sistemas de crenças, embora regidas pelos ordenamentos inerentes ao próprio sistema, não são necessariamente lógicas, sendo possível insinuar que as crenças estereotipadas podem ser representadas mais facilmente como um sistema psico-lógico do que propriamente lógico (Abelson, & Rosenberg, 1958). Por exemplo, muitos dos que atribuíram a importância mais alta a crença em deus, também posicionaram a vacina numa posição privilegiada na hierarquia das crenças, sem que isso impusesse qualquer contradição ao sistema, afinal deus na sua grandeza pode ser considerado o responsável pela criação das vacinas, do big bang e dos demais itens incluídos no sistema de crenças cientificamente justificado.
Além destes elementos inerentes ao próprio processo de crer, uma segunda dificuldade de enfrentamento dos estereótipos se refere a uma dimensão estritamente quantitativa, pois as crenças estereotipadas que fundamentam os preconceitos e a discriminação não são idiossincráticas.
Quando falamos em eliminar um estereótipo, por exemplo, o de que as mulheres dirigem mal, não estamos falando apenas de um punhado de gente que acredita nisso e nem que este julgamento se aplique a uma mancheia de garotas velozes. Podemos estimar, por alto, que esta crença estereotipada seja acolhida por milhões de homens e, ironicamente, por centenas de milhares de mulheres. Acolhemos as crenças e nos encarregamos de difundi-las. Podemos falar que dezenas de milhões de brasileiros acreditam numa mesma coisa, ou seja, que cerca de 40 milhões de mulheres habilitadas não são muito hábeis na condução de veículos automotores ou, dito de uma maneira menos eufemística, talvez algo como cinquenta milhões de brasileiros acreditem que quarenta milhões de brasileiras ao volante podem representar perigo constante! Todo aquele ou aquela que tentou convencer um outro, seja este quem for e por qual seja o motivo, reconhece que modificar as crenças de uma, duas ou três pessoas é uma tarefa árdua, mesmo que conheçamos as pessoas a quem queremos influenciar, saibamos como agradá-la, estejamos cientes dos argumentos a serem enfatizados e conheçamos o tom de voz a ser adotado para persuadi-las. Se multiplicarmos esta situação por milhões, talvez possamos estimar quão difícil pode ser a tarefa de combater os estereótipos.
1.2.2. Estereotipizar não é discriminar
O termo discriminação se refere a uma conduta, mais ou menos perceptível ou claramente manifesta, que pode ser interpretada como um comportamento diferenciado em relação a um membro de um grupo ou de uma categoria social. Ao contrário dos preconceitos que sempre envolvem uma avaliação negativa, uma discriminação, embora usualmente ostente uma conotação negativa, pode ser positiva, em particular nas circunstâncias em que se supõe ser necessário reparar o grupo ou categoria alvo de um tratamento injusto previamente identificado.
Ainda que seja a face mais visível dos fenômenos discutidos na presente obra, uma vez que envolve alguma forma de ação, não é nada fácil definir a discriminação, já que ela se manifesta sob uma infinidade de maneiras, assume contornos muito diversos e acarreta diferentes tipos de consequências. Agrega-se a isto uma faceta muito importante, o efeito cumulativo; raramente a experiência de ser discriminado é episódica e o alvo tende a conviver repetidamente com situações nas quais é objeto de tratamento diferenciado. Os pesquisadores encontram muitos problemas para conceituar e mensurar apropriadamente a discriminação, sendo imprescindível a adoção de uma abordagem transversal e uma orientação metodologicamente diversificada para a obtenção e análise dos dados que permitam testar e acolher hipóteses cientificamente justificadas.
Uma vez que a discriminação implica em atos legalmente imputáveis, a sua definição deve levar em consideração os elementos legais sem que esta aproximação venha significar a perda da especificidade e do rigor científico (Godoi, & Garrafa, 2014; Higa, 2016). Ao definir discriminação, um grupo de especialistas (Blank, Dabady e Citro, 2004) designado pelo governo estadunidense para estabelecer diretrizes condizentes com o estudo da discriminação racial nos Estados Unidos da América, apontou duas dimensões a serem consideradas:
1) discriminar pode envolver o tratamento diferenciado de um determinado grupo em função da sua pertença racial, algo que ocorre quando agentes privados ou públicos adotam ações que ferem o princípio da igualdade e que se encaminham facilmente no sentido de impor desvantagens materiais e simbólicas aos membros de um grupo racial específico; e
2) também ocorre a discriminação quando se observa o impacto de fatores não claramente definidos ou justificados em termos raciais, mas que proporcionam uma clara desvantagem em relação a algum grupo racial, o que ocorre mediante a aplicação de determinadas decisões, não diretamente relacionadas com a dimensão racial, mas que termina por acarretar consequências que afetam de forma negativa e indireta a um determinado grupo racial.
