5.2. Diluir? Reduzir? Combater?

Há muito se comenta a estranheza do físico Albert Einstein ao se dar conta de que vivemos em um mundo no qual é mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito; trata-se de uma expressão algo perturbadora, especialmente por sabermos que, se a física foi capaz de fusionar o átomo sem muitas dificuldades, não cansamos de reconhecer o quão difícil tem sido enfrentar os preconceitos. Ao contrário dos átomos, os estereótipos e preconceitos se adaptam aos novos horizontes e se transmutam historicamente, assumindo cores e formas particulares nos mais diversos contextos normativos. Também discutimos nos capítulos anteriores o quanto a manutenção dos estereótipos e preconceitos interessa política, cultural e economicamente a muitos grupos sociais que os adotam para legitimar hierarquias e justificar assimetrias. Em que pese estas dificuldades, sentimo-nos compelidos a adotar uma atitude de relativo otimismo ao reconhecer que os estereótipos e preconceitos podem – e devem – ser combatidos ou, na pior das hipóteses, podem se associar às formas sutis e menos ostensivas de discriminação. Isto não significa, evidentemente, acolher a tese de que basta deixar os preconceitos e estereótipos entregues ao tempo ou à própria sorte, acreditando que esta atitude seria suficiente para reduzi-los ou, ainda mais grave, acreditar que eles desaparecerão por inanição. Retomando Einstein, podemos utilizar uma analogia e sugerir que, se foi necessário conhecer em detalhes a estrutura atômica para alcançar a fissão nuclear, somente com o conhecimento dos estereótipos e preconceitos seremos capazes de enfrentá-los.

Na condição de professores universitários e pesquisadores na área dos estereótipos, frequentemente somos convidados a participar de eventos acadêmicos nos quais uma questão sempre se mostra presente: qual a possibilidade de combater ou fazer frente aos estereótipos e preconceitos? No capítulo 3, ao discutirmos os primeiros estudos cientificamente orientados sobre os estereótipos, assinalamos que este campo de estudos surge a partir do sentimento de muitos estudiosos de que o conceito de estereótipos aludia a um julgamento impróprio e indevido que, em última instância, acarretava a desvalorização ou a desqualificação injustificada de uma categoria ou grupo social. Ainda que posteriormente os estudos tenham se encaminhado no sentido de indicar que o julgamento estereotipado pode ser qualificado como um processo psicológico rotineiro, o termo preservou a conotação negativa com a qual se revestiu inicialmente, ao tempo em que a preocupação utilitária em oferecer meios para enfrentá-los permaneceu uma marca registrada do nosso campo de estudos. O problema mais grave não é o de nos sentirmos obrigados a responder a uma mesma questão, mas sim a de que quase sempre é exigida uma resposta incondicional, como se o combate aos estereótipos, aos preconceitos e à discriminação não fosse matizado por nuances e particularidades. A presente seção não representa uma tentativa de responder a esta questão, pois o máximo que nos permitimos é assinalar a complexidade de tratamento por ela exigido. Ao considerarmos, por exemplo, as possibilidades lógicas inerentes às relações entre estereotipizar ou não, acolher ou não preconceito, discriminar ou não, contamos com oito alternativas, identificadas no quadro 21.

Quadro 21. relações entre estereótipos, preconceitos e discriminação

A possibilidade I se refere a uma condição idealizada, na qual um agente não cultiva estereótipos, não acolhe preconceitos e, consequentemente, não discrimina um determinado alvo. Podemos, por exemplo, não acolher estereótipos sobre os agotes ou os moradores de Miragaba e, consequentemente, não temos como expressar atitudes preconceituosas e, muito menos, encontrar uma boa chance para discriminá-los. Esta é uma situação mais comum do que imaginamos e todos nós não estereotipizamos, ostentamos preconceitos e discriminamos pessoas filiadas a inúmeras categorias ou grupos sociais.

A relação de tipo II se refere a uma condição em que as normas grupais impõem uma conduta de discriminação, embora o agente não acolha estereótipos ou cultive atitudes preconceituosas a respeito do alvo. Ocorre comumente em situações nas quais o pensamento grupal ou as normas sociais impõem um padrão de conduta em relação ao qual o agente pode não aquiescer, mas, ainda assim, seja por almejar recompensas, se furtar às punições ou evitar contratempos com alguns membros do grupo a que pertence, termina por agir de forma discriminatória, ainda que pessoalmente não acolha estereótipos e preconceitos sobre a categoria alvo.

A terceira possibilidade se refere às situações nas quais o agente não acolhe estereótipos e não discrimina, mas cultiva atitudes negativas em relação ao alvo. Esta condição é relativamente comum em crianças, pois estas desenvolvem atitudes negativas em relação a determinadas categorias sociais sem terem a mínima noção sobre o grupo a que tais representações se referem. Também pode ocorrer com adultos nas circunstâncias em que o agente não disponha de qualquer teoria implícita a respeito do grupo-alvo ou não encontre a possibilidade discriminar, seja por não possuir um repertório informacional que o habilite a identificar os grupos ou categorias sociais às quais os estereótipos se referem, seja por nunca ter encontrado oportunidade de ficar frente a frente com o alvo.

A modalidade IV se refere a uma condição em que o agente, mesmo não dispondo de conhecimento sobre as características do alvo, o que o impede de cultivar estereótipos, exprime atitudes preconceituosas e encontra oportunidades de expressar os preconceitos que acolhe. Os afetos difusos e sentimentos negativos relativamente vagos sobre o grupo-alvo impelem a adoção de condutas discriminatórias sem que possam ser identificadas crenças ou teorias implícitas que ofereçam respaldo às atitudes e ações.

As quatro primeiras formulações correspondem às condições nas quais os estereótipos não se constituem elementos decisivos na expressão dos preconceitos e da discriminação. Os próximos modelos, ao contrário, se referem a situações nas quais o agente acolhe estereótipos sobre o grupo-alvo, ainda que o resultado nem sempre motive a presença de atitudes preconceituosas ou condutas discriminatórias. O tipo V representa uma condição em que os estereótipos estão presentes, ainda que não sejam acompanhados por atitudes preconceituosas e condutas discriminatórias. Uma situação comum envolve o acolhimento apenas de estereótipos positivos sobre o alvo. Também pode ser a condição na qual o agente cultive crenças estereotipadas, embora se encontre em um contexto em que seja inviável desenvolver atitudes preconceituosas ou discriminar o alvo.

O tipo VI de relação configura uma condição na qual o agente não somente acolhe estereótipos, como também discrimina, apesar de não abrigar atitudes preconceituosas em relação ao alvo do estereótipo. Uma situação comum de expressão desta modalidade se refere aos contextos em que o agente discrimina contando anedotas ou fazendo gracejos que possuam uma conotação estereotipada ainda que, por si mesmo, não acolha atitudes negativas a respeito do alvo.

A relação do tipo VII se refere a uma condição na qual o agente cultiva estereótipos e abriga atitudes preconceituosas, mas, por razões normativas ou imperativos legais, não encontra condições, meios ou oportunidade para agir de forma discriminatória. Por exemplo, um agente pode cultivar estereótipos e atitudes extremamente negativas sobre um alvo, porém, o ambiente em que o encontro transcorre pode exercer um efeito inibidor, o que não significa dizer que o agente não discriminaria em outras circunstâncias ou em outros contextos.

Por fim, o modelo VIII representa uma situação de absoluta congruência entre pensamentos, afetos e ações, onde um agente acolhe crenças estereotipadas, acompanhadas por atitudes preconceituosas que facilitam a expressão implícita ou ostensiva de condutas discriminatórias.

Estas distintas relações entre os elementos cognitivos (crenças e expectativas), emocionais (afetos e sentimentos) e comportamentais (condutas e ações) tornam ainda mais complicada a discussão sobre o enfrentamento aos estereótipos e preconceitos, pois acentuam que as mudanças podem ser implementadas a partir de intervenções nos elementos cognitivos, emocionais ou comportamentais. Ademais, é de se esperar que as crenças, as atitudes e as condutas mantenham entre si algumas conexões marcadas por relações de consistência ou inconsistência. Podemos esperar, por exemplo, que em algumas circunstâncias e situações, ou no caso de determinados tipos de pessoas, uma mudança no sistema de crenças provoque transformações nas atitudes e que esta mudança no plano atitudinal possa vir a produzir alterações nos padrões de conduta. Em outras circunstâncias, uma mudança no sistema de crenças pode afetar as atitudes sem que isso repercuta nas condutas, ou ainda, podemos supor uma situação na qual uma mudança no padrão de comportamento afete uma crença sem que isso gere consequências atitudinais. As possibilidades são inúmeras e não podem ser desconsideradas por quem se dedica ao estudo dos modos de enfrentamento aos estereótipos e preconceitos.

 Se considerarmos os critérios que podem ser utilizados para caracterizar as diversas estratégias de redução dos estereótipos e preconceitos, o cenário de análise se torna ainda mais complicado. Um destes critérios se refere ao nível de implementação, estendendo-se em uma escala na qual algumas intervenções podem ser limitadas e pontuais até aquelas subordinadas a programas mais amplos, com suporte institucional, organizacional ou mesmo governamental. Um segundo critério se refere à espessura temporal da intervenção, uma vez que alguns programas se caracterizam por uma duração muito curta, ao passo que outros demandam a realização de atividades durante um bom intervalo de tempo. Um terceiro critério se relaciona à quantidade de partícipes envolvidos no programa de intervenção; alguns se caracterizam por um número muito restrito, já a implementação de outros exige um número substancial de participantes. Um quarto critério se relaciona com a avaliação da intervenção; alguns programas adotam critérios muito lenientes na avaliação da eficácia dos resultados e outros demandam procedimentos bem mais rigorosos de avaliação dos efeitos da intervenção. Finalmente, as intervenções diferem em relação aos processos psicossociais; algumas são conduzidas em consonância com teorias referentes a processos estritamente psicológicos, outras se relacionam a processos grupais ou sociais mais amplos.

Esta multiplicidade de abordagens sugere não apenas que o combate aos estereótipos e preconceitos é uma tarefa relevante no plano científico e social, mas também reforça uma interpretação relativamente otimista, já que, se o insucesso fosse a marca registrada dos programas de intervenção, dificilmente eles seriam implementados na frequência com que o são. Os recursos oferecidos atualmente pelas revisões sistemáticas de literatura têm sido ferramentas indispensáveis no mapeamento e na avaliação dos programas, sendo particularmente relevantes para a nossa discussão duas revisões sobre os progressos e desafios na redução dos preconceitos, ambas publicadas no periódico Annual Review of Psychology (Paluck e Green, 2009; Paluck, Rorat, Clark e Green, 2020).

O artigo de 2009, voltado sobretudo para a avaliação dos desenhos e dos recursos de mensuração utilizados nas intervenções, concluiu que, embora alguns indicadores apontassem uma direção positiva, as intervenções podem ser consideradas frágeis em termos de rigor avaliativo. Com o intuito de ser mais abrangente do que os estudos de síntese da literatura previamente publicados (Oskamp, 2000; Stephan & Stephan, 2001), a revisão de Paluck e Green (2009) incluiu estudos acadêmicos e não acadêmicos, publicados sob a forma de experimentos de laboratório, estudos de campo e pesquisas observacionais e contemplou fenômenos como o preconceito, os estereótipos e a intolerância. A revisão compulsou 985 itens de produção publicados nos cinco anos anteriores, incluiu as mais diversas modalidades de intervenção e abrangeu um número substancial de domínios (racial, etário, sexual, de gênero etc.) nos quais foram implementados programas de redução dos preconceitos. O principal critério de avaliação foi o grau com que a intervenção foi capaz de apresentar resultados robustos no que diz respeito à qualidade das evidências empíricas. Constatou-se que a maior parte dos estudos revisados era não experimental, dos quais apenas 38% utilizavam alguma modalidade de grupo controle para contrastar com os resultados da intervenção. Os estudos incluídos na modalidade experimento de campo quase sempre foram conduzidos em ambiente escolar, assim como a maior parte dos estudos não experimentais, limitando substancialmente o alcance dos resultados.

As conclusões da revisão revelaram um cenário que destacou o entendimento de que um longo caminho ainda precisa ser trilhado para se estabelecer, com clareza, a causa dos estereótipos e preconceitos e, consequentemente, identificar as melhores alternativas para enfrentá-los. Esta avaliação se consubstanciou no reconhecimento de que muitas estratégias de intervenção nunca tinham sido submetidas a avaliações sistemáticas que envolvessem comparações entre um grupo experimental e um grupo controle, ao tempo em que os estudos experimentais, ainda que apresentassem efeitos causais, dificilmente mostravam evidências suficientes de que os princípios identificados e estudados nos laboratórios estavam sendo aplicados em ambientes mais mundanos.

A revisão de Paluck, Rorat, Clark e Green (2020) foi bem mais restrita no plano metodológico, embora tenha contemplado um número maior de estudos, 1.835. Dado terem sido revisados apenas os estudos experimentais, foram obtidas medidas mais objetivas de eficácia das intervenções, reduzindo a impressão subjetiva causada pela revisão publicada em 2009. A estimativa dos indicadores estatísticos tamanho do efeito (d = 0.357) e erro padrão (0.02) do conjunto de estudos evidenciou um efeito leve, não obstante positivo, das intervenções. Estes resultados positivos, no entanto, perdiam força quando segmentados em função do número de participantes das intervenções. Por exemplo, se estudos com até 25 participantes mostravam um tamanho do efeito bem mais alto do que a média (0.606), nos estudos com o número de participantes acima de 78, limite inferior do número de participantes incluídos no quintil mais alto, o tamanho do efeito se mostrou bem menos marcante (0.187).

