Uma vez identificadas as possíveis modalidades de estudos, estamos aptos a prosseguir e assinalar que o conceito de estereótipos deve ser definido a partir de uma estrutura teórica na qual devamos levar em consideração dois mecanismos psicossociais, a entitatividade, uma tendência a desindividualizar o alvo da percepção, tratando-o como parte de uma entidade social mais ampla, e a formulação de teorias implícitas em que o percebedor elabora um relato consistente sobre os fatores que determinam factual ou potencialmente as condutas dos alvos.
4.3.1. Os estereótipos e a entitatividade
Na presente seção desenvolvemos o argumento de que a inclusão dos fatores tradicionalmente estudados no domínio de investigação da estrutura e dinâmica grupais pode tornar o entendimento dos estereótipos menos limitado que o oferecido por uma abordagem centrada estritamente na perspectiva da categorização social. Dois conceitos, ambos originários da psicologia da gestalt do início do século XX, resultam decisivos neste entendimento, os de homogeneidade percebida e o de direção comum.
Ao observarmos a figura 95, o que é mais é mais provável? Que percebamos um conjunto constituído por seis setas, seis setas separadas ou dois conjuntos cada um constituído por três setas, um no lado esquerdo, formado por três setas iguais, embora em direções diferentes, e um outro, no lado direito, constituído por três setas diferentes, porém apontando para uma direção comum? A percepção mais pregnante dentre as três nos parece a última alternativa, supondo que a percepção do primeiro conjunto é determinada pelo princípio da homogeneidade percebida e o segundo pela lei gestáltica da direção comum. Estes princípios gerais de organização da percepção muito provavelmente também devem influenciar a maneira pela qual percebemos as entidades sociais. Se os perceptos forem homogêneos, ainda que apontem para direções diferentes, tendemos a percebê-los como parte de uma entidade; da mesma forma, eles podem até ser semelhantes, mas se apontarem para uma direção comum, tendemos a percebê-los como parte de uma totalidade.
Não é difícil aceitar a tese de que os grupos sociais são vistos como mais homogêneos do que as categorias sociais, quando nada pela pressão normativa que exercem sobre os membros no sentido de impor a adoção de um padrão relativamente uniforme de crenças ou comportamentos (Lambert, 1995; Hogg, 1993). Uma das consequências mais evidentes da percepção da homogeneidade de um grupo é a saliência dos seus membros, ou seja, uma maior facilidade de diferenciar os membros do grupo-alvo do julgamento em relação aos participantes de outros grupos sociais (Brewer, 2012; Brown, 1988; Judd e Park, 1988; Linville, Fischer e Salovey, 1996; Simon e Brown, 1987). Esta facilidade de distinguir os diversos grupos entre si e salientar as diferenças por eles ostentadas tem sido destacada como um dos elementos centrais na caracterização dos estereótipos, vez que os membros dos grupos estereotipados são percebidos como semelhantes entre si e facilmente diferenciáveis dos membros dos outros grupos (Maass, & Schaller, 1991).
A homogeneidade percebida é teoricamente justificada pela tese de que os grupos sociais impõem uma série de pressões normativas sobre os seus membros, sendo o efeito mais evidente a adoção de um padrão relativamente homogêneo de conduta por parte dos membros do grupo. Esta homogeneização se reflete em domínios tão diversificados quanto as crenças, os valores e as atitudes, embora venha a se mostrar de forma mais visível no domínio da aparência física e no dos trajes e vestimentas.
A homogeneidade percebida não se configura como o único elemento que permite conceber um grupo como um ente distinto dos seus membros individuais e dos demais grupos sociais. A crença de que os membros de um grupo compartilham um destino comum também exerce um papel importante na maneira pela qual concebemos os estereótipos. Ainda que não se mostrem muito semelhantes, o fato de se dedicarem a uma atividade comum, de compartilharem as mesmas expectativas e de comungarem um mesmo ideal exerce uma influência nada desprezível na percepção de que aquela entidade representa uma totalidade distinta dos seus membros (Abelson, Dasgupta, Park e Banaji, 1998; Dasgupta, Banaji e Abelson, 1999). Esse processo pode ser facilitado se os membros do grupo agem de forma organizada e se torna mais apreensível nas circunstâncias em que os membros do grupo estão fisicamente próximos e se comunicam amiúde.
O conceito de entitatividade depende da articulação destes dois fatores, a homogeneidade percebida e a direção comum. Sem a percepção das categorias ou grupos como entidades irredutíveis aos indivíduos é impossível conceber a identidade social ou refletir de forma sistemática sobre a natureza das relações intergrupais. O princípio teórico do metacontraste, por exemplo, postula que a categorização social é possível porque o percebedor é capaz de identificar que existe uma distância razoável entre o que ele supõe ser o protótipo do seu próprio grupo e o membro mais prototípico do exogrupo e que esta distância é qualificada por uma boa relação de similaridade entre ele mesmo e os membros prototípicos do endogrupo (Turner, & Reynolds, 2011).
Para conduzir um julgamento categórico que em última instância permite inscrever todo e qualquer indivíduo em uma categoria, e igualmente em outros entes mais amplos, até aceder à categoria mais abstrata humanidade, o percebedor deve dispor de meios que lhe permita conduzir as mais diversas modalidades de julgamento social. Para tal, deve dispor de teorias sobre as causas e as razões das ações humanas, assim como se sentir apto a entender como estas teorias interferem na maneira com que os julgamentos são conduzidos (Yzerbyt, Rocher, & Schadron, 1997).
Como salientamos, parte das dificuldades encontradas em muitas definições dos estereótipos decorre de uma certa persistência em considerar que o ente objeto do julgamento estereotipado é exclusivamente uma categoria social, o que resulta em análises incapazes de diferenciar os tipos de entes aos quais os estereótipos se referem. Ao admitirmos isso, somos obrigados não apenas a reconhecer que os estereótipos podem ter como referentes diversos tipos de entes sociais, como também demonstrar que a cada modalidade específica de ente social podem ser associadas diferenças sistemáticas no nível de expressão das crenças estereotipadas. Em suma, se identificarmos que os estereótipos se expressam de forma distinta a depender se o alvo é um agregado, uma categoria social ou é percebido como filiado a um grupo social, então passa a ser imperativo admitir que aos diversos tipos de entes podem estar associadas diferentes modalidades de teorias explicativas.
Entes sociais: agregados, categorias e grupos sociais
O conceito de entitatividade, introduzido nas ciências sociais pelo sociólogo Donald Campbell (1958), se refere a uma operação psicológica que acarreta a desindividualização e a posterior inclusão numa entidade social do referente, alguém cuja individualidade foi colocada entre parênteses.
