4. Uma nova definição

Pressupostos

Taxionomia

Dimensões fundamentais

Cenários, entes e eventos

Modelos

Demarcar as origens dos termos e conceitos científicos é uma tarefa delicada. Alguns se originam no senso comum e se perdem na poeira do tempo; outros se relacionam diretamente com alguma tradição filosófica; uns tantos são cunhados a partir de analogias com processos e produtos gerados pelo desenvolvimento científico e tecnológico. Este é o caso do termo estereótipos, o qual faz alusão aos tipos fixos, moldes metálicos que se destacam pela possibilidade de imprimir milhares de cópias a partir de uma mesma matriz, sem apresentar desgaste e sem a necessidade de substituição a cada nova impressão.

Figura 86: a origem do termo estereótipos, os tipos móveis

Francis Bacon (1561-1626), escrevendo no início da modernidade, chama a atenção para o fato de que escrever um livro à mão é bem mais fácil do que dispor os caracteres tipográficos para imprimir um livro, mas, superada essa dificuldade inicial, a impressão tipográfica pode gerar um número infinito de cópias, enquanto as letras à mão só servem para uma escrita (Bacon, 2014). A despeito dessa observação, o primeiro a utilizar o termo nas ciências sociais foi jornalista Walter Lippman que o importou do vocabulário então corrente na indústria tipográfica, adotando-o para fazer referência a algo que pode ser repetido mecanicamente.

Algumas décadas depois de introduzido na literatura científica, o termo pertence ao linguajar habitual das pessoas com alguma educação formal. Uma busca no Google, o sistema de indexação de páginas mais conhecido da Internet, retorna quase trinta e cinco milhões de documentos associados ao termo   stereotype, mais de sete milhões ao indexador stereotyping e cerca de vinte milhões ao termo de busca estereótipos. Artigos e matérias publicadas em jornais e revistas constantemente se referem ao termo, considerando-o, sobretudo, a partir de uma dimensão axiologicamente negativa e quase sempre associando-o a conceitos como os de discriminação, estigma, preconceitos e exclusão social.

Na psicologia social, o tópico vem despertando a atenção dos estudiosos desde a primeira metade do século XX. Este interesse, no entanto, não parece ter sido suficiente para produzir clareza quanto à definição ou mesmo caracterização das suas dimensões fundamentais, levando alguns estudiosos a sugerirem, não sem uma certa ironia, que são encontradas mais definições do que autores dedicados ao estudo do tema, o que favorece a interpretação de que muitos pesquisadores adotam duas ou mais definições (Hamilton, Strossner & Driscoll, 1994) ao tempo em que são apresentadas reservas no sentido de alertar que a definição dos estereótipos permanece vaga e problemática (Stangor, 2009). Em geral, as definições são ora muito abrangentes, igualando-os aos mitos, às lendas ou ao folclore (Berger, 1986; Bynum, 1990; Dipio, 2008), ora muito restritas, reduzindo-os aos adjetivos usualmente ativados e aplicados face à mera presença de indivíduos associados a determinadas categorias sociais (Pereira, 2002).

A caracterização de estereótipos como fotografias dentro da cabeça produziu um forte impacto nas formulações posteriores. Essa influência pôde ser identificada alguns anos depois no manual de psicologia social publicado por Otto Klineberg em 1940, no qual se sugere que, se a percepção dos outros é construída mediante a articulação entre as impressões sensoriais imediatas objetivas e os conteúdos acumulados na cabeça durante anos, os estereótipos seriam estes elementos pré-existentes (Klineberg, 1963). A definição dos estereótipos como imagens, representações ou fotografias mentais disparadas face à presença de um indivíduo associado a uma determinada categoria social (Lippman, 2008) evidencia a acepção predominante nas primeiras décadas de estudo do tema. Entendidos simplesmente como entidades mentais, cujos referentes seriam as categorias sociais, os estereótipos foram caracterizados inicialmente como produtos mentais, sendo notadamente associados às crenças sobre os estrangeiros e membros de grupos sociais minoritários.