O recorte introduzido pelo critério de seleção dos manuscritos contemplados na revisão permite descrever e caracterizar os principais programas de intervenção sobre os preconceitos e estereótipos conduzidos na primeira década do século XXI:

  1. Em termos de abordagens, a maior parte dos estudos envolveu as diferentes dimensões do contato, seguidas pelas intervenções fundamentadas no treinamento cognitivo e emocional e, em terceiro lugar, as elaboradas com base na noção de categorização social. A utilização das estratégias de aprendizagem cognitiva, uma das mais promissoras na revisão de 2009, praticamente não foi utilizada, assim como o treinamento intercultural e as técnicas de resolução de conflitos;
  2. A maior parte das intervenções se destinou a modificar as atitudes e crenças explícitas, seguida pelos programas voltados para implementar mudanças nas intenções comportamentais e, numa frequência bem menor, nas atitudes implícitas e nos comportamentos observáveis. Também foram registradas intervenções destinadas a modificar os estados emocionais, a empatia e as normas sociais, embora numa frequência bem mais reduzida;
  3. No que concerne aos alvos, as intervenções priorizaram, sobretudo, a dimensão étnico-racial, ainda que tenham sido documentados programas de intervenção direcionados a áreas como as das capacidades, das atitudes relativas aos imigrantes e refugiados, da nacionalidade, da orientação sexual, da religião, da idade, da estrutura corporal, dos transgêneros e queers, da renda e do status socioeconômico; e
  4. Com relação aos contextos nos quais os programas de intervenção foram implementados, a maior parte foi conduzido no ambiente de ensino secundário, seguindo-se aqueles conduzidos em ambientes online. Foram documentadas, adicionalmente, intervenções conduzidas em comunidades, em estabelecimentos educacionais nos níveis de pré-escolar e elementar, nos ambientes de trabalho e em instituições religiosas.

Servimo-nos dos achados apresentados nessas duas revisões, além de outros trabalhos sistemáticos sobre o tema, para acentuar as dificuldades e desafios encontrados pelos programas de intervenção destinados a enfrentar os estereótipos e preconceitos. O cenário geral aponta para um potencial de otimismo moderado, sendo possível destacar direções nas quais se apresentam evidências de que os estereótipos e preconceitos podem ser enfrentados; este otimismo, não obstante, deve ser temperado com muitas gotas de cautela, uma vez que os melhores resultados continuam sendo obtidos em cenários muito restritos, em estudos com um número reduzido de participantes e em programas marcadas por um nível de intervenção bastante limitado.  

Antes de apresentarmos as estratégias de intervenção mais usuais, julgamos imprescindível assinalar duas diretrizes gerais concernentes a qualquer tentativa de diluir e limitar os impactos negativos dos estereótipos. Uma delas se refere às diferenças entre as perspectivas da contabilidade e da conversão, as quais aludem, sobretudo, à velocidade com que podem ocorrer as mudanças, de forma lenta, no primeiro caso, e de maneira abrupta, no caso específico da conversão das crenças estereotipadas. A segunda diretriz se refere ao duplo papel da oferta de informações e da redução da ignorância, entendidas como caminhos condutores imperativos que se encontram na base das estratégias formais discutidas mais adiante.

5.2.1. Contabilidade e conversão

A noção de contabilidade se refere a um processo de transformação das crenças estereotipadas de forma vagarosa e sem que o percebedor se dê conta da presença de alterações notáveis no julgamento que conduz a respeito do grupo-alvo. A mudança das crenças estereotipadas ocorre em função do impacto recorrente de elementos perceptuais, cognitivos e informacionais, cujos efeitos cumulativos proporcionam uma reestruturação lenta, mas inexorável, na configuração dos sistemas de crenças. A mudança não envolve a oferta ou a obtenção de informações com alto grau de discrepância, nem uma ruptura abrupta no plano dos afetos e sentimentos. As mudanças, embora lentas e quase imperceptíveis, transparecem sem que o percebedor se dê conta de que uma crença estereotipada há muito acolhida já não merece a importância outrora desfrutada.

A conversão representa um quadro absolutamente distinto, pois envolve vivências de acontecimentos incomuns, marcadas por percepções pouco rotineiras e emoções avassaladoras que se apoderam de forma inesperada do percebedor, levando-o a refletir sobre o extraordinário da situação. Pode se dar, por exemplo, em um encontro com uma pessoa, desde que esse encontro seja capaz de proporcionar mudanças radicais no sistema de crenças, assim como pode ser um evento marcante capaz de acarretar uma transformação significativa na visão de mundo do percebedor. Considerados em conjunto, estes dois princípios gerais acenam para um cenário relativamente otimista ao indicarem não apenas a possibilidade de diluição, mas também por acentuarem que os estereótipos potencialmente estão sujeitos a sofrerem modificações lentas e vagarosas, bem como transformações rápidas e abruptas. A introdução de mudanças nas crenças estereotipadas, embora não seja um processo fácil, pode ser considerado um desiderato exequível desde que sejamos capazes de explicar a nossa insistência em cultivar crenças injustificadas e identificar como podemos superar os nossos limites de entendimento da realidade.

5.2.2. Ídolos!

Francis Bacon, escrevendo em 1620, refunda o Organum aristotélico; ao procurar superar as formulações lógicas e os modos de raciocínio até então prevalentes, ele acena para um novo entendimento para a ciência, no qual o método experimental deveria ostentar um estatuto privilegiado. Os alicerces das novas ciências exigiriam o abandono e abjuro dos ídolos que tanto desvirtuam o intelecto humano. Quais seriam estes ídolos e como eles nos impedem de abandonar as crenças que tanto prezamos, deixando-nos cada vez mais amarrados às trevas da ignorância? 

Ídolos da tribo

Os ídolos da tribo, comuns a todo e qualquer ser humano, nos levam a supor que as coisas do mundo são dotadas de regularidade, mesmo nas circunstâncias em que esta ordem não passa de uma quimera. Ao anuir com uma proposição tendemos a arrastar pelo caminho tudo o que nos leva a apoiá-la, desprezando o que se opõe a este entendimento inicial, seja escamoteando o contraditório, seja distorcendo o incompatível. As superstições como a astrologia, os augúrios ou a interpretação dos sonhos ganham sustentação nos ídolos da tribo, assim como se insinuam nas ciências, particularmente nas circunstâncias em que os eventos confirmatórios são enfatizados e as evidências contrárias desprezadas e descartadas.

Os ídolos da tribo amiúde se referem à vontade e aos afetos que interferem no julgamento humano. Todos nós, humanos, tendemos a nos tornar reféns das nossas afeições e sentimentos e isto faz com que tendamos a aceitar como verdadeiro aquilo que preferimos e a acreditar facilmente no que é compatível com as nossas inclinações. A impaciência com a investigação nos faz rejeitar as dificuldades, ao passo que desprezamos a atitude de sobriedade por esta ser incompatível com as nossas melhores esperanças; deixamos de lado a observação da natureza ao preferirmos nos apegar às superstições; no lugar da experiência e da observação cuidadosa, nos contentamos em cultivar a arrogância e o orgulho. E ainda mais importante, preferimos desconsiderar os paradoxos, pois nos contentamos em respeitar o senso comum e tudo aquilo corriqueiramente aceito. Os ídolos da tribo não apenas se nutrem, como também amplificam a nossa incompetência, a nossa obtusidade e as falácias dos sentidos.

Ídolos da caverna

Ao contrário dos ídolos da tribo que se insinuam nas cogitações de todo e qualquer ser humano, os ídolos da caverna se referem às peculiaridades do corpo e da alma de cada um de nós e resultam dos efeitos da educação, dos hábitos e dos impactos dos eventos corriqueiros. Eles se fortalecem nas circunstâncias em que, contra tudo e contra todos, nos apegamos às nossas crenças pessoais, defendendo-as com um zelo mais do que exagerado, ainda que tudo desmorone à nossa volta. O excesso de zelo com o acolhido como verdadeiro representa a disposição de espírito predominante nas circunstâncias em que nos tornamos escravizados pelos ídolos da caverna, sendo necessário muita precaução e esforço para manter a integridade e a pureza do intelecto.

Ídolos do foro

As relações entre os humanos são mediadas pela linguagem e os ídolos do foro mantém um pacto duradouro com as palavras e os nomes. Na nossa convivência com o mundo dos símbolos tendemos a acreditar que as palavras se subordinam à razão, quando o mais comum nas discussões e controvérsias entre os doutos e doutores é a disputa em torno das palavras e dos nomes. É possível aludir a duas espécies de ídolos do foro; se algumas vezes utilizamos nomes para fazer referências a coisas que não existem, em outras circunstâncias, ainda que utilizemos os nomes para fazer referências a coisas reais, as palavras são tão confusas e mal definidas que utilizá-las se constitui um empreendimento temerário. Se o primeiro deles é mais fácil de ser descoberto e controlado, o segundo está tão arraigado no nosso modo de pensar e nos nossos hábitos mentais que sempre iremos encontrar dificuldades ao tentar abandoná-los, vez que, durante os debates intelectuais, os circunlóquios verbais, os deslizes de sentido e os pretextos são costumeiramente esgrimidos para abater ou imobilizar oponentes.

Ídolos do teatro

Ao contrário dos ídolos previamente discutidos que se insinuam por sermos humanos, por estarmos sujeitos às nossas vontades e emoções ou por nossas relações serem dominadas pelas palavras, nos esforçamos muito para sermos escravizados pelos ídolos do teatro porque estes se impõem nas circunstâncias em que usufruímos, com a melhor das boas vontades, das teorias e sistemas filosóficos que insistimos em cultivar. A sofística é o primeiro destes ídolos do teatro; ela representa um movimento pelo qual sempre preferimos encontrar algo positivo nas palavras a enfrentar a neutralidade ou a dureza do mundo concreto. Também não evitamos partir das conclusões e, para isso, aceitamos de antemão e em seguida nos esmeramos em apresentar argumentos, exemplos e demonstrações que justifiquem o previamente afirmado. Os ídolos do sofismo devem ser denunciados, visto que eles acabam por tornar a experiência uma escrava da credulidade, cujos únicos afazeres se resumem a conformar a verdade às teorias previamente formuladas. Um segundo ídolo do teatro é a empiria pura e simples; um modo de raciocínio que se ressente da ausência de uma teoria bem formulada que guie a observação. Este ídolo faz com que nos esmeremos em alcançar a verdade a partir de um punhado de observações e experimentos conduzidas sem qualquer rigor. O terceiro ídolo do teatro é representado pelas mesclas entre as superstições e a teologia. Todas as precauções contra este ídolo parecem ser insuficientes porque ele nos domina; passamos a nos pronunciar apressadamente sobre todas as coisas ou entramos em um insuperável estado de catalepsia, aprisionados pela beleza das formulações que imaginamos representar a verdade absoluta.

Estes ídolos, criteriosamente identificados por um autor cuja vida transcorreu no início da modernidade, nos ajudam a refletir sobre os erros de julgamento que amiúde cometemos e, consequentemente, nos informam sobre os riscos aos quais estamos sujeitos ao sustentar afirmações extraordinárias. O que afirmamos na seção anterior foi algo quase extraordinário, ou seja, que de uma maneira lenta ou abrupta os estereótipos podem ser diluídos e os preconceitos reduzidos.

Indicaremos, a seguir, os erros de raciocínio mais comuns aos quais nos encontramos sujeitos e, em seguida, ilustraremos as estratégias que podem ser adotadas para evitá-los. Esta preocupação reside no entendimento de que não é incomum se sentir tentado a acolher os ídolos denunciados por Francis Bacon, a acreditar que o mundo é aquilo que desejamos, a ver o mundo com os melhores olhos possíveis, a evitar o debate de ideias e a escamotear o contraditório. O enfrentamento aos estereótipos e aos preconceitos é uma tarefa dura, constante, ininterrupta, com muitas derrotas e poucas vitórias, donde a adoção de uma postura de recusa à credulidade se tornar um desiderato imprescindível.

5.2.3. Armadilhas a serem superadas

Myers (2019), ao se referir à nossa época, por ele caracterizada como de pós-verdade, acena para o enorme perigo representado pelas fake news, trazendo-nos um exemplo de um tempo em que o principal avanço tecnológico era representado pelo rádio.  A transmissão radiofônica da guerra dos mundos, orquestrada em 1938 por Orson Welles, tornou-se emblemática por não apenas indicar o quanto tendemos a considerar verdadeira a informação transmitida pelos meios de comunicação, mas também por evidenciar a velocidade com que a falsa notícia de que o nosso planeta estava sendo invadido pelos marcianos se espalhou levando muitos ouvintes a mudarem inteiramente o entendimento da realidade e, consequentemente, as próprias vidas. O exemplo, muito estudado pelos psicólogos sociais para exemplificar como o pânico coletivo pode levar a paroxismos que dificilmente ocorreriam em outras circunstâncias históricas, pode se mostrar enganoso ao nos fazer crer que se deixar enganar por notícias falsas depende do relato de um evento tão extraordinário quanto uma invasão extraterrestre ou que ocorra apenas em épocas de extrema tensão ou incertezas.