A entitatividade corresponde a uma operação mental que impele a percepção de uma coleção de indivíduos como membros de uma totalidade, como parte de uma entidade distinta e irredutível aos seus componentes individuais. Inspirando-se nos princípios da psicologia da gestalt, Campbell sugeriu que os indivíduos são percebidos como uma entidade quando são semelhantes entre si, agem de forma organizada ou são regidos por um destino comum.
O conceito de entitatividade, que à época não recebeu a devida atenção, foi retomado nos anos 1980 quando ficou claro entre os estudiosos dos processos grupais que o termo grupo estava sendo aplicado de uma forma pouco rigorosa a uma série de fenômenos que, embora comuns e semelhantes em muitas dimensões, possuíam características muito distintas entre si. Ao refletir sobre as dificuldades inerentes aos estudos psicossociais sobre os grupos, McGrath, Arrow e Berdahl (2000) reconheceram uma tendência hegemônica a estudar os grupos como entidades genéricas, perfeitamente intercambiáveis entre si, constituídas por indivíduos também genéricos e incapazes de expressar suas diferenças individuais.
O resultado mais imediato dessas preocupações se refletiu no surgimento de um conjunto de estudos desenvolvidos com a finalidade de identificar as distintas modalidades de entes sociais. Esta tendência ganhou corpo após a publicação do trabalho de Lickel, Hamilton, Wierczorkowska, Lewis, Sherman e Uhles (2000), no qual se estabeleceu, a partir do grau de entitatividade, a diferenciação entre quatro tipos de grupos. O grupo com o mais alto grau de entitatividade é representado pelo grupo de intimidade onde a família constitui o exemplo mais paradigmático, pois se trata de um grupo de pequeno porte, com alto grau de interação entre os membros, de longa duração e baixa permeabilidade. Os grupos orientados para a tarefa possuem um grau de entitatividade um pouco menor, embora possam vir a ser caracterizados como grupos com um alto nível de interação, sejam de pequeno porte, de duração moderada e com algum grau de permeabilidade. O terceiro tipo de grupo, as categorias sociais, se caracterizam por um grau de entitatividade baixa, tendem a ser de grande porte, de longa duração e de baixa permeabilidade. Os grupos com vínculos menos rígidos, tais como os transitórios, possuem menor grau de entitatividade, apresentam baixíssimos níveis de interação entre os membros, vida curta e altíssima permeabilidade.
Preservamos a diferenciação proposta por Lickel e colaboradores, embora adaptando-a para retratar não os grupos sociais, mas sim os entes sociais aos quais os estereótipos podem ser aplicados: os agregados, o ente social com o mais baixo grau de entitatividade; as categorias sociais, com um nível médio de entitatividade; e os grupos sociais, que representam a entitatividade no seu mais alto grau.
4.3.1.1. Agregados
Observemos a imagem da figura 96, na qual identificamos três pessoas em uma fila. Como as percebemos? Se imaginarmos que se trata de uma fila, podemos nos fazer algumas perguntas.
As três pessoas da fila saíram para fazer a mesma coisa? É provável que sim. Elas agiram em comum acordo para estarem ali, naquele lugar, na mesma hora? Por certo, não. Provavelmente cada pessoa agiu em função dos seus interesses particulares. Se for uma fila de banco, uma delas deve ter ido pagar uma conta, a outra obter um extrato bancário e a terceira talvez tenha ido exclusivamente para conferir se os investimentos estavam mesmo em ordem e o dinheirinho continuava bem guardado.
As três pessoas não agiram de forma coordenada; ou melhor, elas agiram de modo coordenado exclusivamente enquanto estavam guardando as suas devidas posições na fila. As ações de cada indivíduo resultam de intenções particulares e, embora as ações individuais de cada uma delas possam parecer integradas e ordenadas, cada pessoa conflui para o banco em busca dos seus interesses pessoais e levada pelas razões que lhes são próprias.
Consideremos um outro exemplo, os passageiros de um meio de transporte, tais como observamos na figura 97. Por mais longa que possa parecer a impressão subjetiva da duração de uma viagem de avião, os passageiros representam um agregado bastante fugaz. Uma vez mais, cada um viaja em função dos seus interesses particulares, chega ao aeroporto usando os próprios meios e, finda a viagem trilhará o seu próprio caminho.
Um agregado é um termo genérico usado para se referir ao tipo de ente social denominado numa tradição de pesquisa mais atual sobre grupos sociais como ‘loose groups’, ou seja, grupos fugazes. O tipo de ação realizado por um agregado de indivíduos é uma ação coletiva bastante diferente de uma ação grupal, aquela realizada por um outro tipo de ente social, um grupo. Ao contrário de uma ação grupal, na qual os indivíduos agem de modo coordenado, numa ação coletiva, embora todos os indivíduos estejam envolvidos numa mesma ação, cada um age de forma independente.
Malle (2006) sugere que nos agregados os indivíduos operam como agentes distintos, não sendo plausível supor que eles elaborem um plano conjunto ou decidam agir de forma uníssona. Um agregado, nesses termos, difere de um grupo; em um grupo, os indivíduos deliberam, planejam e escolhem a forma pela qual podem agir em uníssono.
4.3.1.2. Grupos sociais
Um grupo social se destaca por ostentar um grau de entitatividade bem mais alto do que um agregado. A existência deste tipo de agenciamento social requer uma certa duração na dimensão temporal e depende de uma configuração particular em que alguns requisitos fundamentais devem ser contemplados (Campbell, 1958; Lickel, Hamilton, Lewis, & Sherman, 2000; Yzerbyt, Corneille & Estrada, 2001):
- Alto grau de similaridade entre os membros, seja no plano da aparência física, dos propósitos ou dos valores;
- Relativa proximidade entre os membros que pode permanecer vigente mesmo quando estes não se encontrem fisicamente contíguos;
- Estabelecimento de um sistema de comunicação mútua entre os indivíduos, de forma que os julgamentos possam ser expressos verbalmente e as decisões enunciadas de forma explícita ou implícita;
- Uma certa organização das ações individuais, possível de ser implementada a partir da definição conjunta das metas e propósitos das ações do grupo e de cada indivíduo;
- Tamanho razoável, pois um grupo grande dificulta a formação de redes de comunicações eficazes, o que, por sua vez, dificulta a ação coordenada dos membros do grupo; e
- Uma certa permeabilidade, capaz de permitir a entrada de novos membros e o abandono de forma pouco traumática dos descontentes, daqueles que não se interessam pela permanência ou não se veem mais como membros do grupo.
Conforme assinalamos, nem todo grupo é igual, sendo necessário estabelecer uma distinção entre dois tipos de grupos, os de intimidade e os orientados para a tarefa.