Acreditamos que os princípios acima expostos não se restringem à discriminação racial e podem ser generalizados e aplicados a outras modalidades de discriminação.
1.2.2.1. Discriminação indireta
Os pesquisadores dedicados a estudar a discrepância eu-grupo indicam o quão é difícil se reconhecer pessoalmente alvo de discriminações (Forster & Matheson, 1999; Kessler, Mummendey & Leisse, 2000; Ruggiero, 1999). O conceito se refere a uma experiência relativamente comum entre membros de grupos discriminados ou minoritários que, solicitados a avaliar se teriam sido objeto de discriminação ou de atitudes preconceituosas, afirmam que, pessoalmente, nunca passaram por experiência semelhante, embora o grupo ao qual pertençam tenha sido alvo frequente de discriminação.
Parece-nos extraordinário que algumas explicações para este fenômeno tenham se transformado em categorias acusatórias, transformando o alvo da discriminação em um sujeito que tende a distorcer a realidade para proteger a autoestima e o autoconceito. Ainda que não duvidemos de que o fato de se reconhecer como alvo de um tratamento injusto não seja exatamente uma experiência invejável, acreditamos que essa discrepância, mais do que um mecanismo psicológico de defesa do eu ou uma heurística cognitiva, representa uma tradução relativamente acurada da realidade; pois os membros de determinadas categorias não encontram dificuldades em reconhecer que a categoria a qual pertencem tem sido objeto de um tratamento diferenciado, mesmo que este tratamento não venha a afetá-los diretamente.
Os reflexos destas diferenças de tratamento ou de oportunidades podem se manifestar em vários níveis, como nas condições de educação, trabalho ou renda. Para identificar a existência de alguma modalidade indireta de discriminação, os estudiosos tendem a definir uma categoria padrão e a analisar, mediante a aplicação de determinados critérios, as diferenças em relação a alguns destes parâmetros entre o grupo padrão e categorias que se supõe receber um tratamento diferenciado. Geralmente, o grupo padrão a partir do qual as comparações são conduzidas em praticamente todos os países é o dos homens brancos e, com base nessa referência, são estabelecidos contrastes em relação aos homens negros e às mulheres, brancas e negras, por exemplo (Banuth, & Santos, 2016; Soares, 2000).
No Brasil, bem como em muitos países, as diferenças no acesso à saúde, à educação e a outros serviços públicos e privados entre a população branca e negra são muito acentuadas. Blank, Dabady e Citro (2004), ao sistematizarem as áreas na qual a discriminação racial tem se mostrado de forma mais acentuada, circunscreveram e analisaram cinco domínios nos quais podem ser identificados de forma nítida os impactos da discriminação racial: o trabalho, a educação, a moradia, a justiça e a saúde, conforme observado no quadro 1.
No contexto laboral, o peso da discriminação está presente antes mesmo da entrada no mercado e se referem, sobretudo, às diferenças de tratamento durante o processo de contratação, nas entrevistas de seleção e recrutamento e nas dispensas. Uma vez contratado, o impacto da discriminação incide no salário, que não é o mesmo para brancos e negros, nas avaliações e no ambiente de trabalho, muito mais inóspito e carregado para os negros do que para os brancos. No que se refere ao crescimento profissional, a discriminação também interfere na política de promoções, tendo um impacto nada desprezível no infortúnio do desemprego e no retorno ao mercado de trabalho (Borges, & Peixoto, 2011; Irigaray, & Freitas, 2011; Oliveira, & Pimenta, 2016; Paim, & Pereira, 2011).