Aceitar informações enganosas, notícias falsas e atribuir valor de verdade a boatos e rumores é mais comum do que ousamos admitir, donde a necessidade de nos precaver contra as armadilhas às quais o nosso raciocínio se encontra sujeito. Na presente discussão adotaremos a classificação dos ídolos exposta anteriormente e, a partir da diferenciação estabelecida por Francis Bacon, discutiremos uma série de paralogismos, tendências, heurísticas e vieses a que estamos submetidos e que podem nos levar a acolher conclusões injustificadas, errôneas e ilusórias. Faremos uma breve exposição sobre cada um dos constructos, articulando-os, grosso modo, aos quatro tipos de ídolos postulados por Francis Bacon.

A nossa exposição, ainda que leve em consideração as contribuições dos estudos subordinados à área de estudo das heurísticas e dos vieses, se fundamenta, sobretudo, na obra Homo credulus: a psicologia social da credulidade, organizada por Forgas e Baumeister (2019) e, em particular, nos capítulos de Meyers (2019) sobre a credulidade numa época de pós-verdade, no capítulo de Kruger e colaboradores, no qual é esboçada uma teoria sobre a credulidade (Krueger, Vogrincic-Haselbacher, & Evans, 2019), e no capítulo de Klaus Fiedler sobre a miopia metacognitiva (Fiedler, 2019).

Figura 122. os ídolos de Francis Bacon

Conforme acentuamos na seção 2.2.4, a humanização representou uma grande vantagem evolutiva para a nossa espécie (von Hippel, 2018). Grandes vantagens podem se transformar em imensas desvantagens se elas não forem desfrutadas com um certo pudor, algo particularmente marcante se considerarmos que a capacidade de se distanciar da experiência imediata e organizar a vida a partir de formas de raciocínio mais abstratas representou um elemento decisivo na sobrevivência da espécie humana. Abstrair, no caso, significa desenvolver a capacidade de identificar padrões em elementos dispersos na natureza e, mediante o consenso, criar um universo repleto de símbolos e representações. Em algumas circunstâncias, entretanto, este mecanismo de reconhecimento de padrões pode levar à imposição de significados em contextos nos quais estes não fazem sentido ou identificar associações espúrias em fenômenos inteiramente aleatórias (Forgas, & Baumeister, 2019). A heurística da clusterização se refere ao exagero na identificação de um grupo de objetos levando em consideração uma dada métrica de similaridade, o que acarreta uma percepção ilusória de que nos encontramos frente a uma entidade real quando o que dispomos é um mero agrupamento de objetos aleatórios, não relacionados entre si.

pareidolia, embora se refira à identificação, não apenas entre humanos (Taubert, Wardle, Flessert, Leopold, & Ungerleider, 2017), de padrões familiares em estímulos que se apresentam de maneira inteiramente aleatória (Pavlova, Heiz, Sokolov, Fallgatter, & Barisnikov, 2018), frequentemente exemplificada pela identificação de faces, formas animais ou de objetos em nuvens, também pode aludir à atribuição de sentido a um conjunto de sons ou palavras desconexas e encadeadas sob a forma de sentenças às quais faltam qualquer senso de razoabilidade (ouvir, por exemplo, mensagens satânicas em um disco de vinil tocado numa rotação invertida). Podemos imaginar que alguém particularmente inclinado a acreditar em uma determinada causa se deixe facilmente capturar por esta armadilha que afeta a todos nós, humanos, passando a identificar um referencial explicativo razoável onde existe apenas elementos desconexos ou a acreditar que um emaranhado de palavras, sem sentido, mas de conteúdo bombástico, possa representar um argumento rico e insofismável.

Discutimos na seção 4.1 o modelo dependente das crenças, no qual acentuamos a facilidade com que aceitamos o que nos dizem. A tendência a preferir aceitar as informações imediatamente, antes mesmo de submetê-las a um julgamento criterioso, é denominado viés de aceitação. Numa dimensão estritamente evolutiva, a crença na veracidade da informação trazida pelo outro representou um mecanismo fundamental para a nossa sobrevivência enquanto espécie (von Hippel, & Trivers, 2011). Numa dimensão estritamente psicológica, a tendência a acreditar no outro representa um recurso importante para restaurar a condição de conforto nas circunstâncias em que temos que fazer frente a informações desagradáveis. Face a presença de estados psicológicos com potencial de nos distrair, de estados emocionais pouco confortáveis ou das inúmeras pessoas com as quais temos contatos pouco amigáveis, o potencial em ser aprisionado por uma torrente de palavras sem significado se torna ainda mais acirrado.

Uma das consequências mais marcantes da heurística da aceitação se refere à tendência de não duvidarmos, a princípio, das informações que nos são oferecidas. No caso da redução dos estereótipos e preconceitos, por exemplo, podemos ser tentados a acreditar nos maravilhosos resultados de uma intervenção e acolher esta crença sem submetê-la a uma avaliação criteriosa. Qualquer explicação se torna particularmente persuasiva se ela for exposta sob a forma de uma narrativa cativante, com eventos marcantes e composta por elementos discursivos que se prestam à elaboração de representações com forte apelo visual e suscitam a expressão de intensas descargas emocionais.

Se as heurísticas acima referidas podem ser consideradas como tendências inerentes a todos nós e, como tal, facilmente incorporadas aos mecanismos que garantiram a sobrevivência da espécie humana, as elencadas a seguir se associam aos ídolos da caverna, isto é, àquela zona obscura que todos nós desenvolvemos ao longo da nossa biografia e faz com que sejamos incapazes de tratar com tranquilidade e precisão as informações presentes em determinadas circunstâncias.

heurística do eu como centro de referência reflete a condição de quem se imagina o centro do mundo; algo que ocorre com cada um de nós ainda que nos obriguemos a admitir que olhar apenas para o próprio umbigo é algo mais arraigado em algumas pessoas do que em outras. Uma versão exagerada dessa heurística é representada por aquela zelosa mãe da anedota da parada militar que, contra tudo e contra todos, insiste veementemente que toda a tropa marcha fora do compasso, enquanto o filho é o único a marcar o passo corretamente. Todos nós elaboramos mapas mentais a respeito da situação em que nos encontramos, sendo perfeitamente natural que o façamos a partir dos nossos pontos de referência, um recurso que facilita a representação mental dos objetos e do contexto no qual eles se inserem, permitindo-nos identificar com precisão as posições relativas e absolutas de cada elemento representado no mapa (Gilovich, Medvec, & Savitsky, 2000; Ross, & Sicoly, 1979).

O problema com a heurística do eu como centro de referência se torna manifesto caso a absolutizemos e não consigamos relativizar ou nos distanciar daquilo que supomos ser a nossa visão de mundo; muitas vezes acreditamos em algo e o fazemos com tamanha convicção que não nos mostramos dispostos a ouvir ou prestar atenção em qualquer informação que insurja contra a nossa crença. No caso específico das intervenções para reduzir os estereótipos ou preconceitos podemos, por exemplo, estar tão apegados à crença de que tudo deu certo que qualquer interlocução contrária pode se tornar inócua, isso se o interlocutor, na vã tentativa de apresentar um contraditório, não for tratado como um inimigo a ser abatido.

Uma pessoa com o forte senso de autorreferência pode ser caracterizada como alguém com muita confiança em si. A confiança em si mesmo representa uma característica psicológica importante, como o é a confiança nos outros. Da mesma forma que o excesso de confiança nos outros pode gerar efeitos disruptivos, o excesso de confiança em si está fortemente associado à credulidade. A heurística do excesso de confiança alude ao impacto dos vieses que contribuem para preservar a autoimagem, o autoconceito e a autoestima, cuja ação envolve, sobretudo, esforços na direção de impor distorções de avaliação e de julgamento no que concerne a tudo aquilo que poderia representar uma ameaça à visão positiva que cultivamos sobre nós mesmos. O excesso de confiança pode se manifestar sob três formas: 1) uma distorção na avaliação do próprio desempenho, frequentemente enviesada de uma maneira positiva; 2) uma distorção na avaliação da própria performance ao ser comparada com o desempenho dos outros, que tende a ser desvalorizado; e 3) a falta de precisão a respeito das estimativas do que de fato é capaz de fazer, a que parece ser a mais persistente entre as três modalidades de exagero (Moore, & Healy, 2008).

A noção de que o eu dispõe de mecanismos destinados à autoproteção não é nova na psicologia, tal como identificamos na figura 52. Os mecanismos de defesa do eu podem contribuir para a credulidade no que concerne ao potencial dos programas de diluição de estereótipos e preconceitos. Este efeito do excesso de confiança pode se mostrar tanto entre as pessoas com formação científica especializada quanto entre especialistas em determinadas áreas do conhecimento. No primeiro caso, frequentemente se associa à ausência de esforço na busca de explicações alternativas (Metcalfe, 1988), enquanto entre os especialistas se relaciona com a crença numa suposta capacidade de fazer estimativas equilibradas (Tetlock, 1998), embora este efeito seja ainda mais acentuado entre aqueles que não possuem domínio técnico em uma determinada área e que, frequentemente, superestimam o conhecimento que imaginam dispor (Kruger, & Dunning, 1999), considerando-o, inclusive, mais abrangente e aprofundado do que o desfrutado pelos especialistas que verdadeiramente dominam a matéria.

A autoconfiança se relaciona fortemente com a heurística da ilusão de controle que se refere a um exagero relativo às nossas capacidades de manter o curso dos acontecimentos numa direção desejada (Langer, 1975; Presson, & Benassi, 1996). Esta heurística supõe uma distorção que nos faz acreditar que o curso de um evento aleatório ou sobre o qual não dispomos de qualquer poder de interferir foi ou pode ser modificado pelas nossas ações (Thompson, 1989). Trata-se de uma heurística particularmente estudada na área das apostas e jogos, na qual um apostador, não necessariamente muito supersticioso, sopra os dados antes de lançá-los por acreditar que este ritual assegurará uma boa jogada ou no aficionado de futebol que usa sempre uma mesma roupa interior, a cueca da sorte, na ilusão de que, se não estiver trajado a rigor, o resultado escapará ao esperado (Delfabbro, & Winefield, 2000; Dixon, Hayes, & Ebbs, 1998; Wolfgang, Zenker, & Viscusi, 1984). Um domínio em que a ilusão de controle é particularmente importante é o da saúde, já que pode se associar de maneira muito negativa à ação de assumir determinados padrões de risco que uma pessoa não tão iludida quanto ao próprio bem-estar e saúde não se submeteria (Harris, & Middleton, 1994).

Todos nós, iludidos ou não, em maior ou menor grau tendemos a tratar muito bem e a colocar em patamares muito elevados as informações e teorias que confirmam as nossas crenças; em contrapartida, tendemos a desprezar as incompatíveis com o que acreditamos. Isto nos torna tendenciosos, pois terminamos por ser seletivos nos espaços que frequentamos, nos livros que lemos, na mídia a que assistimos e nas informações que buscamos. Ao mesmo tempo, e em um movimento complementar, desqualificamos de forma rápida toda e qualquer informação que carregue o potencial de refutar as crenças que acolhemos. A heurística da autojustificação e os vieses de confirmação se referem a este duplo movimento de buscar seletivamente e introduzir distorções nos julgamentos, passando a considerar válidas e justificadas as crenças que se ajustam ao que acreditamos e a destituir a importância de todas as informações contrárias às nossas expectativas (Myers, 2019).

Este movimento pode se manifestar na avaliação das estratégias de diluição dos estereótipos e redução dos preconceitos ao demonstrarmos uma confiança mais do que exagerada naquilo que nos parece válido e, em seguida, evitarmos manter contato com exemplos ou situações que possam invalidar as nossas melhores expectativas.

Após identificarmos dois conjuntos de heurísticas, as subordinadas aos ídolos da tribo que se caracterizam por envolver mecanismos psicológicos inerentes a todo e qualquer ser humano e as subsumidas pelos ídolos da caverna em que as diferenças pessoais ocupam uma posição destacada, nos deteremos agora naquelas relacionadas aos ídolos do mercado, pois estas diferem das anteriores por estarem centradas nos mecanismos psicológicos que se manifestam no contexto das relações interpessoais e intergrupais. As fontes de credulidade referidas na sequência inevitavelmente nos convidam a introduzir a temática das normas sociais por aludirem aos elementos que se manifestam no âmbito das relações entre seres humanos. As ciências sociais nos asseguram as dificuldades em romper com as normas sociais, o que geraria um enorme potencial de desordem e imprevisibilidade no que concerne às condutas dos grupos e sociedades humanas. As normas sociais limitam a ambiguidade das ações, tornando as razões e os motivos das condutas humanas mais facilmente interpretáveis. O impacto do sistema normativo, no entanto, intensifica as pressões no sentido da uniformidade, gerando um certo desconforto naqueles que adotam padrões de condutas mais idiossincráticos.

Por certo, os efeitos de um sistema normativo proporcionam resultados não desprezíveis em termos da maior ou menor credulidade relativa aos programas de redução dos estereótipos e preconceitos. Uma pessoa fortemente subordinada a um sistema normativo sabe que tem as suas condutas monitoradas e que qualquer desvio, por mais leve que se mostre, pode originar algum tipo de sanção (Myers, 2019), o que a torna particularmente inclinada a aquiescer com a posição da maioria e acreditar naquilo que é socialmente compartilhado, mesmo que isso represente uma contradição com aquilo que intimamente acolhe (Cialdini, & Goldstein, 2004).

polarização grupal alude a uma heurística dedicada a esmiuçar a tendência a se restringir a um ambiente informativo muito limitado, buscando informações única e exclusivamente compatíveis e referenciadas por pessoas que comungam os mesmos pontos de vista. Quanto mais nos sentimos acolhidos por um grupo de iguais e mais percebemos a coesão e a consistência das condutas e dos propósitos dos membros do grupo, mais fortemente nos sentiremos inclinados a acreditar naquilo que é defendido pelo grupo e a desacreditar no acolhido pelos grupos externos. A visibilidade alcançada por muitos grupos hoje em dia, em particular com a emergência das redes sociais, tem proporcionado uma distância maior entre os interesses e as visões de mundo defendidas pelos diversos grupos, tornando as crenças dos membros cada vez mais irreconciliáveis.