A figura 98 representa o exemplo paradigmático de um grupo de intimidade; no caso, uma família heteronormativa. Os critérios que definem a entitatividade são facilmente detectáveis, vez que os indivíduos são semelhantes na aparência física, nos trajes, no modo de falar e em muitas outras coisas. Eles também estão quase sempre próximos, se comunicam, usualmente fazem julgamentos sobre as ações de cada um, tomam decisões, agem em função do decidido, definem um sistema de normas e de monitoramento, bem como dispõem de um sistema de sanções para os recalcitrantes. Usualmente os grupos de intimidade não são de grande porte, o que favorece a realização das atividades de forma organizada, ao tempo em que facilita um certo senso de congraçamento. Em relação à permeabilidade, de modo geral os membros não impedem ou obstam a entrada de novos membros e, em muitos casos, torcem fervorosamente para que isso aconteça.
Além desses elementos entitativos, um outro fator decisivo para a caracterização de qualquer grupo é o senso de pertença (Knippenberg, & Ellemers, 1990; Linville, & Jones, 1980). Ao nos tornarmos membros de um grupo, sentimos que dele fazemos parte por menos que queiramos nos afiliar. O senso de pertencimento ao grupo familiar é regido, sobretudo, pela dimensão da intimidade. Ocorre o mesmo entre os grupos de amigos ou entre colegas durante uma confraternização. O vínculo que os une é estritamente pessoal e quase sempre regulado pelos afetos, ao contrário de um outro tipo de grupo, os orientados para a tarefa, retratado na figura 99.
A imagem representa um grupo de voluntários de uma organização não-governamental. A dimensão entitativa também pode ser facilmente reconhecida. Os indivíduos, mesmo que não sejam semelhantes na aparência física, e usualmente não o são, acabam por ser homogeneizados pelo uso de uniformes, pelos tópicos de conversa, entonação e uso de um dialeto profissional ou local (Billig, & Tajfel, 1973).
A ação coordenada imposta aos membros determina que eles estejam relativamente próximos, que se comuniquem usando canais formais e informais e que ajam de forma coordenada para alcançar um objetivo comum. As ações individuais são submetidas a escrutínio grupal e qualquer desempenho individual fora do esperado pode impactar o desenvolvimento das atividades do grupo. O sistema de tomada de decisões é quase sempre normativo, embora haja espaço para as iniciativas individuais ainda que o sistema de monitoramento e de aplicação de sanções aos desviantes seja bem mais rigoroso do que o encontrado nos grupos de intimidade. O tamanho do grupo pode ser variável; quanto maior o grupo, mais alto será o grau de formalização dos papéis, mais rigorosa será a divisão social do trabalho e mais rígida será a formação e o funcionamento das redes de comunicação. No que concerne à permeabilidade, a entrada de novos membros é uma decisão que, quase sempre, transcende ao plano individual; a decisão de acolher de forma civilizada novos participantes seja determinada pelas características dos membros remanescentes e pela dinâmica temporal e espacial do próprio grupo.
4.3.1.3. Categorias sociais
Indicamos que o processo de estereotipizar depende do indivíduo ser desindividualizado e percebido como parte de um ente social mais amplo, a exemplo de um agregado, que possui um baixo grau de entitatividade, e de um grupo social, que apresenta a característica acima referida em alto grau. Para completar a diferenciação dos entes sociais aos quais os estereótipos se referem julgamos necessário incluir uma outra modalidade de ente social, no caso, as categorias sociais. Assinalamos anteriormente que um dos problemas fundamentais de estudo dos estereótipos é considerar que o processo pelo qual uma categoria social é estereotipizada é similar ao que ocorre no processo de estereotipização dos outros tipos de entes sociais. Acreditamos que essa suposição não se sustenta, por concebermos que uma categoria social difere fundamentalmente dos agregados, que correspondem ao nível mais baixo de entitatividade, e dos grupos sociais, que são os entes bem mais entitativos. Uma categoria social não é tão pouco entitativa quanto um agregado, nem tão entitativa como um grupo, posicionando-se em uma posição intermediária. Consideremos, por exemplo, a imagem encontrada na figura 100.
Não é difícil entender o que a imagem retrata; não nos causa nenhum esforço rotulá-las e, com isso, facilmente podemos incluí-las em uma categoria social, a das mulheres. Ao categorizá-las, passamos a supor que as mulheres, independente das particularidades que ostentam, compartilham com outras mulheres uma série de características comuns que podem ser físicas, anatômicas, fisiológicas, psicológicas ou sociais ou culturais.
O processo de inclusão de indivíduos em algumas categorias sociais pode ser mais ou menos rápido e automático. Ao entrarmos em uma sala de aula ou em um auditório não pensamos duas vezes antes de rotular um circunstante como homem, outro como uma criança, alguém mais como uma mulher, aquela como asiática e assim por diante. Não precisamos de muita informação para realizar essas categorizações, pois os indivíduos adscritos a cada uma dessas categorias são incluídos facilmente a partir de um critério fundamental, as informações de superfície como a cor da pele, a estrutura corporal, o cabelo ou as características faciais. Nem toda inclusão, no entanto, ocorre da mesma forma. Se considerarmos, por exemplo, a imagem da figura 101, o cenário muda; certamente não encontraremos dificuldades em categorizá-los como homens ou adultos, porém, a categoria social mais apta para rotulá-los não é a sexual ou a etária.
A categoria social que melhor se ajusta aos personagens representados na figura seria a de criminosos? Ao contrário da imagem anterior, os elementos de superfície não são suficientes e nem inequívocos para adscrever os exemplares a uma categoria. Talvez o elemento mais decisivo seja contextual, as grades que os mantém aprisionados. A categorização, no entanto, não é tão rápida como no primeiro caso e muito menos tão automática. Os homens na imagem são mesmo criminosos ou são presos políticos? Não teriam sido encarcerados injustamente? Muitas vezes precisamos obter mais informações, refletir, ensaiar e errar, até conseguirmos rotular adequadamente e incluir o indivíduo numa categoria apropriada, e isso torna os erros de categorização relativamente comuns.
A argumentação aqui alinhavada nos obriga a diferenciar duas modalidades de categorias sociais e, consequentemente, a sugerir que o processo de estereotipização não é o mesmo, caso a categoria social seja naturalizável, como é o caso da aplicação de estereótipos às categorias sexo, idade e raça/etnia, ou caso seja uma categoria social entitativa, como os criminosos e as categorias religiosas, sociais, profissionais ou políticas. Consideraremos essa diferenciação entre as categorias sociais naturalizáveis e entitativas posteriormente, pois o mais importante agora é identificar em que sentido as categorias sociais se diferenciam dos agregados e dos grupos sociais.