Como vimos no capítulo anterior, o exemplo mais marcante desta tendência foi o artigo de Katz e Braly que deu origem à denominada trilogia de Princeton, na qual se introduz a técnica do checklist, ainda hoje um recurso de pesquisa muito utilizado. Na época, o interesse predominante dos estudiosos era, sobretudo, identificar os adjetivos associados a algumas categorias sociais e, definidos os traços, conduzir cálculos com a finalidade de estimar o quão positiva ou negativa era a avaliação do grupo, o grau de consenso e o compartilhamento social dos estereótipos (Devine & Elliot, 1995; Karlins, Coffman & Walters, 1969; Gilbert, 1951; Katz & Braly, 1933).

O método do checklist e as suas derivações, como os métodos da porcentagem ou da razão diagnóstica (Gardner, Wonnacott & Taylor, 1968; McCauley & Stitt, 1978), se foram heuristicamente ricos por gerarem trabalhos empíricos de reconhecida importância, se ressentiam de dificuldades identificadas somente no início dos anos 70 do século XX quando foi assinalado que, passadas várias décadas da introdução do termo, os teóricos ainda se sentiam incapazes de identificar claramente o papel desempenhado pelos estereótipos na percepção, no julgamento e na expressão do comportamento social (Brigham, 1971). As suspeitas de natureza metodológica em relação à técnica do checklist, assim como em relação aos demais métodos diretos de investigação sustentados em estratégias de autorrelato, sugeriam que os resultados obtidos em muitos estudos sofriam um forte efeito da demanda (Nichols, & Maner, 2008; Orne, 1962) e, mais grave, pareciam ser incapazes de isolar e identificar claramente as características atribuídas às diversas categorias sociais. A crítica metodológica mais importante se referia à validade, dado que, se a técnica do checklist era considerada um recurso apropriado para mensurar as opiniões socialmente compartilhadas pelos participantes, não oferecia meios para identificar os processos psicológicos responsáveis pela expressão dos estereótipos e nem ajudava a esclarecer as funções desempenhadas pelos estereótipos na vida social.

No capítulo anterior também destacamos como o impacto destas críticas imprimiu um novo rumo aos estudos e gerou mudanças significativas na definição e na caracterização dos estereótipos. Em decorrência da sugestão de Brigham e de outros revisores, novas formulações se voltaram para definir os estereótipos como processos psicológicos ativados em um agente dotado de capacidades cognitivas limitadas, o que, evidentemente, favoreceu a formulação de interpretações que tendiam a tratá-los como mecanismos simplificadores da realidade social. Em que pese tais mudanças, muitas formulações procuraram se manter fiéis à perspectiva clássica mesmo tendo introduzido elementos inovadores como, por exemplo, a discussão sobre o fundo de verdade das crenças estereotipadas (Lee, Jussin & McCauley, 1995). Um exemplo claro dessa dupla tendência de aliar o tradicional ao moderno pode ser identificada na definição formulada no capítulo dedicado aos preconceitos do manual de psicologia social de David Myers, no qual os estereótipos são definidos como crenças generalizadas, inacuradas ou resistentes às novas informações sobre os atributos pessoais de um grupo de pessoas que ajudam a simplificar a maneira pela qual o mundo é interpretado (Myers, 1999).

Em meados da década de oitenta do século passado identifica-se uma importante mudança na definição dos estereótipos. O impacto da perspectiva teórica da cognição social desempenhou um papel fundamental nessa reviravolta. A preocupação central se deslocou da análise dos conteúdos dos estereótipos para a investigação dos processos pelos quais eles interferem nos julgamentos sociais. A consequência mais imediata desta tendência se expressou na popularização de definições como as de Hamilton e Trolier, nas quais os estereótipos passaram a ser considerados estruturas cognitivas (Hamilton & Trolier, 1986). É importante assinalar, no entanto, que essa reviravolta não significou o abandono por completo do interesse pela identificação dos conteúdos dos estereótipos, principalmente se considerarmos o forte impacto exercido pelo artigo publicado por Fiske e colaboradores onde foi apresentado um novo modelo para o estudo dos conteúdos dos estereótipos (Fiske, Cuddy, Glick & Xu, 2002). O interesse pela identificação dos conteúdos dos estereótipos rapidamente perdeu a posição privilegiada que ocupava, sendo introduzida uma formulação até então ausente nos trabalhos desenvolvidos antes do advento da perspectiva da cognição social: os estereótipos estariam associados ao funcionamento de uma estrutura mental, cuja operação acarretaria a ativação dos processos cognitivos requeridos para que a realidade social pudesse ser simplificada e ordenada por um agente cognitivamente limitado (Fiske & Taylor, 1984; Fiske & Taylor, 1991).