A polarização grupal deve ser diferenciada da heurística da validação consensual da realidade, pois esta última se fundamenta no entendimento de que as pessoas inseridas em uma rede de relacionamentos cujos vínculos são muito intensos e se encontram com uma certa frequência tendem a alterar as crenças não em função da observação direta da realidade, mas em decorrência das informações repetidamente recebidas ao longo da interação com os demais membros da rede (Krueger, Vogrincic-Haselbacher, & Evans, 2019), sendo bastante comum que em situações de pânico ou de incerteza se observe uma rápida convergência nas opiniões em direção a crenças que não se sustentam em qualquer base  factual (Butts, 1998).

A heurística do falso consenso envolve estimar de forma exagerada o número de pessoas que compartilha daquilo que acreditamos ou afirmamos (Alicke, & Largo, 1995; Mullen, Atkins, Champion, Edwards, Hardy, Story, & Vanderklok, 1985). Não é incomum achar que todos pensam ou pelo menos deveriam ter a obrigação de pensar da mesma maneira que o fazemos. É muito difícil evitar esta heurística; amiúde convivemos com muitas pessoas que compartilham as nossas visões de mundo, donde considerá-las mais semelhantes entre si do que elas em realidade o são. Este julgamento a respeito da familiaridade pode ser estendido a outros contextos, o que provavelmente acarretará novos erros de julgamento que serão ainda mais marcantes caso insistamos em procurar na memória exemplos de eventos nos quais as ações das outras pessoas foram compatíveis com as nossas crenças. Em contraposição à heurística do falso consenso, podemos aludir ao viés da exclusividade, a tendência a acreditarmos que somos dotados de qualidades positivas muito raras, ao tempo em que as subestimamos não somente na população em geral, como também nos nossos amigos e conhecidos (Ross, Greene, & House, 1977; Suls, Wan, & Sanders, 1988). Trata-se de uma heurística que facilita a comparação das nossas condutas com a dos outros e nos obriga a reconhecer que somos mais do que excepcionais, levando-nos a julgar as nossas condutas sempre de uma forma mais favorável e a intensificar o julgamento negativo das outras pessoas.

Tanto a polarização grupal quanto a heurística da validação consensual da realidade representam um enorme potencial para o cultivo da credulidade porque o convívio permanente e sistemático com pessoas com as quais comungamos os mesmos pontos de vista e visões de mundo favorece a adoção de uma atitude positiva em relação àquilo que queremos acreditar e, ainda, nos mantém apartados de tudo o que diverge da nossa concepção de mundo.

heurística da perseverança se refere a uma tendência a obter refúgio nas próprias crenças, persistindo contra tudo e contra todos, mesmo quando as evidências se tornam intransponíveis. Fazer parte de um grupo onde ninguém se mostra disposto a abandonar um sistema de crenças gera um efeito interno de credulidade extraordinário; ao impedir que novas informações possam circular, limita-se o repertório comunicacional e, adicionalmente, torna as possibilidades de interação ainda mais restritas.

heurística da retratação alude às situações em que se torna praticamente inócuo sugerir que o agente do discurso se retrate ou que um receptor desconsidere uma informação previamente relatada. Raramente é possível passar a borracha e apagar completamente da memória o conteúdo de uma informação à qual previamente se atribui credibilidade, sendo mais provável reter indefinidamente o conteúdo, apesar das admoestações explícitas em contrário.

As heurísticas da polarização grupal, da validação consensual da realidade, da perseverança e da retratação se associam aos ídolos do mercado, pois se manifestam especialmente no contexto de interação entre agentes humanos. Finalizaremos a presente seção aludindo às heurísticas que se referem aos ídolos do teatro que se referem, sobretudo, ao tipo de credulidade representada pelo apego mais do que razoável a um determinado sistema de crenças ou a uma doutrina religiosa, científica ou moral (Sokal, & Bricmont, 1999). Todos nós somos muito apegados e temos dificuldades para abandonar algo em que acreditamos; esta inclinação é especialmente marcante entre pensadores e cientistas cujas vidas foram inteiramente dedicadas ao desenvolvimento, difusão e defesa de uma posição doutrinária (Solla Price, 1976). Este apego às doutrinas e teorias se encontra associado a uma série de heurísticas e vieses, a seguir discutidas.

heurística da negligência das probabilidades alude a uma tendência a levar muito a sério uma preocupação irracional com a ocorrência de um evento cuja probabilidade de efetivação seja bastante baixa. O exemplo mais emblemático envolve o paradoxo de ficar muito preocupado com a possibilidade de ocorrer um acidente durante uma viagem aérea, quando a probabilidade de ocorrência de um acidente mortal de trânsito no percurso da casa até o aeroporto é bem mais alta do que a de ter a vida ceifada pela queda de um avião a jato.  Este paralogismo se relaciona fortemente com a heurística do iletramento estatístico, tal como relatada por Myers (2019) e exemplificada a partir da linha argumentativa desenvolvida na obra Racionalidade para mortais do cientista alemão Gerd Gigerenzer. Trata-se de um relato publicado pela imprensa inglesa (a não sensacionalista, diga-se de passagem) na qual se noticiou que o uso de uma determinada marca de anticoncepcional estaria associado com um aumento de cem por cento no risco de formação de coágulos sanguíneos e um consequente acidente cardiovascular. Após a divulgação da notícia milhares de mulheres suspenderam o uso do medicamento, registrando-se um acréscimo de milhares de abortos, o que, por ironia, representa uma condição verdadeiramente associada ao aumento do risco de formação de coágulos sanguíneos. O que representou, no entanto, este acréscimo de cem por cento da taxa de risco divulgado pela mídia? Um aumento na taxa de 1 em 7000 para 2 em 7000 casos.

O fenômeno da miopia cognitiva se refere à inabilidade humana em avaliar corretamente a fonte, a confiabilidade e a validade da informação recebida dos outros, configurando-se como uma falha não na percepção, na codificação, da memória ou na atenção, mas sim como um problema relacionado ao monitoramento e ao controle da informação a ser atendida ou desconsiderada (Fiedler, 2019). Trata-se de um caso muito particular de heurística, pois representa uma condição em que o agente dispõe de informações que se mostram corretas e mesmo assim não consegue manuseá-la de forma apropriada. Como tal, manifesta-se comumente em situações de julgamento e tomadas de decisão, em particular, naquelas em que estão envolvidos tarefas nas quais são decisivas inferências que levem em consideração elementos como estimativas de probabilidade, a detecção de proporções, a estimativa de covariância, a magnitude de amostras e populações, o raciocínio condicional e incondicional, o que usualmente envolve tarefas que demandam um certo esforço reflexivo e dependem de uma curva de aprendizagem relativamente árdua.

Trata-se de um fenômeno muito importante na manutenção da credulidade, pois o percebedor pode, por exemplo, distorcer a fonte da informação para ajustá-la a um dado absolutamente crível e torná-la apta a sustentar uma teoria totalmente inaceitável. O reconhecimento da miopia cognitiva acena o quão é importante para a manutenção do senso crítico adotar uma atitude de constante monitoramento e controle sobre o fluxo de pensamento e de quanto este duplo processo é decisivo para nos furtarmos à avalanche de notícias falsas as quais estamos quase sempre sujeitos.

A sobrevivência de fake news envolve a apresentação repetitiva e sistemática de notícias sem fundamentos. Um dos elementos mais marcantes na obra 1984 de George Orwell (1903-1950) se refere à reprodução constante e ininterrupta de slogans por um poderoso sistema de alto-falantes:  guerra é paz; liberdade é escravidão; ignorância é força.  A heurística da repetição se torna muito mais efetiva nas circunstâncias em que a persuasão se fundamenta em argumentos simples e limitados a uns poucos elementos pontuais. Caso o argumento seja de fato bom, a repetição faz com que ele se espalhe muito rapidamente, justificando o dito popular frequentemente atribuído a Jonathan Swift (1667-1745), o autor das Viagens de Gulliver, de que nas pistas de corrida do conhecimento, enquanto a mentira já galgou mais da metade do caminho, a verdade ainda nem terminou de calçar as sapatilhas.

Unkelbach e Koch (2019) acentuaram o quanto a repetição é decisiva na aceitação subjetiva de um argumento frágil como verdadeiro (Dechêne, Stahl, Hansen, & Wänke, 2010) e indicaram o quanto afirmar repetidamente algo contribui para a persuasão e formação de crenças; de tanto ouvir algo tendemos a nos acostumar com o que ouvimos, por mais estapafúrdia que seja a formulação, e isso aumenta a possibilidade de considerar plausível a informação recebida. Zajonc (1968, 2001) apresentou evidências de que a exposição repetida a argumentos sobre um dado objeto pode acarretar mudanças nas atitudes relativas ao item. Assinale-se, no entanto, que essa heurística é muito mais efetiva quando se trata de informações indiretas ou recebidas de terceiros do que no caso das experiências pessoais ou aquelas que se referem à realidade imediata. 

A repetição contribui para aumentar a familiaridade, algo facilmente explorado nas tarefas de convencimento mediante o uso de anedotas e exemplos ”esclarecedores” e que auxilia a considerar algo estranho como absolutamente regular; esta é uma estratégia frequentemente utilizada no discurso político, ao se selecionar um evento raro e incomum, mas bastante vívido e emocionalmente carregado, e mesmo que se saiba que ele resultou da ação de  um indivíduo, termina por fazer crer que o acontecimento relativamente raro representa um evento estereotipadamente associado com a categoria ou grupo social ao qual o indivíduo relacionado. Situações desta natureza, se aproveitadas para fins políticos por atores com uma boa habilidade retórica, favorecem a credulidade e contribuem para a difusão de notícias falsas.

O domínio retórico está associado à heurística da fluência e se refere à tendência de se convencer mais facilmente por interlocutores que argumentam de maneira fluída, amiúde passando a impressão de que se trata de alguém que domina, como poucos, o assunto sobre o que está perorando. Uma pessoa que aparenta saber o que está falando e se exprime com fluidez se torna bem mais convincente do que alguém com uma retórica claudicante. Uma boa fluência passa a impressão de uma fala coerente e insinua a organização do argumento, aumentando o potencial de credibilidade. A utilização apropriada de recursos rítmicos é uma operação decisiva na fluidez, especialmente se as sentenças forem enfeitadas com floreios verbais, arrematados por rimas ou aliterações.  Esta estratégia faz com que o argumento seja mais facilmente registrado na memória, retido e facilmente evocado, gerando um efeito mais que extraordinário em termos de credulidade.  Por certo que arengar longamente sobre entes divinos, faltas e excessos exerce um efeito persuasivo muito mais modesto do que uma afirmação do tipo ‘o pouco com deus é muito, e muito sem deus é nada’.

Outras três heurísticas, as do ancoramento, a da representatividade e a da acessibilidade, também desempenham um papel decisivo nas distorções dos julgamentos relativos à probabilidade, à magnitude ou à frequência dos eventos. A heurística do ancoramento contribui para o acréscimo da credulidade ao acentuar como a informação de partida exerce um efeito poderoso na organização posterior do pensamento. A informação inicial serve como uma âncora, o que impede que o raciocínio possa navegar além do horizonte imposto pelas amarras previamente impostas. Por exemplo, se perguntarmos a um grupo de pessoas se Gandhi faleceu antes ou depois de ter completado 9 anos de idade e posteriormente perguntarmos a idade em que estima que ele tenha falecido, a média das respostas se centrará em torno dos 50 anos. Se a pergunta for ancorada de uma outra dimensão quantitativa, ou seja, se perguntarmos se Gandhi faleceu antes ou depois de ter completado 140 anos, e solicitarmos a este mesmo grupo de participantes a estimativa da idade na qual Gandhi provavelmente faleceu, a média das respostas desta vez se aproximará dos 67 anos (Simonson, 2007). O resultado final depende, portanto, da informação inicial, o que nos leva a pensar que se damos por certo, como premissa, que uma determinada prática possui a capacidade de eliminar um número extraordinário de estereótipos, os nossos arrazoados se inclinarão a um posicionamento compatível com este entendimento prévio, o que facilitará a aceitação daquilo que inicialmente acreditamos e, mais do que isso, favorecerá  a aceitação da tese de que o programa de intervenção funciona mais do que a realidade nos obriga a admitir.

A heurística da representatividade envolve a inclusão de um objeto em uma categoria em função das suas características se assemelharem ou representarem mais uma categoria do que outra (Kahneman, & Tversky, 1972), e isso faz com que consideremos as semelhanças entre dois objetos e, em seguida, inferimos que um possui as características daquele ao qual se assemelha. Um estudo publicado por Triplet (1992) retrata o efeito deste tipo de heurística. Ele solicitou aos participantes que conduzissem o diagnóstico de alguns pacientes que variavam quanto ao gênero, a preferência sexual e aos sintomas das doenças e, em seguida, avaliassem o quanto o paciente poderia ser responsabilizado por ter contraído a doença que o acometia. Os sintomas apresentados foram semelhantes aos de uma gripe comum. Os participantes deixaram de levar em consideração as informações contidas na descrição dos sintomas e fizeram o diagnóstico a partir da orientação homossexual do suposto paciente e concluíram que a doença não era uma simples gripe, mas sim a AIDS, o que levou o autor, ainda em 1992, a admoestar quão forte poderia ser a influência das heurísticas na criação de uma atmosfera desconfortável e insegura para os portadores do HIV.