Em relação à dimensão similaridade, imaginamos que a percepção de homogeneidade representa um elemento decisivo na tarefa de inclusão dos membros em uma categoria social (Medin, Goldstone, & Gentner, 1993). Por exemplo, não é difícil supor que as mulheres possuem muitas semelhanças entre si, a exemplo da aparência física ou o tom de voz. Não temos muitas dificuldades em distingui-las de um homem. Não é complicado, da mesma forma, diferenciar um adulto de uma criança e essa de um idoso. Igualmente, embora se diga que existe uma zona de transição entre brancos e negros, não é incomum ouvir que as forças policiais não enfrentam dificuldades na hora de categorizar a uma pessoa negra ou branca. Da mesma forma, as características psicológicas podem ser vistas como homogêneas entre os membros de uma mesma categoria, esperando-se, por exemplo, que as mulheres sejam cuidadoras e os homens mais assertivos (Pereira, Álvaro, & Garrido, 2015).
Se podemos afirmar que a percepção de homogeneidade é um dos elementos centrais na categorização social, o mesmo não pode ser dito em relação à estrutura organizacional. Homens ou mulheres não agem de forma organizada como fazem os membros de um grupo, assim como os criminosos não agem de acordo com um plano previamente estabelecido a não ser que façam parte de um bando ou uma quadrilha, ou seja, um grupo e não uma categoria social. Podemos nos referir, por exemplo, à categoria social dos eremitas, imaginar que eles ostentem padrões homogêneos de conduta e sejam similares em muitas coisas, mas não temos como imaginar que encetem ações de forma organizada. Algo semelhante pode ser dito em relação às redes de comunicação. Dificilmente alguém pode falar em nome das mulheres enquanto categoria social, embora saibamos que muitos grupos se organizam para empoderar, fazer ouvir e defender os interesses das mulheres. O mesmo pode ser dito em relação aos idosos, aos negros e a qualquer outra categoria, mas dificilmente podemos imaginar que alguém ou algum grupo possa falar em nome de uma categoria social.
Uma das principais dificuldades no estabelecimento de redes de comunicação ou de um sistema organizado de ações e condutas entre os membros de uma categoria é o tamanho que facilmente ultrapassa a casa dos milhões de indivíduos. Isso faz com que o grau de permeabilidade de uma categoria seja bem menos acentuado do que o que se manifesta entre os grupos ou os agregados. A inclusão em uma categoria, por exemplo, a dos adultos ou a dos idosos, independe da vontade ou da intenção do indivíduo. Em outros casos, sair de uma categoria é uma tarefa bastante complicada, a exemplo da dos criminosos; por mais que tentem mudar de vida e provem que a vida bandida ficou no passado, ainda persiste a dúvida se de fato a pessoa se regenerou ou se é apenas um oportunista esperando uma nova oportunidade para voltar a cometer delitos (Medin, & Ortony, 1989; Pereira, Álvaro, Vasconcelos, & Alves, 2010).
Os argumentos até aqui apresentados se referem a um importante limite dos estudos sobre os estereótipos, a ênfase exagerada em um determinado tipo de ente social, as categoriais. Uma segunda dificuldade decisiva se refere ao papel preponderante exercido pelos traços psicológicos como fonte de explicação para as condutas estereotipadas (Kawakami, Dovidio, Moll, Hermsen, & Russin, 2000; Rothbart, & Park, 1986). Acreditamos que outros fatores devem ser considerados e que qualquer tentativa de classificar as explicações deve estabelecer uma diferenciação entre as que se fundamentam em princípios causais como os traços e as essências e as explicações elaboradas a partir do raciocínio intencional que incluem os fatores habilitadores, a história causal das razões e as razões e motivos (Malle, 1999, 2004). Discutiremos, na próxima seção, as teorias implícitas utilizadas para contar histórias a respeito dos entes que foram desindividualizados mediante a aplicação dos processos de entitatividade e, uma vez identificadas essas teorias, teremos condições de entender como elas são associadas aos entes sociais.
4.3.2. Os estereótipos e as teorias implícitas
Com raríssimas exceções, procuramos, e frequentemente encontramos, explicações para as coisas que acontecem conosco e com as outras pessoas, assim como para os eventos que ocorrem no mundo físico e social. Estas explicações podem não ser tão formalizadas ou lógicas quanto as interpretações genuinamente científicas, mas usualmente são bem elaboradas, de maneira que devemos tratá-las como teorias. Alguns autores preferem denominá-las ingênuas, outros as tratam como teorias do senso comum. Perfilamo-nos com os que a elas se referem como teorias implícitas, o que significa dizer que, mesmo que os seus conteúdos não sejam explicitamente enunciados ou acolhidos conscientemente por quem as formula, devemos reconhecer que elas possuem virtudes suficientes para serem qualificadas como teorias. A suposição subjacente a esse entendimento é a de que as pessoas, ao tentarem explicar as condutas próprias e as dos outros, identificam variáveis, analisam as possíveis causas das ações, formulam hipóteses e, em seguida, procuram testá-las, no que pouco diferem da maneira de agir de um cientista que conduz, por exemplo, a análise da variância de um fenômeno.
A noção de teorias implícitas foi introduzida na psicologia social por Bruner e Taguiri no capítulo sobre a percepção das pessoas publicado na edição de 1954 do Handbook of Social Psychology. O argumento se centrava no entendimento de que, se nos sentirmos informados a respeito dos traços centrais de uma determinada pessoa, acabaremos por ir além desses dados isolados e começaremos a elaborar teorias a respeito das características de personalidade desta pessoa (Brunner, & Taguiri, 1954). Tal como se observa na figura 102, se reconhecemos que alguém ao longo da vida sempre agiu com calma e tranquilidade e notamos que ela se comporta de maneira cuidadosa em uma situação na qual outros agem de maneira intempestiva, possivelmente tenderemos a agregar que essa pessoa deve ser metódica e organizada e provavelmente continuará a adotar este padrão de conduta em circunstâncias futuras.
Os traços psicológicos que nos permitem interpretar uma conduta não se encontram isolados e, em função desta integração, somos capazes de compreender a conduta da pessoa no passado, articular o que sabemos sobre o passado para avaliar como e porque ela está agindo de uma determinada maneira no presente e, em seguida, criar expectativas de como ela se conduzirá no futuro. A avaliação que fazemos não depende dos comportamentos propriamente ditos, pois se fundamenta muito mais nos traços de personalidade que imaginamos serem característicos dessa pessoa. Elaboramos inferências a partir dos traços psicológicos não por considerá-los entidades independentes e isoladas, mas por acreditarmos que eles se associam seguindo uma certa lógica. Esta suposição favorece o desenvolvimento de inferências a respeito da constelação total dos traços de personalidade que supomos ser o melhor retrato de quem está sendo avaliado e julgado. Esta configuração total pode ser considerada uma teoria sobre a pessoa e essa teoria, como toda teoria, não só ajuda a entender as ações da pessoa no passado, como também permite a elaboração de previsões a respeito dos comportamentos futuros.
