Apresentação

A história

Conceitos básicos

Premissas e fundamentos

O plano da obra

A história

Sem conseguir parar de se preocupar com o futuro, um artesão caminha descalço pelas areias quentes da praia, equilibrando com precisão um dispositivo, nada além de uma rudimentar peça de feltro na qual expõe umas poucas obras. E, enquanto caminha, ele acaricia, com um olhar entre absorto e vago, alguém disposto a adquirir os itens que acabara de produzir. Após muito andar, depara-se com duas mocinhas; a mais jovem e receptiva retribui o seu olhar, recolhe o mostruário no qual ele distribuíra as peças de uma maneira não exatamente esmerada e passa em revista, com redobrado cuidado, o material à disposição. Volta e meia indaga aquilo que todo mundo pergunta quando vai às compras, rendendo-se, finalmente, aos encantos de um enganosamente simples, mas deveras gracioso brinco de pedras. Nada preocupada em disfarçar a impaciência que a domina, a amiga ao lado lança olhares cada vez mais desdenhosos e pouco amigáveis para o desventurado artista. Um pouco atrás, impossível não notar a diversão de um punhado de crianças absortas numa brincadeira recém-inventada e, ainda mais, a vigilância constante de uma das mães, cujo olhar nada fixo ora resvala com dissimulada cobiça nos produtos expostos, ora vasculha, com uma certa desconfiança, os gestos firmes do artesão. Uns metros adiante um vendedor de picolé diminui o passo, olha sem muita convicção para as crianças, pensa consigo: “Onde aquelas mães deixariam as infantes se esbaldarem no doce sabor do picolé embalado de um real que mercava?” e acena com um dissimulado sorriso para o artesão que, impávido, recolhe o merecido dinheiro que acabara de ganhar, depositando-o prontamente numa bolsinha feita do mesmo feltro que orna o mostruário para, em seguida, retribuir o sorriso do vendedor com um discreto e quase imperceptível meneio de cabeça. Mais ao fundo, senhoras e senhores de certa idade apreciam de forma desinteressada a cena durante um átimo de tempo, voltando-se, sem demora, para o jogo de peteca diário, sem se darem conta de que estavam sendo observados por um trio de turistas estrangeiros em cujas peles, ainda pálidas, a inclemência do sol começara a sinalizar uma conta a ser paga.

O relato acima permanece compreensível, mesmo que pouco saibamos sobre a identidade dos personagens, pois somos capazes de imaginar as razões das condutas de cada um dos envolvidos. Ser capaz de oferecer sentido às condutas de pessoas que nem mesmo conhecemos e imaginar os motivos e as razões subjacentes às ações de indivíduos sobre os quais pouco ou nada sabemos, corresponde ao que acreditamos estar associado a um conceito básico da psicologia social, o de estereótipos.

Podemos supor que o trabalhador, na sua labuta cotidiana, tenha se tornado objeto de inúmeras narrativas, sendo referido por uma infinitude de rótulos verbais. Em algumas, ele pode ser qualificado como artesão, um termo relativamente neutro; noutras, como hippie; em umas tantas outras, camelô ou até mesmo vagabundo, uma referenciação sustentada na crença de que o afazer ao qual se dedica não é trabalho, nem aqui e nem na casa da China. Seja como for, o artesão, além de rotulado pelos circunstantes, também não consegue evitar categorizar as pessoas, diferenciando-as em classes, a exemplo de banhistas e não banhistas. Além disso, no caso dos primeiros, ele é capaz de estabelecer uma diferenciação entre os que considera potencialmente consumidores, distinguindo-os daqueles que nem de longe vale a pena abordar e, sobretudo, de outros tantos que o melhor mesmo é guardar uma distância para lá de segura. A este processo de classificar as pessoas, agrupando-as mediante o uso de rótulos verbais referentes a entidades constituídas por humanos, denominamos categorização social.