A heurística da acessibilidade se manifesta nas circunstâncias em que julgamos a frequência ou a eficácia causal de um evento a partir da facilidade com que ele pode ser acessado na memória (Tversky, & Kahneman, 1973). Por exemplo, Gerrig e Prentice (1991) estudaram como as situações frequentemente retratadas nos meios de comunicação de massa representam adequadamente os eventos que ocorrem na vida habitual das pessoas. Assim, se considerarmos a quantidade de pessoas que diariamente se deleitam com novelas e séries televisivas e de quão frequente nestas obras são representadas situações dramáticas e com forte teor emocional, podemos supor que quem assiste cotidianamente a estas obras acede quase que diariamente aos conteúdos e rotinas comuns à vida dos personagens, evocando-os muito facilmente e, mais grave, passa a utilizar estas informações facilmente acessíveis como critério para a condução de julgamentos estereotipados sobre muitos eventos da vida real.

A heurística da regressão à média, uma outra heurística associada com a estimativa de magnitudes, pode ser entendida como uma falha em reconhecer que um evento raro e incomum deixará de ocorrer com frequência e a tendência será que ele volte a se expressar como sempre se impôs. Um atleta pode ter feito uma apresentação extraordinária em uma partida ou um clube de futebol pode ter vivenciado uma temporada extraordinária. Os dois casos podem ser entendidos como eventos relativamente raros, mas o fã continuará a acreditar que o atleta permanecerá com aquele extraordinário nível de desempenho ao longo de toda a temporada e o torcedor fanático persistirá na crença de que o nível extraordinário de performance da equipe se manterá intacto, temporada a temporada. Os dois casos, óbvio, são impensáveis e mais do que isso, se o desempenho do atleta e da equipe regredirem à média e voltarem ao normal, o torcedor fanático tenderá a interpretar o desempenho normativo como um fiasco.

As heurísticas, dentre as quais as acima exemplificadas, foram inicialmente interpretadas a partir do entendimento de que se referem exclusivamente a vieses ou falhas cognitivas, o que as aproximava bastante dos problemas suscitados pela discussão da credulidade. Esta acepção, algo pejorativa, aos poucos perde espaço, passando a conviver com um outro entendimento onde as heurísticas passam a ser interpretadas como estratégias de simplificação da realidade, utilizadas com a finalidade de tornar mais simples o entendimento de metas complexas para que possam ser alcançadas com maior rapidez e menor dispêndio de esforços (Strack, 2019). Ainda que em algumas circunstâncias, como no caso da heurística do simples e frugal, os vieses contribuam para o acréscimo na acurácia no julgamento e na tomada de decisões, consideradas em conjunto, as heurísticas contribuem decisivamente para selecionarmos as informações preferindo aquelas que se mostrem compatíveis com a nossa visão de mundo, mesmo elas se mostrando frágeis. Desafortunadamente, as heurísticas também contribuem para que consigamos oferecer uma aura de credibilidade às informações provenientes de fontes de baixa confiabilidade. Evitar ou não o impacto negativo das heurísticas é um problema central no conhecimento, particularmente no científico, um tópico a ser discutido na próxima seção.

Os cientistas, por sua parte, também estão sujeitos às heurísticas acima discutidas e, mais do que isso, pela própria natureza das atividades que realizam, igualmente sujeitos a riscos adicionais porque não apenas cometem erros, como também podem ser tão crédulos quanto qualquer um de nós. Ao contrário de cometer um erro, algo absolutamente comum na pesquisa científica, a credulidade científica pode ser definida como uma atitude de negação do erro, a manutenção de uma crença injustificada mesmo se estiverem disponíveis evidências de melhor qualidade do que aquilo em que se acredita, e a persistência em continuar a acolher uma crença sabidamente injustificada. Jussim, Stevens, Honeycutt, Anglin e Fox (2019) oferecem alguns indicadores das condições concretas em relação às quais devem ser tomadas precauções nos afazeres científicos; desconsiderá-las pode representar um acréscimo no potencial de aceitação das crenças cientificamente injustificadas. 

O perigo de assacar generalizações injustificadas, confiando apenas em dados obtidos a partir de amostras pequenas e sem representatividade, deve ser cuidadosamente considerado. O resultado de um estudo conduzido com uma amostra diminuta, em um contexto específico e sob determinadas circunstâncias, deve ser claramente relativizado porque os riscos de auto seleção dos participantes do estudo, de conduzi-lo em um ambiente muito apropriado para a obtenção dos resultados que se almeja ou em circunstâncias mais do que oportunas representam problemas que estão ligados à possibilidade de generalizar os resultados para a população de um modo geral ou para  contextos que não aqueles em que o estudo foi conduzido. 

Um segundo risco envolve considerações de natureza lógica e se manifesta nas circunstâncias em que o pesquisador enuncia afirmações causais com base em inferências elaboradas a partir de conclusões obtidas em estudos correlacionais. O pesquisador, neste particular, deve se manter atento às possibilidades e aos limites inerentes aos distintos métodos de pesquisa, não se justificando concluir algo interditado pelo método de análise. Um estudo correlacional não se configura como um recurso apropriado para a elaboração de formulações causais dado que estas só podem ser inferidas e, mesmo assim, com enormes dificuldades, com o suporte dos métodos experimentais ou longitudinais.

A terceira modalidade de risco não se refere aos erros de inferência, mas, sim, a concluir algo e, em seguida, generalizar a conclusão sem que tenham sido apresentadas evidências empíricas capazes de oferecer suporte a essa conclusão. Trata-se de um erro muito comum em algumas modalidades de pesquisa nas quais o estudioso parte de algo que definitivamente considera válido, adota procedimentos destinados a fazer com que os participantes informem algo na direção esperada e, em seguida, estabelece conclusões não justificadas e não apoiadas nos dados obtidos e apresentados. Os dados de pesquisa, na prática, servem apenas para ilustrar e confirmar as ilações acolhidas pelo pesquisador.

Além dos riscos previamente expostos, decorrentes da violação de princípios básicos de raciocínio comuns na atividade científica, podem ser listados outros riscos, resultantes muito mais de fatores pessoais do que técnicos. Um deles é o perigo de adotar uma postura negacionista de se contrapor aos argumentos e às evidências documentadas em outros estudos sem oferecer referências objetivas como publicações, estudos não publicados, teses e dissertações que fundamentem a objeção. Este tipo de erro é característico do pesquisador que se torna tão apegado ao que crê ou à linha de raciocínio que privilegia nos seus estudos, que desconsidera, passa por cima ou omite a literatura na qual são apresentadas explicações incompatíveis com o que acredita. Estas duas posturas dizem muito sobre o pesquisador, pois elas não apenas refletem os erros técnicos comuns aos riscos previamente acentuados, como também denunciam uma condição de negligência, uma atitude que aproxima o pesquisador do universo das formulações pseudocientíficas.

Esta discussão dos riscos que nos levam a acreditar de forma pouco crítica naquilo que se apresenta como científico se associa menos com os erros e as ilusões decorrentes do orgulho ou da vaidade dos pesquisadores, e se aproxima mais da ação deliberada no sentido de ludibriar incautos e aferir vantagens injustificadas. Esta condição nos obriga a refletir sobre as diferenças entre um erro de raciocínio e a decisão deliberada de enganar. Um dos domínios de estudo que melhor reflete esta discussão é o da retratação de artigos. Bar-Ilan e Halevi (2021) sugerem que o rigorosíssimo processo de publicação nos periódicos revisados por pares não inibe a retratação dos autores ou a posterior retirada por parte dos editores de artigos cujo conteúdo se mostrou problemático.  Alguns problemas refletem erros simples; por exemplo, equívocos administrativos, referenciação indevida ou pequenos ajustes na análise, problemas de fácil correção que, se devidamente ajustados, permitem a republicação do manuscrito com celeridade. Em outros casos, infelizmente mais frequentes, os problemas são muito mais graves e envolvem questões como o plágio, restrições nos critérios éticos de inclusão de participantes, manipulação de resultados ou até mesmo a falsificação ou criação de dados fictícios.

A retratação, embora seja uma prática desejável, não evita que os estudos com sérios comprometimentos continuem sendo consultados e citados por pesquisadores sérios, assim como podem ser utilizados por algumas pessoas ou grupos para atender interesses invariavelmente escusos como, por exemplo, oferecer uma aura de credibilidade a discursos pseudocientíficos. Este problema, embora muito grave nas ciências biológicas e médicas, também se apresenta na psicologia social, ainda que de forma menos acentuada. Uma busca no Retraction Watch Database, uma reconhecida base de dados dedicada à identificação e listagem dos artigos submetidos à retratação ou que foram retirados de circulação retorna seis itens problemáticos indexados a partir do termo stereotype, envolvendo problemas como condutas criminosas, falsificação de resultados, fabricação de dados, condutas indevidas dos autores ou plágio (Retraction Watch Database, 2021). Uma busca na área de psicologia indica um total de 827 itens, um número ainda baixo se comparado com os da genética (4627 itens), das pesquisas biológicas sobre o câncer (2742 itens) e da medicina oncológica (1608 itens). Estas diferenças, no entanto, devem ser cuidadosamente consideradas, vez que não refletem a quantidade total de estudos publicados nas respectivas áreas de estudo.

Após identificarmos os tipos de percalços, riscos e armadilhas enfrentadas no cotidiano da atividade científica, cumpre-nos indicar os meios para fazer frente aos erros cometidos em nome da credulidade.

5.2.4. Como superar as armadilhas da credulidade?

A credulidade está longe de ser definida como uma qualidade objetiva, sendo mais apropriado caracterizá-la como um julgamento consensual. Se o estabelecimento de um certo consenso acerca das informações simbólicas oferecidas por outros agentes humanos representou um importante passo na evolução humana, isto decorreu do acolhimento consensual das doutrinas, muitas das quais baseadas em fundamentos puramente ficcionais. A crença nos outros, em particular nas crenças acolhidas e defendidas pelos outros, deve ser considerada uma condição decisiva para o surgimento das sociedades humanas.

Face à impossibilidade de evitar o efeito dos ídolos e das heurísticas previamente expostas, admitir que a preocupação em melhor qualificar o conhecimento genuíno, afastando-o das crenças sem fundamentos, pode ser considerado uma das principais realizações do pensamento humano. Adotaremos, na presente seção, os argumentos encontrados no capítulo de Kueger e colaboradores para diferenciar os modelos de raciocínio formal elaborados com a finalidade de identificar, controlar e, caso possível, eliminar os ídolos e as nossas recorrentes falhas de raciocínio. Cumpre-nos assinalar que estas estratégias formais de raciocínio não se confundem com o uso que fazemos dos recursos cognitivos para lidar com as tarefas do dia a dia, dado que atender os critérios que envolvem o tratamento da informação é uma operação dispendiosa segundo o ponto de vista da economia cognitiva (Krueger, Vogrincic-Haselbacher, & Evans, 2019).

Estes modelos estão associados a três importantes pensadores, o teólogo e matemático francês Blaise Pascal (1623-1662), o pastor presbiteriano e estatístico inglês Thomas Bayes (1701-1761) e o filósofo empirista inglês David Hume (1711-1776), ao qual nos referimos ao discutir o iluminismo. Consideremos, no diagrama encontrado na figura 123, as influências das ideias de cada um destes autores, enfatizando que apesar das diferenças de orientação, estas tradições de pensamento se irmanam em um objetivo comum, oferecer respostas ao problema da credulidade.

Figura 123. os modelos de Hume, Bayes e Pascal

O nosso ponto de partida será o relato de um suposto milagre. Trata-se do caso de um amigo tutor de um gato, a alegria da casa que, depois de comer o que não devia, ficou adoentado de uma tal maneira que nem as inúmeras visitas ao veterinário e nem as crescentes prescrições medicamentosas foram suficientes para aliviar o sofrimento do bichinho. O nosso amigo, informado por terceiros, que as terças-feiras era o dia da semana reservado à bênção dos animais em uma das tantas igrejas do bairro, cuidadosamente colocou o animal numa dessas caixas que todo tutor dispõe para levar o bicho para um lado e para outro e, para evitar que o vigor do milagre esmaecesse no meio do caminho, sentou-se na primeira fila e ansiosamente aguardou o início da cerimônia.

Ao voltar para casa, o tutor identificou claros sinais de melhora no estado anímico do gato e, para a alegria de todos na casa, no outro dia pela manhã, o gato, como por milagre, se mostrou muito saudável. Aliviado com a descoberta, o amigo preparou uma bela xícara de café com leite e foi à cozinha à procura de algo. Ao voltar à mesa, se deu conta não apenas que o gato se mostrava ainda mais animado e, como todo gato, curioso pela própria natureza, se apossou da xícara de café com leite, bebeu o leite e deixou o café intacto no recipiente. O milagre se mostrou ainda mais extraordinário, pois não apenas o animal fora curado, como também pareceu ter desenvolvido uma habilidade para lá de maravilhosa. 