No campo específico da psicologia social, a principal abordagem a respeito das teorias implícitas corresponde a um conjunto de estudos subordinados às denominadas teorias atribuicionais da causalidade. Estas se sustentam na suposição de que as pessoas se referem a objetos e eventos para construírem modelos causais, indutivos ou dedutivos, nos quais são estabelecidos relacionamentos entre causas e efeitos. Um dos primeiros a suspeitar que sistematicamente atribuímos causas aos eventos foi o psicólogo belga Albert Michotte, ao demonstrar que muitos percebedores ao serem solicitados a descrever o que viam em uma tela na qual eram projetadas formas geométricas a se movimentarem de forma errática não hesitaram em afirmar coisas do tipo ‘o quadrado está arrastando o círculo’, ‘o losango empurrou o retângulo’, ‘a bola pequena está querendo brincar com a bola maior’. Esses relatos não apenas indicam uma certa tendência a elaborar descrições em termos antropomórficos para os eventos observados, como também sugerem que os percebedores são capazes de elaborar explicações relativamente organizadas para eventos inteiramente aleatórios (Michotte, 1963).
Esta tendência se manifesta de maneira mais acentuada quando o agente é um ser humano e a ação pode ser caracterizada como um comportamento social e, sobretudo, quando existe proximidade física ou temporal ou similaridades entre o que se supõe ser a causa do evento e o efeito subsequente. No final dos anos 1950, Fritz Heider ofereceu os fundamentos para a formulação mais sistemática das teorias atribuicionais ao postular a diferenciação entre as explicações que fazem referências a uma pessoa em contraposição àquelas que se referem às causas impessoais ou à situação na qual o evento se manifesta (Heider, 1970). O papel da linguagem é fundamental na psicologia do senso comum desenvolvida por Heider, pois permite identificar os tipos de atribuições usualmente utilizados para interpretar os comportamentos (Moskowitz, 2005). A utilização de verbos e de adjetivos é um fator decisivo no processo de atribuição de causas aos comportamentos. Afirmar que alguém é desonesto não representa o mesmo que dizer que face às circunstâncias alguém não teve alternativa senão a de tergiversar e se comportar em consonância com parâmetros não exatamente compatíveis com os princípios éticos condizentes com o esperado. Se em um caso a intencionalidade possui um papel preponderante, noutro uma série de fatores não intencionais exerce um papel decisivo na interpretação da ação.
Dois verbos, poder e tentar, são decisivos nessas explicações; a partir deles podemos concluir não apenas que o alvo do julgamento tem a capacidade (pôde) de efetivar o comportamento, mas também que ele se esforçou para tal (tentou). Em alguns casos, a explicação da conduta é elaborada de maneira a supor que a pessoa tentou e conseguiu manter o controle sobre os seus próprios atos. Nesse caso, não duvidamos em assinalar a ação como controlável e estável. Em outras circunstâncias, a conduta é caracterizada como incontrolável e instável, vez que a pessoa não pode e nem tenta mantê-la sob controle. Do mesmo modo, podemos diferenciar as condutas que são pessoais, mas estáveis, daquelas caracterizadas como pessoais, porém instáveis e, da mesma forma, podemos dizer que algumas condutas estáveis ou instáveis são explicadas pela situação.
Em meados dos anos 60, Edward Jones e Keith Davis publicaram um artigo no qual desenvolveram as ideias formuladas por Heider e defenderam a tese de que tendemos a acreditar que muitas disposições e intenções subjazem a toda e qualquer ação humana. A teoria da inferência correspondente (Jones & Davis, 1965) sugere que a atribuição de causas favorece o desenvolvimento de um senso de predição e controle sobre o comportamento e sobre o contexto social em que este se manifesta. Nesse caso, as inferências podem ser derivadas com mais facilidade se o comportamento a ser interpretado não for socialmente esperado, se a ação supostamente representar a vontade do ator ou se forem formuladas suposições nas quais se sustente a tese de que as ações proporcionam prazer ou satisfação pessoal para o ator.
Posteriormente, o princípio da covariância utilizado pelos cientistas para a análise das covariações sistemáticas entre causa e efeito foi adotado por Harold Kelley para explicar como os percebedores elaboram atribuições. Partindo do modelo do cubo da covariância, Kelley (1967) diferenciou três dimensões essenciais na atribuição de causas aos comportamentos sociais, as duas primeiras relativas ao comportamento do ator, a consistência e a saliência, e uma terceira dimensão, o consenso, relativo ao comportamento dos outros. Um ator pode ter o seu comportamento devidamente explicado se as suas ações se manifestam em um padrão consistente ao longo do tempo, seja se comportando da mesma maneira frente a uma determinada situação ou agindo sempre de uma forma distinta frente a estímulos diferentes. O consenso contribui para a formulação de inferências ao impor uma unidade interpretativa na qual um dado comportamento é consistente com o que seria esperado naquelas circunstâncias. Segundo o modelo de Kelley, a decisão sobre a atribuição de causas ao comportamento depende da identificação dos seguintes fatores:
- O ator se comporta da mesma maneira (consistência alta) ou de maneira diversa (consistência baixa) a depender da situação?
- O ator apresenta respostas similares a diferentes estímulos (saliência baixa) ou ele age de uma forma diversa (saliência alta) quando os estímulos são diversificados?
- O ator age de forma diferente das outras pessoas (consenso baixo) ou ele age da mesma forma (consenso alto) que os demais?
A combinação destes fatores é decisiva na atribuição de causas aos comportamentos dos atores. Um comportamento pode ser visto como determinado por causas situacionais nas circunstâncias em que se identifica que a consistência é alta e a saliência e o consenso são baixos, ao tempo em que é visto como determinado pela situação quando a consistência e a saliência são altas e o consenso é baixo.
Os teóricos da atribuição da causalidade admitem explicitamente que a maneira pela qual os percebedores explicam o comportamento corresponde a uma forma lógica e consistente de ação, o que, evidentemente, não é verdadeiro nem para os cientistas e muito menos para as pessoas comuns. Boa parte das explicações não são inteiramente lógicas, pois podem estar sujeitas a inúmeros vieses e erros de julgamentos.