Na educação, as diferenças se apresentam na proporção de estudantes matriculados, sobretudo nos níveis mais avançados de ensino, assim como no suporte financeiro para a continuidade dos estudos. Já estudando, as oportunidades são bem mais restritas para o aluno negro em estágios e cursos de aperfeiçoamento e, além de ser discriminado nas notas e avaliações, encontra um ambiente de estudos muito menos confortável e acolhedor. Os gastos com alunos de grupos raciais distintos são díspares e o acesso à educação especial e às formas mais particulares de cuidados educacionais também não são as mesmas para a população branca e negra. O sistema de acompanhamento também é diferente para estudantes brancos e negros, o que se reflete na alta taxa de abandono de estudantes negros e na obtenção final do grau, muito mais alta entre os estudantes brancos do que entre os negros (Cruz, 2014; Nardi, & Quartiero, 2012).
No que concerne à moradia, as diferenças raciais também são perceptíveis e começam nas dificuldades para a obtenção de empréstimos para a aquisição da residência, nas condições de financiamento e nas hipotecas. O acesso e os custo dos empréstimos também não são os mesmos para brancos e negros, assim como o valor de revenda da propriedade, pois, em geral, as propriedades imobiliárias dos negros se localizam em regiões bem menos valorizadas (Carvalho, 2014; Urnau, & Sekkel, 2015).
O acesso à justiça e as relações com as forças policiais também são muito desiguais, principalmente quando se considera a qualidade e tipo de policiamento oferecido para as vizinhanças e o respeito aos direitos durante as ações de busca e de recolhimento daqueles em condição de restrição de liberdade. Quando se procura pelos direitos em órgãos policiais e judiciários, o tratamento para brancos e negros também não é o mesmo e nem a qualidade da representação legal disponível para cuidar dos interesses de cada um desses grupos. As diferenças entre estas duas categorias também se evidenciam entre os que cumprem pena de privação da liberdade; seja nos procedimentos de obtenção da liberdade provisória ou condicional, seja no rigor da aplicação da sentença, muito mais draconiana para negros do que para brancos (Becker, & Oliveira, 2013; Carneiro, 2019).
Finalmente, na área da saúde estas diferenças também se repetem e são nitidamente identificadas no acesso aos sistemas de cuidados e aos planos de saúde privados. A qualidade dos serviços oferecidos à população branca e negra não é a mesma e o impacto dos preços dos serviços de saúde é muito mais deletério no bolso dos negros que no dos brancos (Baumgarten, Peron, Bastos, Toassi, Hilgert, Hugo, & Celeste, 2015; Boccolini, Boccolini, Damacena, Ferreira, & Szwarcwald, 2016; Graham, Lindesay, Katona, Bertolote, Camus, Copeland, Lima, Gaillard, Nargeot, Gray, Jacobsson, Kingma, Kühne, Loughlin, Rutz, Saraceno, Taintor, & Wancata, 2007; Taquette, & Meirelles, 2013). Certamente a descrição até aqui apresentada é bastante genérica e, por certo algo imprecisa. Os impactos da discriminação racial identificada na literatura especializada norte-americana podem ser mais semelhantes em alguns casos do que em outros em relação à realidade do nosso país; contudo, isso não invalida a percepção de que as formas indiretas de discriminação continuam a produzir efeitos muito negativos para uma parcela muito significativa da nossa população.
1.2.2.2. Discriminação direta
Além da discriminação indireta, podemos nos referir às formas diretas de discriminação, em relação às quais os psicólogos sociais de formação psicológica se dedicam mais amiúde. O principal diferencial em relação às formas indiretas se refere à clareza a respeito do agente da discriminação (Pereira, & Souza, 2016) . Se nos referimos, por exemplo, às vicissitudes da discriminação no tratamento da dor no sistema de saúde (Kreling, Pimenta, & Garanhani, 2014), podemos aludir às diversas modalidades nas quais a discriminação se manifesta, por exemplo, na aplicação de analgésicos, anestesias, opioides ou morfina etc. Ainda que existam agentes humanos responsáveis pela tomada de decisão e pela escolha dos cuidados (!!!!) em relação aos pacientes, é o sistema como um todo que pode ser responsabilizado pelas decisões e ações que tanto dano causam aos pacientes. Os agentes individuais representam um elo da cadeia que permite o funcionamento de acordo com as rotinas que sustentam e viabilizam as ações de discriminação. No contexto da discriminação indireta, raramente os agentes individuais podem ser responsabilizados pelos atos de discriminação, ao contrário da discriminação direta na qual essa vicissitude é bem mais comum. Quais as modalidades diretas de discriminação? Com a finalidade de determinar os níveis pelos quais os preconceitos podem se manifestar, Gordon Allport, um dos mais importantes estudiosos da área, desenvolveu uma escala em que poderiam ser diferenciadas diversas modalidades de expressão da discriminação direta (Allport, 1968), tal como se observa na figura 6.