A cura em si do felino nos parece menos extraordinária do que a habilidade por ele desenvolvida, pois não teria sido o primeiro caso notificado de remissão espontânea de uma doença em animais ou mesmo em humanos. O mais importante, no nosso caso, não é considerar a habilidade do gato, mas decidir se devemos acreditar no relato do nosso amigo ou considerá-lo um crédulo. Como avaliar se o relato é justificado? Como não se tornar uma pessoa tão crédula quanto o nosso amigo?

Figura 124. um gato ungido

Seguindo David Hume, obrigamo-nos a conceder que a crença em milagres nunca é justificada, pois milagres não se subordinam às leis da natureza, sendo eventos incomuns tanto na nossa experiência de vida quanto no cotidiano dos demais.  Caso imaginássemos que eventos incompatíveis com as leis naturais pudessem ocorrer, ainda assim não nos pareceria razoável continuar a acreditar em milagres. Isto nos obriga a considerar injustificado o relato de milagres, assim como também impõe que estabeleçamos a diferenciação entre o relato do testemunho de um evento e a ocorrência factual do evento, especialmente se o relatado for um suposto milagre. Também poderíamos considerar uma outra possibilidade, admitir a ocorrência de um evento e aceitar o testemunho como válido, mas desconsiderar a possibilidade do evento ser interpretado como um milagre. 

Admitir que o nosso amigo, que acredita no milagre do gato beber apenas o leite, não é um crédulo depende de uma série de condições e, nisso, seguiremos os argumentos de Hume sobre os milagres tal como discutido há alguns anos pelo filósofo Alan Hájek. Iniciaremos afirmando que um milagre representa uma violação da natureza; e leis da natureza não estão sujeitas à exceção, a não ser se esta for explicada por outras leis naturais. Se alguém afirma ter testemunhado um milagre e não dispomos de outra prova da ocorrência do milagre a não ser o testemunho de quem o presenciou, isto dificilmente nos parecerá convincente, pois as leis da natureza invariavelmente nos ensinam que milagres não ocorrem assim, sem mais nem menos. Apesar do testemunho, não estamos dispostos a admitir que as leis naturais possam ser violadas com facilidade. Aceitando-se o exposto, a falsidade do testemunho de um evento será sempre o julgamento mais provável por melhor que seja o testemunho e por mais confiável que seja a testemunha. Porém, e aqui se introduz o princípio humeano do balanceamento, podemos acreditar que o testemunho é um milagre se, e somente se, a falsificação do testemunho do milagre for mais improvável do que confirmar o próprio testemunho do milagre. Depreende-se, então, que jamais deveremos acreditar em milagres porque os relatos nunca são confiáveis, o que torna a crença em milagres impossível de ser justificada vez que não temos consciência de terem sido relatados casos de milagres cuja negação tenha exigido a apresentação de provas ainda mais extraordinárias do que a do próprio milagre.  Face à credulidade humana, torna-se imperativo acreditar que i) muitas pessoas tendem a acreditar em milagres, em que pese a escassez das provas; ii) à medida que as civilizações se tornam mais avançadas, os relatos de milagres se tornam menos frequentes; iii)  como a alegação de milagre é um denominador comum nas várias religiões, e as várias religiões se opõem mutuamente, a afirmação de um milagre por uma denominação representa a ruína da credibilidade das outras; e iv)  nenhum relato de milagre deve ser aceito, sobretudo se ele for apresentado no contexto de uma religião (Hájek, 2008).

Enfrentar o problema da credulidade e, em particular, identificar por que o nosso amigo continua a acreditar no milagre de que um gato ungido pode beber apenas o leite ou nas afirmações de que os estereótipos podem ser diluídos e os preconceitos reduzidos, nos obriga a discutir uma série de questões ontológicas e epistemológicas. A noção de conhecimento é, em si, problemática e, consequentemente, a discussão das relações entre o conhecimento e a credulidade também deve ser considerada de difícil solução. Se não temos a exata clareza acerca daquilo que pode ser qualificado como conhecimento, como poderemos dizer que algo é tolice? Como sabemos que um determinado tipo de pessoa se sente mais inclinada do que outras a aceitar tolices como se fossem verdades?   

Hume, definitivamente não acreditava em milagres. Afirmar a existência de um milagre pode ser interpretado como uma afirmação extraordinária e afirmações extraordinárias exigem evidências extraordinárias. Um milagre, ao violar as leis da natureza, possui uma probabilidade de ocorrência muito baixa, o que torna a afirmação muito provavelmente falsa. A confirmação de um milagre exigiria todo o rigor demonstrativo necessário para eliminar as afirmações não verídicas e isso obriga que a contestação da afirmação seja mais extraordinária do que a ocorrência do próprio milagre.

Um gato ser capaz de tomar apenas o leite e desprezar o café é algo tão extraordinário quanto um milagre, donde a prova exigir uma demonstração mais do que rigorosa. Imaginando que o amigo tenha montado uma câmera oculta para investigar a maravilhosa capacidade do felino e a câmera tenha capturado imagens que ostensivamente demonstraram que o gato guardava no bolso uma destilaria portátil que o habilitou a separar o leite do café, então teríamos uma demonstração de um evento extraordinário; caso quiséssemos fazer objeções à demonstração, isso nos obrigaria a apresentar uma  evidência ainda mais extraordinária para negar a fenomenal habilidade de um gato pra lá de sabido, afinal, um gato guardar no bolso e utilizar no momento apropriado um equipamento tão sofisticado quanto o documentado na ação é algo tão fenomenal que rejeitar uma afirmação desta natureza exigiria uma demonstração ainda mais extraordinária.

Em termos do argumento humeano, demonstrar que os estereótipos podem ser diluídos representaria uma afirmação extraordinária, donde a impossibilidade de nos contentarmos com provas banais ou pouco justificadas. Teríamos, claro, uma imensa dificuldade em circunscrever algo que poderia ser definido como uma demonstração rigorosa e extraordinária de que os estereótipos de fato desapareceram e, ainda mais grave, teríamos menos razões para imaginar uma possível contraprova a ser apresentada para nos fazer crer que a demonstração não foi satisfatória. 

Por certo, estamos exagerando ao exigir provas tão extraordinárias quanto um milagre para acolhermos a tese de que os estereótipos podem ser eliminados. Pensemos, pois, numa alternativa epistemológica distinta; no caso, o segundo modelo acentuado por Krueger, Vogrincic-Haselbacher e Evans (2019). Conforme observado na figura 123, esta perspectiva adota como referência a obra do filósofo Blaise Pascal (1623-1662) e se consubstanciou no denominado modelo Newman-Pearson do teste de hipótese.  Em que consiste os arrazoados consistentes com esta maneira de se contrapor à credulidade? Voltemos à nossa história e nos perguntemos como seríamos capazes de submeter a teste a afirmação do nosso amigo crédulo de que o gato ungido bebeu só o leite e deixou o café intacto na xícara. Tal como exposto na figura 123, o modelo exige que testemos diretamente a afirmação de que o gato bebeu o leite. Para tal, postulamos uma hipótese cujo enunciado poderia ser expresso nos seguintes termos: o gato bebeu apenas o leite desprezando o café. Na sequência, submetemos a hipótese à prova empírica. Testar a hipótese, no entanto, suscita um enorme problema porque, por mais que confirmemos a habilidade do gato em beber apenas o leite, isso não é suficiente para afirmar que os gatos são capazes de separar o leite do café. Após a realização do teste da hipótese, contamos com duas possibilidades: 1) afirmar que o gato bebeu o leite e isto de fato ocorreu, o que confirma a hipótese; e 2) considerar os resultados insuficientes para confirmar o enunciado hipotético. No primeiro caso, ainda que a hipótese de que o gato separou o leite do café tenha sido confirmada pelos testes, isso não parece suficiente para impor a aceitação da conclusão de que os gatos são dotados de semelhante habilidade. No segundo caso, ao rejeitamos H1 e, em contrapartida, não termos sido capazes de reconhecer que o gato demonstrou a habilidade que tanto impressionou ao amigo crédulo determinaria um erro de julgamento. Conforme notamos no diagrama, testar a hipótese de que o gato separou o leite do café se associa ao risco de fazer um julgamento falso positivo; se formos rigorosos demais, não seremos capazes de observar o gato demonstrar o que é capaz, mesmo que ele o faça. Descartar muito rapidamente a hipótese de que os gatos podem separar o leite do café apenas evidencia a fragilidade da nossa prova, já que em algum lugar do universo poderemos encontrar um mundo dos gatos, no qual separar o leite do café seja uma experiência corriqueira.

O artifício para lidar com este problema é deixar de lado o teste da hipótese substantiva, a qual chamaremos H1, e submeter à prova uma hipótese nula, denominada H0. O que justifica a decisão de evitar testar uma hipótese diretamente e fazer uma ginástica mental para testar algo oposto ao que consideramos correto?

O fulcro do modelo reside em rejeitar corretamente a hipótese nula e, consequentemente, evitar o risco dos falsos positivos. A lógica inerente a este tipo de teste requer a repetição sistemática de um evento e a identificação da emergência de um padrão desviante que se destaque da série repetida de eventos que documentamos, daí a denominação frequentista para esta abordagem (Vallverdú, 2016). A lógica do teste do qui-quadrado exemplifica bem os fundamentos do modelo Neyman-Pearson do teste de hipótese. Não se parte de nenhuma suposição prévia, nenhuma suposição a priori sobre os dados, o que, em teoria, elimina qualquer resquício de subjetividade do procedimento.

Uma vez que o teste exige apenas a repetição sistemática das unidades de registro, devemos conduzir um número razoável de tentativas para submeter a hipótese a uma prova empírica. Com isto em mente, encontramos vinte gatos dispostos a participar do nosso estudo e, após convencê-los a assinarem um termo de consentimento livre e esclarecido, selecionamos, por sorteio, dez para serem ungidos na bênção de terça-feira; com este grupo devidamente abençoado, aplicamos uma prova nos vinte gatos, ungidos ou não, e registramos as respostas de cada um, atribuindo o valor 1 para os que conseguirem beber apenas o leite e o valor 0 para os que não foram capazes de reproduzir a proeza que tanto nos impressionou.  

A tabela (1) da figura 125 nos ajuda a refletir a respeito do conceito da hipótese nula (H0) e sobre o teste que conduzimos para avaliar se gatos podem ou não separar o leite do café.

Figura 125. valores observados e esperadas relativos aos vinte gatos terem bebido apenas o leite

A análise dos vinte registros demonstra que onze gatos se mostraram hábeis, enquanto outros nove não obtiveram sucesso. A condução de um teste binomial considerando apenas a proporção entre os gatos de sucesso e os incapazes não representa muita coisa, tal como é evidenciado pela proporção de apenas 0,5550 favorável à hipótese de que os gatos são capazes de beber apenas o leite.  Um teste estatístico apropriado para esta análise, o binomial, forneceu o valor de p igual a 0,824, indicando que temos mais de 80% de chance de cometer um erro falso negativo ao rejeitar a hipótese nula de que os gatos ungidos não conseguem separar o leite do café. A lógica do procedimento sugere, portanto, que devemos preservar a hipótese nula, pois ela está muito acima do padrão (p <.05) aceito nas ciências humanas e sociais. Em termos do teste do modelo, se tivéssemos afirmado que os gatos ungidos não se diferenciam dos não ungidos, estaríamos cometendo um erro ao não rejeitar a hipótese nula quando ela deveria ter sido rejeitada. Independente de quaisquer considerações estatísticas, a solução de análise que apresentamos foi indevida, pois analisamos os dados desconsiderando a alocação dos vinte gatos aos dois grupos. Este tipo de erro, denominado sistemático, deve ser cuidadosamente evitado, visto que ele decorre da escolha de desenhos de pesquisa indevidos para testar uma hipótese científica.

A condução de um novo teste, desta vez respeitando a alocação aos dois grupos, evidencia um cenário algo diferente. A lógica do teste foi discutida na seção 3.2 ao apresentarmos o estudo de Rice, mas não custa assinalar que o mais decisivo é analisar as discrepâncias entre o valor esperado por acaso e a frequência registrada em cada uma das células encontradas na tabela (ii) da figura 125.  Caso fosse respeitada a proporção esperada ao acaso, contaríamos que, em média, 4,5 gatos não ungidos deveriam beber apenas o leite, enquanto esperaríamos que 5,5 gatos ungidos tivessem bebido apenas o leite. As linhas encontradas ligando as tabelas (i) e (ii) indicam a origem dos valores esperados e registrados. 

O modelo de análise depende da identificação de um padrão de desvio dos valores obtidos em relação aos valores esperados ao acaso, indicando que quanto mais forte for este desvio, menor será a probabilidade de que cometamos um erro de julgamento, o que se reflete em um valor de p mais reduzido. A tabela de dupla entrada de dados indica uma boa discrepância entre os valores obtidos e os esperados; somente dois gatos não ungidos beberam apenas o leite e esperávamos o valor de 4,5, enquanto apenas um dos gatos ungidos não demonstrou ser capaz de separar o leite do café, contra o valor esperado 5,5.  Estas discrepâncias entre os valores esperados e obtidos nos obriga a rejeitar a hipótese nula de que não existiria uma relação entre ser ungido e separar o leite do café, algo confirmado pelo teste estatístico do qui-quadrado (x2 (20) = 9,899 , p < .002), no qual se estima que a chance de cometer um erro ao rejeitar a hipótese nula é de duas chances em mil, muito acima de cinco em cem, o valor padrão adotado nas ciências humanas (p <.05).  É importante notar, no entanto, que definitivamente não temos como afirmar que todos os gatos ungidos demonstram a habilidade de separar o leite do café. Na realidade, não temos como corroborar ou confirmar a veracidade desta ou de qualquer uma outra hipótese. O máximo a que nos atrevemos é, única e exclusivamente, afirmar que o teste realizado nos impele na direção de rejeitar a hipótese nula de que os gatos não conseguem separar o leite do café. 