Um dos principais vieses de julgamento, conhecido na literatura psicossocial como erro fundamental de atribuição (Gilbert, & Malone, 1995; Jones e Harris, 1967) pode ser definido como a tendência a superestimar o impacto dos fatores disposicionais, ou seja, os que se referem à pessoa em detrimento dos fatores situacionais. Um outro viés identificado pelos teóricos da atribuição é o denominado efeito ator-observador que pode ser definido como a tendência do ator de atribuir os comportamentos próprios socialmente indesejáveis a causas situacionais, enquanto o observador preferencialmente tende a explicar este mesmo tipo de comportamento a partir de disposições estáveis (Malle, 2006).
Um terceiro tipo de viés encerra um caráter eminentemente motivacional. Trata-se de um viés de atribuição a eventos em que o sucesso e o fracasso desempenham um papel fundamental. Neste caso, mecanismos motivacionais para a manutenção da autoestima em níveis elevados atuam no sentido de fazer com que a pessoa tenda a atribuir a causas internas as suas inegáveis habilidades e capacidades pessoais, os seus próprios sucessos; ao mesmo tempo, atribui a fatores externos e impessoais, tais como a falta de sorte ou a dificuldade da tarefa, os próprios fracassos. Em contrapartida, também adota uma tendência oposta e simétrica, atribuindo a causas externas como a facilidade da tarefa ou uma sorte fenomenal a explicação do sucesso dos outros, enquanto apela para uma fonte de explicação interna, a incompetência, para explicar o fracasso dos outros.
Para Weiner (1985) as pessoas fazem as atribuições a partir de três dimensões distintas, o locus, a estabilidade e o controle. A primeira destas dimensões, o locus, assume duas posições, a interna e a externa; a segunda dimensão, incorpora outras duas posições, a estabilidade e a instabilidade e, por fim, a dimensão do controle, também dicotômica, diferencia os elementos controláveis dos considerados incontroláveis. Desta forma, seriam atribuídos quatro tipos de causas para os eventos e elas podem ser chamadas à cena, de forma diferenciada, a depender das circunstâncias e da situação. Por exemplo, o sucesso ou o fracasso de um candidato em concurso pode ser explicado por um ou pela conjunção dos fatores abaixo designados.
Capacidade. Trata-se de um atributo interno, estável e controlável. Como tal, é esperado que a capacidade do candidato de assimilar o conteúdo da matéria do concurso não sofra flutuações dignas de nota com a passagem do tempo. Caso aprovado, a explicação mais comum é de que se trata de uma pessoa capaz, sendo este o fator decisivo do sucesso; se reprovado, a explicação se inclina a acentuar que o candidato não foi capaz de superar uma prova daquela natureza e que o melhor a ser feito seria procurar outra carreira ou fazer um concurso compatível com as habilidades que ostenta.
Esforço. Trata-se de um atributo interno, instável e controlável. Nesse caso, a explicação para o sucesso se refere à quantidade de esforço que o candidato despendeu na realização da tarefa. O fracasso, por sua vez, é explicado pela via oposta, não sendo incomum a elaboração de explicações a partir do argumento de que o candidato não estava motivado o suficiente ou não se esforçou tanto quanto deveria para alcançar a meta almejada, deixando em aberto a explicação de que se o candidato tivesse investido mais na preparação para o exame, talvez o resultado pudesse ser diferente.
Dificuldade na tarefa. Por se tratar de um atributo externo, estável e incontrolável, a fonte de explicação não se localiza no indivíduo, mas nos fatores relacionados à situação; por exemplo, o grau de dificuldade imposto por quem elaborou a prova. Podemos imaginar que a aprovação pode ser o resultado de uma prova muito fácil, enquanto a explicação para a reprovação pode aludir a um grau exagerado de dificuldade das questões elaboradas para a prova.
Sorte. Também se trata de um atributo externo, instável e incontrolável. Nesse caso, pode acontecer de o candidato ter sido bafejado com o auspicioso fato de ter estudado os pontos certos nos livros certos ou, caso fracasse, não ter sido contemplado com um ponto fácil na prova ou ter o terrível azar de escolher os pontos errados do concurso ao se preparar para a prova.
A concepção de teoria implícita que adotamos encontra-se subordinada à teoria folk da mente desenvolvida por Bertram Malle (Malle, 1999; Malle, 2004). Mesmo acolhendo como ponto de partida as teorias atribuicionais da causalidade, Malle sugere que estas se ressentem de uma dificuldade decorrente da confusão introduzida por desenvolvedores posteriores que transformaram a distinção inicial estabelecida por Heider entre causalidade pessoal e impessoal em um modelo teórico no qual se postula uma distinção menos precisa entre causas pessoais e causas situacionais.
Malle sugere que esta dificuldade pode ser superada com a retomada de posições tradicionais da psicologia folk, nas quais se estabelece a diferenciação entre as explicações fundamentadas em causas e aquelas que sugerem algum tipo de intencionalidade por parte do agente. No que concerne aos estereótipos, insistimos que as teorias implícitas são utilizadas para fazer alusões às condutas de pessoas que foram desindividualizadas e vistas como subsumidas por um ente social, um agregado, um grupo ou uma categoria social. Assinalamos que esse processo pode ser denominado entitatividade e sugerimos que o senso comum adota uma das várias modalidades de explicações para construir um relato organizado e coerente acerca da conduta dos indivíduos que pertencem a esse ente social. Nesse sentido, as teorias implícitas cumprem um papel decisivo no processo de estereotipização, uma vez que oferecem os fundamentos para a formulação e a posterior aceitação da crença de que os atributos dos indivíduos que pertencem a um mesmo agregado, categoria social ou grupo são similares e intercambiáveis entre si.
4.3.2.1. Teorias implícitas fundamentadas na causalidade
No caso específico dos estereótipos, as principais fontes de atribuição de causas não-intencionais se referem aos traços psicológicos e às essências. O modelo geral da influência das teorias implícitas causais no processo de estereotipização pode ser representado no diagrama da figura 103, onde podemos identificar as duas principais fontes de influência acima aludidas e os seus elementos constitutivos.
Traços psicológicos
A importância dos traços psicológicos nas teorias sobre os estereótipos é reconhecida desde os estudos iniciais conduzidos por Katz e Braly nos quais foram identificados adjetivos correspondentes às disposições estáveis capazes de caracterizar os comportamentos dos membros das diversas categorias sociais. Dentre as teorias psicossociais clássicas, a vertente que exerceu mais impacto no campo de estudo dos estereótipos foi a teoria da inferência correspondente de Edward Jones e Keith Davis que, como o próprio nome indica, procurava identificar os fatores que poderiam levar o percebedor a inferir disposições subjacentes no comportamento de um ator (Jones & Davis, 1965).