Ao identificar os estereótipos como estruturas de conhecimento e ao analisar como estas estruturas interferem na alocação da atenção, na percepção, no registro das informações, na evocação da informação na memória e na tomada de decisões, esta nova concepção circunscreve o conceito de estereótipos a um domínio de investigação ontologicamente subordinado a uma perspectiva individualista de estudo dos fenômenos sociais. Esta tendência pode ser identificada em definições que tratam os estereótipos como generalizações resultantes de um processo adaptativo inevitável, ativadas pelos indivíduos com a finalidade de organizar as inúmeras informações encontradas no ambiente social e nas circunstâncias em que se deparam com os comportamentos manifestos por indivíduos filiados aos diversos grupos sociais.

Uma vez que a vida social transcorre cotidianamente em ambientes muito diversificados, é interessante notar que o conceito de estereótipo gramaticalmente é regido no plural. Pelo menos na língua portuguesa é mais usual a adoção do termo estereótipos no plural do que estereótipo no singular. Uma das principais contribuições do estudo de Katz e Braly foi a de delimitar, de forma detalhada, os critérios requeridos para identificar e enumerar os inúmeros traços associados aos diversos grupos sociais. Tornou-se possível caracterizar, à época, os americanos como trabalhadores, inteligentes, materialistas e ambiciosos; os alemães como cientificamente orientados, trabalhadores e estoicos; os irlandeses como brigões, explosivos e espirituosos; os italianos como artísticos, impulsivos e apaixonados; os judeus como astutos, mercenários e sovinas; os chineses como supersticiosos, sonsos e conservadores e os turcos como cruéis, religiosos e traiçoeiros. Esta enumeração deixa claro que os estereótipos se referiam a uma constelação de atributos, usualmente traços de personalidade ou características psicológicas estáveis, diferencialmente aplicados aos membros de uma ou várias categorias sociais.

As diferenças relativas aos traços atribuídos ou à intensidade na aplicação destes traços suscitaram uma série de problemas adicionais para uma definição conceitualmente rigorosa dos estereótipos, principalmente os relacionados à homogeneidade dos membros da categoria-alvo (Oakes, Haslam, Morrinson, & Grace, 1995). A importância da homogeneidade percebida na caracterização dos estereótipos fica evidente nas formulações que definem os estereótipos como crenças sobre os atributos típicos de um grupo que contém informações não apenas sobre tais atributos, mas também sobre o grau de compartilhamento destes traços (Thompson, Judd & Park, 2000). Não é incomum confundir, injustificadamente, a homogeneidade percebida com o consenso social. É possível supor, por exemplo, a existência de determinado repertório de crenças socialmente compartilhadas sobre os membros de uma categoria social, sem que seja necessário considerar os membros semelhantes entre si (Zebrowitz, 1996). Pode-se imaginar que numa sala de espera de um grande aeroporto internacional um passageiro acolha a crença que os circunstantes também podem ser classificados como passageiros, embora seja muito evidente, a se considerar os trajes, as idades, os backgrounds étnicos e culturais, assim como as línguas, os gestos, as posturas e os costumes, que os passageiros também sejam percebidos como diferentes entre si.

Apesar dos problemas acima referidos, estas formulações sobre os estereótipos exerceram um enorme apelo entre os estudiosos nos anos 80 e 90, não obstante uma análise mais cuidadosa nos faça acreditar que elas convivem com os limites impostos pelo compromisso assumido com a perspectiva ontológica individualista (Bunge, 2000; Bunge & Ardilla, 2002). Os trabalhos que se perfilam nesta perspectiva, evidentemente estão corretos ao assinalarem que os estereótipos cumprem a importante função de simplificar a percepção da realidade, bem como facilitar a organização e a construção de modelos de mundo. O reconhecimento desta dupla função simplificadora e organizadora da realidade é fundamental para uma melhor compreensão das funções exercidas pelos estereótipos, tendo sido destacado pelos estudiosos vinculados à perspectiva da cognição social (Blair & Banaji, 1996; Devine, 1989; Fiske, 1998; Gilbert & Hixon, 1991; Greenwald & Banaji, 1995; Hamilton & Gifford, 1976; Hamilton, Sherman & Ruvolo, 1990; Hamilton, Stroessner, & Driscoll, 1994; Macrae & Bodenhausen, 2000; Macrae, MIlne, & Bodenhausen, 1994; Macrae, Stangor, & Hewstone, 1996; Macrae, Stangor & Milner, 1994; Sherman, 1996; Schneider, 2004; Wegner & Bargh, 1998). Este é, no entanto, um dos lados da questão, podendo-se destacar outras formas de analisar as funções sociais desempenhadas pelos estereótipos.