O modelo Neyman-Pearson do teste de hipótese segue uma lógica dedutiva, indicando que as teorias não podem ser corroboradas (Popper, 1982), apenas refutadas, alinhando-o à perspectiva filosófica associada ao nome do filósofo Karl Popper (1902-1994). A falsificação leva em consideração não a hipótese substantiva, mas a estimativa da probabilidade de que a hipótese nula seja rejeitada e, sendo este o caso, objetiva descartar a hipótese nula e manter a hipótese substantiva. Não seria mais fácil testar a hipótese substantiva? O que justifica essa mudança de orientação? Basicamente pela dificuldade em assegurar com convicção que a relação causal entre dois fenômenos é verdadeira, pois este tipo de raciocínio favorece a aceitação de uma relação inexistente, facilitando a formulação de conclusões falso positivas. A formulação de uma hipótese nula foi a estratégia adotada para evitar este problema; ao se postular a ausência de uma relação entre dois fenômenos e rejeitar a hipótese nula, resta identificada uma falsa relação e se impõe a necessidade de buscar alternativas explicativas (Vallverdiu, 2016). 

O critério para definir se uma hipótese nula deve ser retida ou descartada é o valor de p, um conceito fundamental na lógica do modelo Newman-Pearson do teste de hipótese. Ao comparar grupos ou condições, o valor de p indica a probabilidade de se obter uma diferença entre estes grupos ou condições tão grandes quanto a observada na amostra, se de fato forem encontradas diferenças entre as medidas comparadas (Miller, 2005). Valores de p mais baixo estão associados a uma menor chance de rejeitar erroneamente uma hipótese nula. Muitos estudiosos e metodólogos passaram a formular uma série de objeções em relação à utilização do valor de p; estas críticas se materializaram em um fortíssimo edital publicado na revista Basic and Applied Social Psychology em que se baniu das páginas do periódico a apresentação de qualquer  teste de hipótese sustentado na lógica do valor de p, incluindo a apresentação de estatísticas associadas ao teste t de diferença entre as médias, o valor de F associado à ANOVA e as argumentações baseadas na noção de diferenças estatísticas significativas entre as médias. A precaução dos editores do Basic and Applied Social Psychology reflete uma enorme preocupação em relação aos vieses de publicação suscitados pela lógica do valor de p, pois a desconsideração sistemática de manuscritos de pesquisa nos quais a hipótese nula é rejeitada representa um forte enviesamento, dado que, dos milhares de estudos realizados a cada ano, apenas são publicados os que apresentam um valor de p abaixo de .05 (Lynch, & Bartlett, 2019). A publicação do manuscrito em um periódico revisado por pares está longe de representar uma garantia de que o estudo é mais justificado e muito menos que as conclusões nele contidas e apresentadas são necessariamente válidas (Ioannidis, 2005; Nuijten, Hartgerink, van Assen, Epskamp, & Wicherts, 2016; Schooler, 2011; Simmons, Nelson, & Simonsohn, 2011). Nada garante que as conclusões de um estudo, mesmo publicado em periódicos científicos de excelente reputação, sejam fatos estabelecidos ou absolutamente confiáveis e muito menos que as análises ali documentadas garantam que as diferenças identificadas são reais ou que as relações postuladas não sejam meramente casuais (Jussim, Stevens, Honeycutt, Anglin, & Fox, 2019).

Os modelos bayesianos se apresentaram como uma alternativa viável ao modelo Newman-Pearson do teste de hipótese (Wagenmakers, Wetzels, Borsboom, & van der Maas, 2011), tal como observado na figura 123. Este modelo se fundamenta no teorema de Bayes, no qual é conjecturado que o grau de adesão a uma crença, concebida como a percepção subjetiva acerca da probabilidade de que uma dada asserção seja verdadeira, é determinado por uma relação multiplicativa entre o que se acredita previamente, isto é, as crenças a priori p(B), e as evidências acumuladas a respeito do valor de verdade daquilo em que se acredita P(A/B), de forma que a força de uma evidência pode ser definida pelo cálculo da razão entre as evidências acumuladas multiplicadas pelas crenças  a priori em relação a todas as crenças concebíveis como verdadeiras P(A). Antes de voltar ao cenário dos felinos, adotaremos a demonstração apresentada por Lynch e Bartlett (2019) para acentuar os elementos centrais do modelo bayesiano do teste de evidência. A figura 126 representa uma questão envolvendo cálculo de probabilidades que não exige muito para ser respondida. Partamos da suposição que dispomos de duas jarras, a jarra 1 e a jarra 2, e que em cada uma delas foram colocadas quatro pedras, ou brancas ou pretas, distribuídas de acordo com o encontrado na figura. Supondo que tivéssemos tirado uma pedra preta ao acaso, qual seria a probabilidade de que essa pedra tivesse sido sacada da jarra 2? Em outros termos, qual seria a probabilidade condicional de tirarmos uma pedra preta dada a distribuição das pedras nas jarras? 

Figura 126. qual a probabilidade de que a pedra preta tenha sido sacada da jarra 2?

Identifiquemos no diagrama os elementos considerados na solução do problema. Comecemos com um elemento crítico nos ácidos debates entre bayesianos e frequentistas, a probabilidade a priori (P(B), algo que sabemos de antemão e que independe de qualquer informação prévia acerca da distribuição das pedras nas jarras. E qual é a nossa crença a priori? A de que a pedra é branca ou preta, ou seja, a probabilidade a priori de qualquer uma delas ser escolhida é de 1/2. O teste bayesiano sempre depende de uma crença a priori, enquanto o frequentista considera inaceitável a inclusão de qualquer elemento desta natureza por entender que esta operação representa a introdução de critérios subjetivos no cálculo de probabilidade e, de fato, a decisão do critério a priori, uma prerrogativa do pesquisador, determina o resultado da análise. Consideremos um outro elemento, a probabilidade condicional de B dado A, isto é, a probabilidade de tirar uma pedra preta da jarra 2 onde, sabemos, estão contidas duas pedras pretas e duas pedras brancas. Esta probabilidade como visto no numerador encontrado em (3) é 2/4. O terceiro elemento do modelo é uma constante de normalização, englobando, como pode ser visto no denominador de (3), todas as condições possíveis do modelo, tal seja, a soma dos produtos das probabilidades conhecidas de cada jarra (1/4 para a jarra 1 e 2/4 para a jarra 2), multiplicadas pelas probabilidades a priori que sabemos ser 1/2. O resultado final,  0,667, ou 2/3, nos informa a probabilidade de que a pedra preta tenha sido sacada da segunda jarra. 

Conforme assinalam Lynch e Bartlett (2019), a interpretação bayesiana difere do modelo clássico, pois enquanto neste os parâmetros são fixos e apenas os dados possuem probabilidade de distribuição, o modelo bayesiano leva em consideração apenas a distribuição a posteriori, um indicador sobre a estimativa de incerteza a respeito dos parâmetros do modelo que sobrou após a observação dos novos dados.  O interesse, portanto, não está em computar a probabilidade de rejeição da hipótese nula, mas, sim, em estimar os parâmetros do modelo para em seguida calcular o quanto a hipótese substantiva é verdadeira mediante a análise dos resultados da distribuição posterior. 

Atualmente, a estatística bayesiana se tornou bem aceita, identificando-se um movimento no sentido de conduzir análises levando em consideração conjuntamente as duas tradições (Vallverdiu, 2016).  As restrições relativas ao impacto do fator subjetivo associado à adoção das crenças a priori deixaram de ser significativas não apenas porque os resultados das análises conduzidas com a introdução deste parâmetro não diferem de forma acentuada dos encontrados com a análise conduzida com os recursos da estatística frequentista clássica, mas também com a assunção do entendimento de que a inclusão das crenças a priori nas análises pode representar um ganho em função da incorporação dos resultados conhecidos como um indicador de acúmulo de conhecimento.

Voltemos à nossa história e calculemos, com a ajuda da calculadora bayesiana apresentada em Stangrom (2021), a probabilidade de acreditar que um gato tenha bebido apenas o leite e desprezado o café. Consideremos alguns cenários:

  1. Considerando que a probabilidade inicial P(B) de um gato qualquer tomar apenas leite é de uma em mil, que o gato ficou conosco durante dez dias e bebeu apenas o leite em dois deles P(A/B), e estimamos que na população de gatos exclusivamente um em cada milhão é capaz de beber apenas o leite P(A), a chance de acreditar que o gato bebeu o leite é calculada em 99.5%; 
  2. Considerando que a probabilidade inicial P(B) de um gato qualquer tomar apenas leite também é de uma em mil, que o gato ficou conosco durante dez dias e bebeu apenas o leite em cinco deles P(A/B), e estimamos que na população de gatos exclusivamente um em cada dez mil é capaz de beber apenas o leite P(A), a chance de acreditar que o gato bebeu o leite cai para 83.5 %; e
  3. Considerando que a probabilidade inicial P(B) de um gato qualquer tomar apenas leite também é de uma em mil, que o gato ficou conosco durante dez dias e bebeu apenas o leite em sete deles P(A/B), e estimamos que na população de gatos exclusivamente um em cada milhão é capaz de beber apenas o leite P(A), a chance de acreditar que o gato bebeu o leite aumenta 70.000 vezes. 

Qual é a lógica por trás destes cenários interpretativos? Basicamente, a ideia é a de que identificamos previamente como as coisas ocorrem e atualizamos o conhecimento com as novas informações encontradas; aos poucos deixamos de lado os a priori e passamos a considerar o conhecimento a posteriori obtido com os testes de hipótese (Lynch, & Bartlett, 2019). O que o modelo bayesiano aponta é que se a evidência a priori é subjetiva, a crença a respeito dos dados é objetiva, o que coloca as evidências objetivamente obtidas numa posição privilegiada. A decisão quanto a acreditar ou não em algo envolve conduzir um teste empírico cuja finalidade é acumular evidências que ultrapassem, ajustem e corrijam as crenças previamente formuladas (Edwards, Lindman, & Savage, 1963; Gigerenzer, & Hoffrage, 1995).

A aplicação deste modelo para testar a crença de que os estereótipos podem ser diluídos ou reduzidos exigiria que partíssemos de uma certeza subjetiva a priori a respeito de quão provável seria reduzir um estereótipo e, em seguida, passássemos a considerar os resultados do estudo conduzido para reduzir os estereótipos e, depois, levar em conta não apenas os resultados de um estudo em particular, mas também os resultados conhecidos  dos demais estudos elaborados com a finalidade de resolver a mesma questão. A quantidade de cálculos exigidos para esta estimativa é alta e o tratamento dos dados é complexo, o que facilitou o surgimento e a difusão de aplicativos computacionais especializados em análises estatísticas bayesianas (Marsman, & Wagenmakers, 2017).

Estas duas dimensões de análise, a frequentista e a bayesiana, representam os dois principais procedimentos técnicos que podem ser adotados para submeter à prova quaisquer das crenças de que os estereótipos podem ser diluídos e os preconceitos reduzidos. Como tais, devem ser interpretadas como recursos decisivos para inibir os efeitos da credulidade. Na seção anterior discutimos os mecanismos que contribuem para o fortalecimento da credulidade e a presente seção nos aproximou dos meios que temos disponíveis para inibir estes efeitos. Identificados os perigos da credulidade e os recursos metodológicos adotados para evitar os falsos positivos e testar os falsos negativos, estamos em condições de avaliar de maneira mais criteriosa as principais estratégias de redução dos estereótipos e preconceitos. Antes de apresentá-las, no entanto, insistiremos na necessidade de assinalar que as duas estratégias mais discutidas, a oferta de informação e a redução da ignorância, devem ser cuidadosamente consideradas.

5.2.5. Oferta da informação e redução da ignorância

Conforme assinalamos no capítulo 3, os estudos sobre os estereótipos e preconceitos foram impulsionados pela crença algo otimista de que se a população fosse informada sobre o quão errôneas e injustas eram as informações disponíveis sobre os grupos-alvo, as virtudes do conhecimento afastariam as trevas da ignorância e a intolerância terminaria por desaparecer sob o peso da verdade. Algumas décadas de estudo e pesquisa foram suficientes para descartar esta concepção (Ecker, Lewandowsky, Swire, & Chang, 2011; Lewandowsky, Ecker, Seifert, Schwarz, & Cook, 2012; Pantazi, Kissine, & Klein, 2018), embora ninguém em sã consciência se atreva a desconsiderar a importância da oferta de informações como um recurso decisivo na tarefa de enfrentamento aos estereótipos e preconceitos. Todo e qualquer programa de redução dos estereótipos e preconceitos requer a oferta de um repertório apropriado de informações e, ainda que esta seja uma condição necessária para a mudança, mesmo assim devemos considerá-la insuficiente (Chan, Jones, Jamieson, & Albarracín, 2017; Lewandowsky, & Oberauer, 2016). Crenças elaboradas a partir da ausência de familiaridade, de relatos inverídicos ou de mitos e lendas urbanas sobre os grupos-alvo dos estereótipos e preconceitos, ao serem contrastadas com informações pertinentes e ajustadas, podem ser abandonados e, em certa medida, este movimento em direção ao esclarecimento parece ser suficiente para diluir alguns estereótipos e limitar o impacto de muitos preconceitos.