Para gerenciar encontros habituais, como o estabelecido com a compradora, o artesão dispõe de inúmeras rotinas mentais armazenadas na memória. Ao dominá-las, habilita-se a abordar vários tipos de consumidores, nas mais diversas situações, e se torna capaz de levar a um bom termo a interação nas circunstâncias em que um pouco mais de conversa é exigida para convencer um comprador reticente. O vendedor pode se esmerar na apresentação e indagar o nome do cliente na vã tentativa de ganhar um mais pouco de intimidade com consumidores recalcitrantes, embora este passo não seja decisivo para o arremate da transação comercial. A compradora tampouco precisa saber o nome ou a idade do vendedor, muito menos onde nasceu ou reside, que dirá os gostos e os desgostos do rapaz. Este processo de colocar entre parênteses os indicadores vinculados à identidade pessoal, a desindividualização, é um mecanismo fundamental no processo de estereotipização. Não mais tratadas como indivíduos, como as pessoas são percebidas? Se considerarmos os entes incluídos na nossa narrativa inicial, uma pequena multidão composta por frequentadores, transeuntes, banhistas e ambulantes. Ao deixarmos de perceber toda e qualquer pessoa na praia como indivíduo, passando a tratá-la como parte deste tipo de ente social, estamos utilizando o conceito de agregados. O nosso relato também alude a artesãos, vendedores, mães, crianças, idosos, turistas; ou seja, indivíduos incluídos em categorias sociais, uma segunda modalidade de ente social. O relato supõe, adicionalmente, pessoas interagindo em grupos; sejam as mães, as crianças, os idosos ou os turistas. Esta é a terceira modalidade de entes, os grupos sociais. Denominamos entitatividade o processo de deixar de perceber uma pessoa como indivíduo e incluí-la em uma das três entidades supraindividuais: agregados, categorias sociais e grupos sociais.

Aoreconhecer entre os circunstantes aqueles com potencial para a aquisição das peças recém-elaboradas e colocar em ação as rotinas necessárias para o gerenciamento com sucesso de um encontro social, com uma pauta perfeitamente identificável, o artesão faz uso de mecanismos psicológicos destinados a organizar e simplificar o senso de realidade. Uma praia lotada numa manhã de verão está longe de ser um ambiente ordenado. O espaço na areia é ocupado ao bel prazer dos interessados; transeuntes e ambulantes caminham nos espaços e trilhas que se formam em função do relevo geográfico, das intervenções urbanísticas e da distribuição dos corpos e equipamentos citadinos. As ondas sobem e descem ao sabor das marés, esgueirando-se sem cerimônia nos lugares que julgam seus, enquanto os banhistas se esbaldam nos espaços disponíveis, espalhando-se segundo uma lógica distante de ser apreendida. Os espaços disponíveis são ocupados por entes materiais, animais e humanos, ao tempo em que se ouve uma ruidosa cacofonia, composta por marolas, vozes e fragmentos sonoros. A mistura das cores dos trajes, barracas, guarda-sóis e corpos se sobrepõe à palidez da areia e é engolfada pelo intenso azul do oceano, tudo temperado pelo cheiro inconfundível do mar e pelos odores intermitentes, tantas vezes irresistíveis, de quando em vez repugnantes, das comidas e bebidas expostas aqui e acolá. Reconhecer no meio deste turbilhão de estímulos uma dupla de mocinhas aptas a consumir um simples brinco não é uma tarefa fácil e o artesão precisa estar preparado para enfrentá-la. Contribuir para que o mundo social seja percebido de uma maneira organizada e simplificada é a primeira função dos estereótipos..