Um importante programa de investigação, desenvolvido na Europa e conduzido sob a égide das teorias da identidade social e da autocategorização, permitiu identificar outras funções desempenhadas pelos estereótipos sociais, além daquelas acentuadas pelos teóricos da cognição social. Em um plano mais individual, evidenciou-se o papel exercido pelos estereótipos na formação da identidade social (Brown, & Turner, 1989; Tajfel, 1981), enquanto no nível grupal não se demorou a reconhecer que eles podem ser interpretados como respostas adotadas pelo grupo nas circunstâncias em que estão presentes pressões situacionais (Forgas & Fiedler, 1996), especialmente quando se apresentam conflitos manifestos e implícitos entre os grupos (Brown & Turner, 1989; Tajfel, Billig, Bundy, & Flament, 1971; Tajfel & Turner, 1979). Afora estas duas dimensões, em um domínio mais ideológico torna-se imperativo reconhecer o papel desempenhado pelos estereótipos na racionalização das diferenças de poder social e na justificação da posição privilegiada ocupada por determinados grupos ou categoriais sociais (Jost & Banaji, 1994; Jost & Major, 2001).

Em razão das dificuldades e limites encontrados nas definições previamente arroladas (Hilton & Von Hippel, 1996), sugerimos que os estereótipos cumprem com a dupla função de simplificar e organizar a realidade e de justificar e racionalizar a adoção de comportamentos e ações em relação aos membros de um grupo ou categoria social e passamos a defini-los como sistemas de crenças socialmente compartilhadas a respeito de determinados entes, em geral, membros de uma categoria social. Adicionalmente, é importante assinalar que eles se referem a suposições sobre a homogeneidade grupal e os padrões de comportamento comuns adotados pelos membros do grupo. Eles se fundamentam em teorias implícitas a respeito dos fatores que determinam os padrões de conduta dos indivíduos avaliados por meio de um julgamento categórico usualmente, porém, não exclusivamente, fundamentado em suposições sobre essências ou traços psicológicos, concebidos como intercambiáveis entre os membros do grupo ou categoria.

Os conceitos fundamentais dessa definição (Pereira, Modesto, Matos, & Nascimento, 2013; Pereira, Modesto, & Matos, 2012) estão representados no diagrama da figura 87 onde se pode identificar que os estereótipos mantêm uma relação de dependência tanto com a dimensão mais perceptual da entitatividade quanto com o domínio mais cognitivo das teorias implícitas (Hamilton, & Sherman, 1996; Hamilton, Sherman, & Castelli, 2002; Sherman, Castelli, & Hamilton, 2002). Acreditamos que o modelo incorpora as contribuições das várias tradições de pesquisa surgidas ao longo dos anos, ao mesmo tempo em que supera os limites encontrados em muitas definições anteriormente apresentadas.

Figura 87: diagrama dos fatores incluídos na definição de estereótipos

Reiterando o exposto anteriormente e consistente com o apresentado no diagrama, o nosso ponto de partida reside na definição dos estereótipos enquanto crenças socialmente compartilhadas a respeito de determinados entes, em geral membros de uma categoria social, que tem por referentes suposições sobre a homogeneidade grupal e sobre os padrões de comportamento comuns adotados pelos membros do grupo, cujos fundamentos são encontrados nas teorias implícitas a respeito dos fatores que determinam os padrões de conduta dos indivíduos avaliados mediante a aplicação de um julgamento categórico, usualmente fundamentado em suposições sobre essências ou traços psicológicos, concebidos como intercambiáveis entre os membros de uma categoria ou grupo social.

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