Em um primeiro nível, a forma menos insidiosa de expressão, a antilocução, envolve a enunciação sistemática de julgamentos ou alusões negativas aos membros do grupo-alvo do preconceito. Este nível evidencia a existência de um crescente clima negativo em relação ao grupo-alvo que poderia ou não vir a se tornar alvo de medidas mais drásticas.
Quem diz o que quer, ouve o que não quer. E pode ouvir algo muito desagradável, se considerarmos as implicações legais de proferir comentários ácidos, descorteses e se esmerar em contar piadas na presença de alguém que se sinta ultrajado pelo teor do que foi dito. Pode ser, por exemplo, alvo de uma interpelação pública ou mesmo ser levado às raias de um tribunal. Certamente, atos como deixar escapar um comentário racista ou contar uma piada homofóbica, dificilmente podem ser qualificados como ilegais, pois se trata de uma área na qual o conflito entre dizer o que passa pela cabeça e a liberdade de expressão está presente. Para alguns, trata-se de um conflito entre a oportunidade de fazer um gracejo e a censura ao exercício de criatividade, enquanto para outros as admoestações direcionadas a quem cometeu o ato representam esforços em direção a uma educação para a igualdade e para a tolerância entre os diferentes.
Se para o percebedor a questão pode ser a da liberdade de expressão, para o alvo a rejeição verbal decerto cria um ambiente de hostilidade ou, pelo menos, cria uma atmosfera desconfortável para os que são atingidos direta ou indiretamente pelo comentário. A criação de um ambiente de hostilidade é um elemento importante na escala em direção à discriminação ou à intolerância e, com efeito, a rejeição verbal desempenha um papel preponderante nesse caminho. A dissertação de Mata (2009) evidencia isto ao acentuar como estes comentários configuram uma parcela significativa dos eventos nos quais a discriminação gerou consequências legais. Feagin (1991), ao analisar o contexto específico dos negros de classe média norte-americana, evidenciou que as leis antidiscriminação não são suficientes para inibir a expressão de hostilidades, observando que este tipo de discriminação encontra seu lugar preferencial de expressão em espaços públicos, sobretudo nas vias urbanas.
Se considerarmos a questão da responsabilização penal dos atos de fala na rejeição verbal ou mesmo nas condutas não verbais, acreditamos que seja bem difícil que o autor possa vir a ser sancionado. No entanto, é importante assinalar que condutas como as aqui relatadas têm sido consideradas no contexto legal para evidenciar que o alvo foi vítima de um tratamento injusto e que o agente contribuiu decisivamente para a criação de um ambiente hostil.
O segundo nível se relaciona com ações como a esquiva e se refere diretamente às tentativas de se furtar ao contato com os membros do grupo ou da categoria alvo do preconceito; a evitação ocorre nas circunstâncias em que o agente adota estratégias cuja finalidade se destina a dificultar ou mesmo impedir o acesso a determinados bens ou mesmo o contato entre as pessoas do grupo-alvo da discriminação com outros grupos sociais.
Uma vez mais nos deparamos com a dificuldade de qualificar um ato desta natureza como crime racial ou de responsabilizar legalmente o agente, visto que, teoricamente, todo e qualquer ser humano tem liberdade de se associar com quem bem quer e entende. De modo geral, as pessoas se sentem mais confortáveis na presença de alguém do seu grupo ou da categoria social a qual pertence, não sendo incomum, por exemplo, que imigrantes ou expatriados se organizem e mantenham contatos quase que exclusivamente com os membros dos seus grupos nacionais.
Este desconforto com o estrangeiro ou com o diferente gera consequências em muitos níveis, embora os efeitos sejam mais devastadores com relação à sobrevivência econômica. Black (1995), baseado em um modelo econométrico, conduziu um estudo que evidenciou um certo sentimento de ‘desprazer’ em contratar membros de grupos minoritários e como este sentimento engendra uma clara discriminação não apenas reduzindo a possibilidade de contratação, como também impondo níveis salariais mais baixos entre os contratados dos grupos minoritários.