Uma vertente teórica que acentua o papel desempenhado pelos traços psicológicos no processo de aplicação dos estereótipos é a hipótese do viés linguístico intergrupal. Essa teoria adota como ponto de partida as diferenças na categorização linguística de distintos grupos sociais (Semin, & Fiedler, 1988). A ideia fundamental é a de que uma cena representada por elementos imagéticos pode ser traduzida linguisticamente mediante a utilização de quatro elementos da linguagem, elencados do mais concreto ao abstrato:
- Verbos que descrevem ações. Os verbos descritivos são utilizados para a descrição de condutas específicas e eventos com início e final claramente identificáveis. Como tais, dificilmente poderíamos considerá-los sob uma perspectiva positiva ou negativa. Trata-se da estrutura linguística com o nível mais baixo de abstração, sendo usualmente utilizada para fazer alusões a eventos e situações concretas;
- Verbos que interpretam ações. Em um nível um pouco mais abstrato, os verbos interpretativos vão além de uma dimensão meramente descritiva, pois adicionam informações além daquelas que podem ser ostensivamente observadas ao que está sendo relatado. Normalmente esses verbos também fazem alusão a situações relativamente concretas, com início, meio e fim claramente delimitados;
- Verbos que fazem referências a estados duradouros. Os verbos que se referem a estados duradouros, embora façam alusão a eventos claramente discerníveis, indicam estados mentais relativamente estáveis, sendo difícil identificar no plano temporal o início ou final do estado mental do emissor da ação; e
- Adjetivos. Os adjetivos representam estruturas linguísticas que permitem a codificação dos eventos de forma ainda mais abstrata que as estruturas previamente arroladas, sendo usualmente caracterizados como variáveis disposicionais. Isso significa dizer que se referir a uma pessoa mediante a aplicação de um adjetivo cria um estado mental no qual se imputa ao agente uma certa estabilidade de comportamento, indicando que ele continuará a manifestar a mesma conduta independente das circunstâncias geográficas, temporais ou culturais.
Consideremos a cena apresentada na figura 104, extraída de um experimento conduzido para testar o viés linguístico intergrupal em uma amostra de participantes da cidade de Salvador, Bahia (Pereira, Fagundes, Silva, & Takei, 2003; Pereira, Silva, Fagundes, & Takei, 2003). As imagens a e b são idênticas, exceto por um detalhe, as características fenotípicas do garoto retratado na cena.
No experimento, cada grupo de participantes avaliou apenas uma das sequências de imagens e as opções de resposta corresponderam aos níveis de abstração relacionados com o modelo do viés linguístico intergrupal. Qual, dentre as alternativas de respostas abaixo reproduzidas, traduz melhor a cena? Alguma caracteriza melhor aquilo que está representado na imagem do que as outras?
- O garoto pega a carteira (verbo descritivo);
- O garoto devolve a carteira (verbo interpretativo);
- O garoto se sente bem por devolver a carteira (verbo que faz alusão a um estado duradouro);
- O garoto é honesto (adjetivo).
A hipótese do viés linguístico intergrupal procura identificar as circunstâncias nas quais adotamos essas diferentes estruturas linguísticas para codificar cenas constituídas por imagens. Esta avaliação depende fundamentalmente da valência, ou seja, do grau de positividade ou negatividade da cena, bem como da filiação grupal (endogrupo ou exogrupo) de quem avalia a cena, e do personagem avaliado (Maass, Salvi, Arcuri, & Semin, 1989).
O procedimento adotado na pesquisa utilizou a linguagem como um recurso para confirmar ou refutar as crenças sobre os grupos sociais, ao postular que uma codificação mais abstrata oferece mais informações acerca do protagonista, enquanto uma linguagem mais concreta enfatiza mais os elementos contextuais. No caso específico do exemplo, uma ação de devolver uma carteira perdida ao seu legítimo dono é uma ação claramente positiva no plano axiológico. A codificação da ação positiva será diferente caso ela seja executada por alguém do próprio grupo ou de um outro grupo. Nessa última situação, é de se esperar que os participantes preconceituosos de cor de pele branca, se solicitados a escolher a sentença que melhor representa a ação do garoto branco, tendam a escolher a alternativa mais abstrata, atribuindo, mediante a escolha do adjetivo honestidade, qualidades positivas aos membros do próprio grupo. No entanto, caso o alvo do julgamento seja um membro do exogrupo, o garoto negro, o modelo do viés linguístico intergrupal sugere que os participantes se inclinariam a escolher as opções de resposta menos abstratas, a exemplo da alternativa ‘o garoto pega a carteira’, pois uma codificação menos abstrata indica algum grau de dissociação entre o ator e cena. Nesse sentido, pode-se admitir não apenas que o viés linguístico intergrupal é um recurso importante para mensurar o nível implícito de preconceito, particularmente nas circunstâncias em que a cena é codificada em um nível de maior abstração (von Hippel, Sekaquaptewa, & Vargas, 1997), mas também que os adjetivos representam estruturas linguísticas decisivas no processo de atribuição de causas aos comportamentos dos grupos ou categorias sociais estereotipadas.
Essências
‘Aquilo é um monstro. Não tem jeito de se regenerar, a ruindade está no sangue’. Quantas vezes não ouvimos expressões desse tipo para se referir a determinadas pessoas? Notemos que o pronome demonstrativo utilizado foi aquilo, não aquele. Notemos também que a monstruosidade não é vista com uma qualidade, ou melhor, como uma falta de qualidade da pessoa, e sim como algo inerente a um ente não tão humano quanto todos nós, humanos. O expresso nas duas proposições denota qualquer impossibilidade de salvação ou mesmo aperfeiçoamento da pessoa alvo do julgamento.
Por que funcionamos assim? O que nos leva a pensar dessa forma, a tratar algumas pessoas como se elas não fossem exatamente humanas ou pelos menos que possuam alguns traços ou qualidades que as tornam menos humanas do que os mortais comuns? Uma das respostas para essa questão, o essencialismo psicológico, se refere à tendência que temos de pensar que as coisas, os objetos inanimados e os seres vivos, inclusive nós, humanos, somos dotados de essências que nos tornam exatamente o que somos (Pereira, Álvaro, & Gallo, 2010). Não que sejamos dotados de essências, mas pensamos e agimos como se isso fosse verdadeiro. Ainda que objetos naturais, seres vivos e humanos não possuam essências, acreditamos que eles as possuem, e não duvidamos disso.
Esta tendência se manifesta em decorrência do nosso pensamento ser fundamentalmente regido por abstrações. Pensar na extensão plena do termo é refletir mediante o uso de conceitos, ir além das operações concretas da percepção. Ao abstrairmos, somos capazes de ir além do mero fluxo das sensações mais imediatas, das amarras da percepção ou dos exageros da imaginação e passamos a extrair informações heuristicamente invariantes de um mundo em incessante transformação.