O conhecimento científico genuíno, ao ser difundido pelos meios de comunicação de massa, pode proporcionar um ambiente favorável à redução dos estereótipos, particularmente se estes estiverem fundamentados em teorias estapafúrdias ou fantasiosas. Nesse particular, a responsabilidade social da mídia representa uma característica indisputável, podendo-se estabelecer a diferenciação entre os agentes de comunicação que adotam uma linha editorial ou política voltada para oferecer ao público informações relativamente precisas e outros, cujos objetivos os direcionam para a difusão de conteúdos em que o valor da verdade ocupa um plano inferior em termos de prioridade editorial.

A oferta de informações, ainda que decisiva, não pode ser considerada um remédio infalível, não sendo incomum que o orgulho desfrutado pelo percebedor em relação ao conhecimento que julga deter acabe por contribuir muito mais para perpetuar os estereótipos do que ajudar a combatê-los (Fazio, Brashier, Payne, & Marsh, 2015). A literatura especializada relata alguns estudos nos quais fica evidente que o nível de conhecimento do agente pode impedir ou inibir a formulação de interpretações alternativas acerca da realidade, algo que se configura como um importante mecanismo de manutenção dos estereótipos (Roese, 1997; Thorson, 2016).

Além desses casos relativamente incomuns, a dificuldade mais manifesta da estratégia de oferta de informações reside na natureza peculiar dos estereótipos, uma vez que estes podem ser definidos como sistemas de crenças. Em um universo dependente das crenças é requerido um esforço relativamente acentuado para o abandono das crenças rotineiras e bem estabelecidas. Inicialmente, formamos as nossas crenças a partir do raciocínio fundamentado nas experiências pessoais e em contatos conduzidos nos mais diversos contextos e, posteriormente, buscamos explicações para defender, justificar e racionalizar as crenças que abraçamos. Para tal, utilizamos tantos argumentos quantos forem necessários, mesmo que estes não se configurem como inteiramente intelectuais e muito menos que se fundamentem em arrazoados estritamente lógicos (Festinger, Riecken, & Schachter, 1956). A nossa explicação da realidade, em consonância com o modelo que adotamos (Shermer, 2012), depende das crenças que acolhemos porque, se a realidade independente da mente humana, a maneira pela qual a entendemos depende das crenças que adotamos em momentos particulares da nossa trajetória de vida.

O papel transformador da oferta de informações pode ser minimizado se acreditarmos que, ao tentar impor padrões relativamente coerentes de interpretação ao mundo em que vivemos, nos sentirmos compelidos a aceitar que existem agentes responsáveis pelos eventos que nele se sucedem. Ao assinalarmos a presença destes agentes como responsáveis pelos eventos, o nosso conhecimento se torna inteiramente dependente das nossas crenças e cada nova peça de informação contribui muito mais para confirmar aquilo em que acreditamos do que para facilitar a emergência de novas configurações de entendimento sobre a realidade. Conforme assinala Gilbert (1991), qualquer processamento de informação se encontra sujeito a falhas, uma vez que o tratamento de uma informação capaz de modificar um sistema de crenças exige uma carga cognitiva importante. Continuar a crer naquilo em que se acredita, particularmente se for uma crença estereotipada e como tal, acolhida por muitos, envolve um esforço cognitivo muito menos intenso do que simplesmente modificar aquilo em que se acredita. Duvidar exige muito mais trabalho mental do que acreditar; ao entendermos o significado de uma proposição tendemos a considerá-la verdadeira e a questionaremos, se isso vier a acorrer, apenas em um momento posterior. Negar uma proposição é uma operação cognitiva complexa, cuja emergência se torna possível apenas em um período mais tardio do desenvolvimento cognitivo. Duvidar de uma crença estereotipada é algo definitivamente complexo e, parafraseando Gilbert, no jardim de inverno das crenças, a dúvida é sempre a última flor a medrar e a primeira a fenecer.

Devemos assinalar, no entanto, que não estamos pura e simplesmente negando os efeitos da oferta da informação como um recurso importante para a diluição dos estereótipos, mas apenas acentuando os limites das estratégias que se fundamentam neste recurso. As crenças são fundamentais na nossa existência; somos, em boa parte, aquilo em que acreditamos e as nossas certezas advém da ilusão que cultivamos ao tentarmos manter sob controle a nós mesmos e ao mundo que nos circunda (Nickerson, 1998). A credulidade é um elemento decisivo para navegar nesse mundo, pois nos ajuda a manter intactas as informações, destituindo-as de ambiguidades e de imprecisões. Para Wyer Jr. e Albaracín (2005), a principal motivação para perseverar no que acreditamos se sustenta em mecanismos psicológicos que nos impelem a crer que as nossas percepções sobre nós mesmos e sobre a realidade são verdadeiras. As crenças contribuem para oferecer a ilusão de que somos capazes de prever os acontecimentos e mantê-los sob controle, uma motivação decisiva na resistência que impomos a qualquer mudança no nosso sistema de crenças, vez que a adoção de novas convicções demanda um enorme esforço mental, cujas implicações podem ser bastante negativas em termos de economia cognitiva.

Esta discussão nos obriga a admitir que as pessoas podem continuar a ignorar as qualidades e os atributos positivos dos grupos em relação aos quais nutrem preconceitos, ainda que tenham acesso a informações que poderiam levá-las a modificar as crenças estereotipadas há muito cultivadas. A pura e simples presença de uma peça de informação não é a garantia de que esta seja usada no sentido de inibir ideias preconcebidas, pois o efeito pode ser justamente o oposto. As informações precisam ser trabalhadas, e muito bem, para que possam reduzir a ignorância e não ampliar os estereótipos e preconceitos, donde o surgimento de estratégias destinadas a combatê-los mediante a redução da ignorância. Para tal, se requer a formulação de estratégias aptas a irem além da mera oferta de informação, o que representa trabalhar no sentido de fazer com que as pessoas abandonem as crenças que as deixam sujeitas a um mundo de escuridão. Uma pessoa pode ser muito bem-informada, ter acesso a boas fontes de informações e ainda assim continuar a se portar como um ignorante empedernido. Por que isso ocorre? Por que é possível afirmar que a ignorância está na raiz dos preconceitos?  

Muitos estudos têm evidenciado que as demonstrações lógicas não são decisivas na aceitação das crenças porque o pensamento crítico é considerado uma dádiva para lá de rara na nossa espécie (Corbalis, 2007; Halpern, 2006; Sternberg, 1999). Uma crença arraigada e bem fundamentada oferece um certo senso de estabilidade a respeito do mundo e uma sensação de controle tão extraordinária que inibe o papel desestabilizador que as evidências experienciais e lógicas oferecem, mesmo que desconsiderá-las possa acarretar riscos existenciais ou colocar em dúvida uma fonte de informação bastante crível. Algo que a princípio imaginamos capaz de modificar uma crença pode agir no sentido de fortalecê-la, tornando-a ainda mais robusta. Esta tendência é marcante no caso de crenças relativas às identidades pessoal e social, uma vez que tais crenças, revestidas de uma condição de centralidade no sistema, se mostram menos passíveis de discussão e mais difíceis de serem modificadas em uma condição de confronto.

O que favorece a mudança das crenças e, consequentemente, contribui para a diluição dos estereótipos? As pesquisas conduzidas na área da psicologia social indicam o papel decisivo ocupado pela prontidão cognitiva. A possibilidade de alguém resistir a aceitar uma ideia falsa depende de algumas condições, em especial a capacidade de entender de forma lógica as peças de informação disponíveis. Além disso, para o percebedor é imperativo ter acesso a informações difundidas por fontes críveis, utilizando-as como parâmetros de comparação, o que a princípio deve favorecer uma análise mais acurada do enunciado da proposição inicial. Uma ideia tomada como verdade favorece a aceitação de outras afirmações a ela relacionadas. Por exemplo, se sabemos que Joana é mulher, podemos aceitar mais facilmente a crença de que ela está grávida, ao tempo em que uma ideia logicamente inconsistente pode refrear a aceitação do valor de verdade de uma proposição. Segundo Gilbert (1989), um determinante essencial na prontidão para abandonar uma crença é o esforço intelectual em estabelecer comparações entre as crenças mais antigas e as mais novas e, ainda mais, estar intensamente motivado para executar essa tarefa cognitiva. As comparações cuidadosas, entretanto, não são eventos rotineiros, pois raramente adotamos uma atitude de ceticismo sistemático a respeito de toda e qualquer informação à qual temos acesso e não é muito comum que estejamos dispostos a analisá-las detidamente mediante um processamento cognitivo exaustivo, algo em si, raro, e sujeito a uma série de condições que quase nunca são satisfeitas (Gilbert, 1991).

O treinamento científico ou a atitude de cultivar o pensamento crítico não é suficiente para abandonar crenças arraigadas. Ainda que estudos como os de Schommer (1994) sobre a força das crenças baseadas no conhecimento científico acentuem que as pessoas que foram submetidas a um treinamento científico são mais propensas a acreditarem que as explicações envolvem uma parcela significativa de incerteza, algo que as diferencia daquelas que acolhem uma visão menos técnica do conhecimento científico e tendem a acatar o valor de verdade da maior parte das proposições, fundamentalmente não podemos postular diferenças de natureza entre o pensamento de cientistas e o de não cientistas no que concerne à aceitação das crenças estereotipadas. O grau de confiança em uma determinada parcela do conhecimento depende não apenas daquilo que é avaliado, mas também de quem conduz a avaliação. A crença na infalibilidade do conhecimento científico pode causar distorções na maneira com que o objeto é avaliado, pouco importando que a informação seja marcada pela incerteza ou que entre em contradição com outras crenças, pois o avaliador tenderá a concordar com a informação que o ajude a reforçar crenças há muito acolhidas (Kardash, & Scholes,1996).

 Se partirmos do pressuposto de que a formação técnica especializada não representa um antídoto infalível para reduzir a ignorância, obrigamo-nos a assinalar os riscos associados com a suposição de que conhecemos muito bem a nós mesmos, às pessoas com as quais convivemos e a realidade física e social em que estamos inseridos. Esta tese está associada com uma doutrina denominada realismo ingênuo, há muito debatida por filósofos e psicólogos sociais (Ross, & Ward, 1995; Van Boven, 2007). Acreditar que conhecemos a realidade tal como ela é não se configura apenas como a aceitação de uma asserção ingênua, mas também representa uma decisão bastante perigosa. Quais os perigos aos quais estaríamos sujeitos ao acreditar que somos depositários da verdade, que temos clareza a respeito daquilo que está a acontecer neste exato momento? Antes de qualquer coisa, aceitar a tese do realismo ingênuo aponta para uma enorme incapacidade de reconhecer que aquilo que conseguimos concluir a respeito das outras pessoas e do mundo em que vivemos é inteiramente marcado pelas nossas características subjetivas, idiossincrasias e particularidades.

O realismo ingênuo, ainda que acolha a tese realista de que os objetos que estão inseridos no nosso espaço existem por si só, existiam antes da nossa chegada e continuarão a existir quando nos ausentarmos desse mundo e que os seus fatores definidores independem de nós, das nossas crenças e da maneira pela qual os percebemos, incide no erro de aceitar que o mundo se encontra aberto e facilmente apreensível a quem se dedique a conhecê-lo. Uma das primeiras consequências negativas do acolhimento da tese do realismo ingênuo se refere à crença de que todos pensam como pensamos ou, pelo menos, que deveriam pensar da mesma maneira que pensamos. Afinal, se conhecemos o mundo, se acreditamos ter um claro entendimento do que está acontecendo, nada nos impede de imaginar que todos deveriam pensar como pensamos; logo, qualquer um que se pronuncie contra aquilo em que acreditamos deve ser tratado como alguém que se contrapõe à nossa visão de mundo, alguém que patrocina e fomenta interpretações que se opõem à verdade e, assim sendo, deve ser visto como alguém que se insurge contra o que defendemos e acreditamos. Se estamos do lado da verdade, se somos a verdade, quem não está do nosso lado é inimigo. A neutralidade passa a ser concebida como uma quimera; quem não está do nosso lado, quem não aceita a verdade que representamos, definitivamente está contra tudo o que acatamos e deve ser tratado como opositor. Acolher o realismo ingênuo proporciona outras consequências de peso no julgamento do outro. Uma delas é um exagero nas estimativas a respeito das diferenças entre as nossas opiniões e a dos nossos opositores. Não se trata de uma simples questão de grau, mas de natureza. Pequenas distinções se tornam espaços intransponíveis; as dissensões, por mais leves que sejam, alcançam proporções inomináveis e se transformam em disputas acirradas. Quem não cerra fileira conosco, quem não está ao lado da verdade deve ser tratado simplesmente como opositor e deve receber o tratamento condizente com esta condição.

Estes problemas suscitados pelo acolhimento da tese do realismo ingênuo impõem dificuldades adicionais às estratégias de redução dos estereótipos e preconceitos baseadas na redução da ignorância. Ao supor que a verdade está conosco, obviamente passamos a acreditar que os suscetíveis aos vieses de julgamento são os outros. Eles, não nós, exageram; eles não interpretam as coisas como devem e não conseguem perceber nem mesmo o óbvio. Nesse cenário, não temos nenhuma razão para procurar reduzir a nossa ignorância, pois os ignorantes são eles, os outros.

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