Em ambientes formalizados como os locais de trabalho, pode ser facilmente observada uma segregação informal e tácita entre os espaços ocupados pelas diferentes categorias de trabalhadores, não sendo incomum o surgimento de zonas segregadas como a sala da diretoria, o cantinho dos funcionários ou o cafofo da peãozada.
Além da segregação do espaço, a evitação também se manifesta mediante a exclusão das redes de contatos informais de membros de determinadas categoriais sociais que podem solapar as oportunidades de crescimento na carreira conforme analisado no estudo de Garcia e Souza (2010), onde são evidenciadas as formas diretas e indiretas de discriminação contra trabalhadores homossexuais que desempenham as suas atividades profissionais no setor bancário.
Ainda que a evitação em si não possa ser legalmente qualificada como uma forma de discriminação, a evitação sistemática de contatos com membros de determinados grupos ou categorias sociais pode, e tem sido interpretada, no contexto legal, como um indicador da presença de alguma hostilidade em relação ao membro do exogrupo, o que se torna particularmente flagrante quando este tipo de evitação deixa de ser episódica e se repete de forma sistemática ao longo da jornada de trabalho, durante meses ou anos a fio.
No terceiro nível a expressão do preconceito é bem mais vigorosa, vez que os comportamentos ou as ações socialmente arranjadas se destinam a prejudicar o grupo-alvo, impondo dificuldades das mais diversas ordens.
Ao contrário de uma fala ou uma expressão verbal que pode ter escapado do controle do agente, desvalorizar e desqualificar envolve uma ação intencional por parte do agente que, de modo geral, é o resultado de um julgamento explícito no qual atributos do alvo são desqualificados ou desvalorizados. Este tipo de julgamento pode ocorrer entre desconhecidos, particularmente nos ambientes laborais ou nas vias públicas, mas também se expressam, amiúde, em altercações de trânsito, nas negociações de compra e venda ou na oferta e aquisição de bens e serviços. Em certas ocasiões, envolve pessoas que nunca estabeleceram contatos prévios, embora não seja incomum em pessoas envolvidas numa história anterior de relações mais ou menos conflituosas ou, em alguns casos, tipicamente tumultuadas.
Quando se trata de relações entre desconhecidos, o mais comum é que a desqualificação se refira aos atributos da categoria como um todo, o que favorece o uso de estereótipos negativos; nas circunstâncias em que o episódio de discriminação envolve pessoas que se conhecem, a estes estereótipos negativos são acrescidos argumentos destinados a acentuar a falta de habilidades profissionais, pessoais ou mesmo falhas morais.
Ainda que seja durante as altercações que os episódios de desvalorização se tornem mais explícitos, muitas vezes a discriminação pode ser ou ocorrer de forma pouco ostensiva, sendo especialmente marcante uma forma específica de desvalorização, a invisibilização da categoria. Maciel (2014) relatou esse aspecto num estudo sobre como as auxiliares de serviços gerais se reconhecem como responsáveis pela realização de serviços desqualificados e o significado que isto acarreta tanto na experiência de invisibilidade quanto na percepção da ausência de reconhecimento social relacionado à importância do trabalho que realizam.
O passo seguinte na escala de discriminação envolve a exclusão que se manifesta, sobretudo, por situações de recusa de acesso a determinados espaços de uso coletivo ou a pura e simples segregação. Ao contrário da discriminação indireta em que os efeitos se distribuem de forma não individualizada entre os indivíduos de uma determinada categoria, neste caso é possível identificar quem pessoalmente é responsável por impedir ou negar acesso a bens, objetos ou eventos e, consequentemente, empreender as ações necessárias para legalmente fazer frente ao ato de discriminação.
Esta forma de discriminação é relativamente comum em ambientes laborais, não sendo raro que a decisão de excluir seja tomada de forma discricionária por parte de alguém com poder de mando nos quadros gerenciais, sem que esta seja uma política da organização. Mas há casos em que a decisão quanto à exclusão faz parte da própria missão ou diretriz política adotada pela organização, pouco cabendo aos gestores o poder de modificar esta situação. Seja como for, a decisão de excluir é legalmente imputável, pois ela representa o rompimento do princípio de que todos devem ser igualmente tratados.
A exclusão que se manifesta no mundo real também pode se manifestar no ambiente virtual. West & Thakore (2013), num estudo conduzido entre 2009 e 2010 com colecionadores de brinquedo, demonstraram que a exclusão racial do mundo real se reproduz no meio virtual ao verificarem que no círculo de amizade dos colecionadores brancos não foram encontrados negros e que a exclusão também se estendeu aos brinquedos, dada a completa falta de diversidade racial nos objetos de troca.