O artesão sabe ter encontrado uma boa oportunidade de venda e é astuto o suficiente para admitir que não conta com a simpatia da amiga da candidata a consumidora que não faz nenhuma questão de esconder o quanto lhe desagrada a aproximação do ambulante, se esmera em deixar claro, entre gestos e garatujas faciais, o desconforto causado pela proximidade do estranho e permite entrever, com vigor, uma intransponível impaciência com a quase interminável interação que está sendo obrigada a assistir e também participar, pois a potencial compradora não se contenta apenas em manusear os brincos, como é atrevida o suficiente para pedir opiniões, desfiando uma penca de comentários desnecessários, sem se importar com as inúmeras expressões de desagrado com que é premiada. Nas ações desta amiga se exprime uma segunda função comumente atribuída aos estereótipos, a de oferecer meios para a legitimação e justificação das hierarquias e desigualdades sociais. Por que alguém se mostra insensível à causa dos pequenos artesões, aos que vivem na labuta diária em busca da sobrevivência, aos deserdados, aos miseráveis? Simplesmente porque não tem dúvida que estes são os principais responsáveis pela situação em que se encontram e, ademais, creem que, se eles assim se encontram, isto se deve ao fato de não terem feito nada até hoje para se libertarem dos infortúnios que os acometem. Este tipo de racionalização serve para oferecer legitimidade aos arranjos sociais; embora, em um sentido mais amplo, as justificativas sirvam para explicar as causas e as razões das condutas humanas individuais e sociais, correspondendo uma importante dimensão dos estereótipos, as teorias implícitas. Fundamentadas no senso comum, as teorias implícitas fazem com que as mães se preocupem com as crianças, particularmente com as consideradas levadas e teimosas; e, ademais, determinam que o vendedor de picolé cumprimente discretamente o artesão, festejando, na cumplicidade que para sempre haverá de unir os proletários de todo o mundo, uma transação que terminou da melhor maneira possível. Também impõem que os idosos se mantenham como um grupo coeso e persistam nos seus rotineiros afazeres cotidianos, assim como impelem os estrangeiros, deitados sob o sol, a continuar a passar as férias, ano após ano, naquele destino turístico aprazível e amigável.

Dois mecanismos psicológicos, a entitatividade e a formulação de teorias implícitas, podem ser considerados indispensáveis na nossa definição de estereótipos. Consideremos a ação destes dois mecanismos a partir da tirinha apresentada na figura 1, elaborada pelo cartunista Fernando Gonsález.  O primeiro quadrinho evidencia a noção de entitavidade, pois nele identificamos uma entidade social que transcende aos indivíduos, no caso, uma colônia de cupins.  O segundo processo envolve a formulação das teorias implícitas, ao assinalar as preocupações de um sensível tamanduá, impossibilitado de comer devido aos efeitos de uma teoria que ele compreende muito bem.

Figura 1: um tamanduá em crise

O que o artista nos ensina? Antes de qualquer coisa, ser objeto de categorização social representa um risco existencial para os cupins; particularmente em um mundo compartilhado com os tamanduás, animais naturalmente inclinados a se refastelarem em banquetes nos quais formigas e cupins representam o ponto alto do cardápio. A tirinha nos mostra, também, um tamanduá, provavelmente em crise existencial, dada a consulta com um psicanalista freudiano ortodoxo, a se considerar a posição central ocupada pelo divã na cena.  A tensão dramática se intensifica ao entendermos a situação enfrentada pelo pobre tamanduá. Que nome daríamos a um insensível capaz de ingerir os bichinhos, sabendo o nome, a idade, o nome da mãe, o nome dos filhos, o endereço e o local de trabalho de cada um dos infelizes?

Os estereótipos dependem da entitatividade; não estereotipizamos Wellington, Gilberto, Messias e, muito menos, o Cardosão. Os estereótipos são aplicados às categorias sociais, cupins, por exemplo. O processo de des-individualizar, a entitatividade, é o primeiro passo na elaboração dos estereótipos e, como visto na tirinha, a de-categorização, o processo pelo qual o raciocínio categórico dá lugar ao pensamento individualizador, parece ser decisivo na diluição dos estereótipos – e na inapetência do tamanduá. A evolução biológica impôs aos tamanduás um padrão alimentar, no qual os cupins ocupam uma posição decisiva. Um tamanduá que não consegue se alimentar com aquilo para o qual foi preparado pela evolução corre risco de vida e precisa ter a conduta explicada. A busca do suporte profissional especializado não foi à toa. As teorias implícitas representam o segundo componente essencial dos estereótipos, pois da mesma forma que o tamanduá procura uma explicação para uma conduta que vai contra a sua essência definidora, também procuramos elaborar explicações para as condutas de quem foi des-individualizado e incluído em categorias sociais.

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