No nível seguinte, as ações se tornam manifestadamente violentas, ao envolverem ataques às pessoas, a exemplo dos linchamentos e sequestros, e o vandalismo em relação aos bens e objetos de posse dos membros do grupo-alvo. Em algumas circunstâncias, os perpetradores dos ataques nem se preocupam em esconder as evidências da discriminação, sendo bem documentada na literatura a extensão dos crimes raciais (Green, McFalls & Smith, 2001).
Ainda que não seja incomum a ocorrência das ameaças e ataques em vias públicas e entre circunstantes, o mais usual é que eles ocorram em espaços onde as relações entre indivíduos de grupos diferentes sejam mais corriqueiras. Schneider, Hitlan e Radhakrishnan (2000), por exemplo, analisaram como as pessoas hispânicas, no contexto específico do ambiente de trabalho nos EUA, enfrentam uma série de ataques que envolvem o uso de expressões e gírias de desqualificação da etnia ou de piadas e gracejos, assim como relataram ataques frequentes contra a integridade física e psicológica.
No último nível, o do extermínio, a ação deixa de se centrar em determinados indivíduos e passa a incidir de forma indiscriminada sobre todo e qualquer membro do grupo que se torna objeto de perseguições e mortes. É importante assinalar que, para Allport, até mesmo as ações mais mortais como os ataques físicos e o extermínio, podem ser desencadeadas por pessoas normais, das quais não se levantariam suspeitas referentes a algum quadro de patologia psíquica.
O extermínio em massa é o tipo de evento que coloca o ser humano no limite da sua humanidade. Uma série de condições, alocadas em diversos níveis, devem ser satisfeitas para que eventos que se configuram genocídio sejam tolerados em determinado momento da trajetória de uma sociedade. Estas condições, relatadas por Newman e Erber (2002), podem ser observadas no diagrama apresentado na figura 7, no qual podemos identificar os elementos situados em três níveis: o micro, o indivíduo; o meso, a família; e o macrossocial, a comunidade e a sociedade.
No plano individual é importante salientar que nem todos os membros de uma comunidade participam dos atos genocidas, o que nos leva a acreditar que apenas as pessoas com alto nível pessoal de preconceito e com um forte sentimento de hostilidade em relação ao grupo-alvo tenham uma participação ativa nos episódios de extermínio. Ainda que o preconceito e a hostilidade propiciem os vieses de desvalorização do exogrupo, é inimaginável conceber que eles sempre resultem em genocídio, sendo necessário supor a existência de um fator proveniente do ambiente familiar para transformar a atitude negativa em ensejo para participação de um ato tão reprovável. Neste sentido, é de se esperar que indivíduos oriundos de famílias que impuseram durante o processo de socialização um estilo autoritário e avesso à tolerância tendam a se envolver em grupos de extermínio.
Estas famílias autoritárias, no entanto, não vivem em um vácuo social, podendo-se esperar que na comunidade em que vivem estejam presentes outras condições facilitadoras, destacando-se, nesse particular, a presença de lideranças e autoridades que não fazem questão de esconder o seu perfil intolerante e autoritário e uma atmosfera social na qual os atos abertamente hostis patrocinados por estes grupos autoritários sejam aprovados, valorizados e até mesmo incentivados.
É de se esperar, no entanto, que este conjunto explosivo de indivíduos preconceituosos, socializadas numa família autoritária e que transitam numa comunidade intolerante, de qualquer modo não venha a cometer um crime contra a humanidade, e este fato nos obriga a incluir um fator encontrado no nível da sociedade para completar o quadro geral das condições que levam a um episódio de genocídio. É importante salientar, nesse último caso, que o genocídio ocorre em sociedades cuja população enfrenta condições sociais duras e adversas e onde os membros do grupo-alvo servem como bode expiatório, sendo considerados entes menos humanos nos quais todos os males do mundo são personificados. Uma vez diferenciadas as principais modalidades de discriminação, fica claro que nos referimos a eventos nos quais estão envolvidos diretrizes, ações e condutas individuais as quais não podem ser confundidas com as crenças estereotipadas e com as atitudes preconceituosas que oferecem a base de sustentação para as ações.