Devemos a Medin (1989) a demonstração inicial da modalidade de essencialismo ao qual nos referimos, o essencialismo psicológico. Conforme observado na figura 105, o cinza, uma cor inicialmente neutra, portanto equidistante das cores branca e negra, se torna mais próxima de um desses extremos quando qualificada por um substantivo apropriado.
Aproximamos a cor cinza do polo negro quando pensamos numa nuvem cinza e do polo branco quando pensamos em cabelos cinza. Isso ocorre pelo impacto de elementos abstratos; duas teorias, uma do envelhecimento no caso do cabelo e uma meteorológica, ao nos referirmos às nuvens. Essa dupla operação é possível de ser explicada se acreditarmos que, além das aparências, existe uma realidade subjacente e oculta passível de ser entendida apenas mediante o engenho humano, e se aceitarmos a possibilidade de estabelecer uma diferenciação entre as explicações que aludem a fatores profundos, apreensível pelo pensamento, em contraposição àquelas que se fundamentam em fatores de superfície, ou seja, na experiência sensorial.
A distinção entre aparência e essência exerce um papel decisivo no desenvolvimento dos processos mentais superiores. A crença em essências permite estabelecer que um ente possui uma identidade própria, o que o habilita a ser enumerado e diferenciado daqueles que dele se distinguem, ao tempo em que permite percebê-lo como semelhante àqueles com os quais compartilha a mesma constelação de atributos.
Em relação aos elementos de superfície, temos poucas razões para duvidar que o mundo é exatamente o que ele aparenta ser. Continuamos a acreditar que a água do mar é azul mesmo quando a colhemos com as mãos em concha e a percebamos translúcida. Os dados sensoriais recorrentes parecem ser confiáveis e, na maior parte das vezes, fornecem informações mais do que suficientes para nos orientar, tomar decisões e seguir com a vida da melhor maneira possível.
Em relação aos fatores de profundidade, às essências, as coisas mudam de aspecto; não apenas os elementos de superfície são incapazes de defini-las, como também não dispomos de elementos analíticos que facilitem essa apreensão. Gelman (2003; 2003a; 2004), ao aludir a uma estrutura conceitual denominada ‘essence placeholder‘, sugere que sustentamos uma vaga noção de que existe um lugar no qual essa essência encontra o seu espaço. Conforme observado na figura 106, o entendimento principal dessa formulação é o de que embora não cheguemos a ter o alcance de qual é ou do que é esta essência que define os membros de uma categoria social, não duvidamos que ter uma essência é um elemento decisivo na maneira pela qual os definimos.
O essencialismo psicológico pode ser definido a partir da suposição de que compartilhamos uma série de crenças essencializadoras sobre os membros de uma categoria social, ainda que não saibamos exatamente o que é essa essência ou muito menos o que ela pode significar. Em alguns casos, a essência é caracterizada como uma substância (‘aquilo está no sangue’), enquanto em outros pode ser vista como um poder (‘chegou uma hora que ele parece que foi atacado’). Em algumas circunstâncias, a essência é vista como uma qualidade (‘quando acontece, ele muda da água para o vinho’) e em outras como um processo (‘você viu como ele se transformou completamente?’). Às vezes, a essência é definida como um relacionamento (‘parece que tem uma coisa que anda junto e o domina completamente’), assim como também pode ser definida como uma entidade (‘quando aquilo baixa, parece que ele vira bicho’). Não importa muito a definição de essência – se substância, poder, qualidade, processo, relacionamento ou entidade – o mais importante é que qualquer um desses elementos passa a ser visto como a causa das propriedades típicas e das características da categoria essencializada. Para o essencialismo psicológico, as essências conferem identidade à categoria e permitem que o pensamento categórico se manifeste e exerça os seus efeitos (Gelman, & Hirschfeld, 1999). Os efeitos preponderam mesmo na ausência de clareza quanto aos elementos que definem a essência ou sem que sejam apresentadas evidências sobre a existência de qualquer tipo de essência.
Conforme assinala Gelman (2003; 2004), ainda que não ostentemos crenças precisas sobre a natureza dos membros de um grupo ou categoria social, continuamos a crer que eles possuem uma essência que os define. O raciocínio essencialista depende do acolhimento da noção de que os membros do grupo ou da categoria compartilham uma essência subjacente, não observável, profunda, que não somente define os atributos internos e externos da categoria, mas que também oferece os elementos definidores que permitem a inclusão do indivíduo como membro da categoria ou grupo social. E isso, conforme assinala o modelo do essence placeholder, não exige qualquer tipo de evidência empírica (Medin, & Ortony, 1989).
Ainda que as manifestações sejam variadas, a literatura especializada apresenta uma série de evidências teóricas e empíricas de que a formulação básica do essencialismo psicológico se sustenta em quatro crenças fundamentais, destacadas na figura 107. Consideremos, para fins de exemplo, a essencialização das mulheres. A primeira dessas crenças, a da etiologia biológica da categoria, sustenta as formas mais conhecidas de naturalização das essências. Por essa via, as diferenças entre os sexos supostamente se sustentam em uma estrutura biológica, no caso específico, o cromossomo Y; na ausência dele, nenhum indivíduo pode ser incluído na categoria das mulheres. É importante salientar que as discussões sobre a identidade de gênero ou sobre a identidade sexual não se confundem com esse padrão essencialista de raciocínio. Essa crença representa a dimensão material que oferece sustentação aos arrazoados essencialistas sobre mulheres e homens (Pereira, Álvaro, & Garrido, 2015).
A segunda crença que fundamenta a essencialização psicológica é a da imutabilidade; se considerarmos a distinção entre estrutura superficial e profunda, o que pode sofrer modificações e se encontra sujeito a transformações é o plano das aparências, não o das essências. Estas seriam, por assim dizer, imutáveis, conferindo à categoria um estatuto de permanência que está na raiz da própria substância que define a identidade do ente assim caracterizado. Nesse sentido, desenvolve-se o raciocínio de que uma vez mulher, sempre mulher, mesmo que se façam presentes modificações na estrutura superficial, por exemplo, na aparência física.
A terceira crença comum à essencialização psicológica é da informatividade. Uma vez que conhecemos a base material que define uma entidade e a reconhecemos como permanente e não transitória, começamos a entender que, ao estarmos informados de alguns atributos da categoria mulheres, podemos não apenas generalizar para as outras mulheres, mas também desenvolver uma série de conjecturas sobre os padrões de conduta e de ação da categoria. Assim, se sabemos que Maria é uma mulher, sabemos que ela compartilha com outras mulheres gostos, inclinações, tendências e hábitos que as caracterizam como mulheres e diferem daquilo que se espera encontrar entre os homens.
A quarta crença que fundamenta o essencialismo psicológico é a da descontinuidade. Essa crença patrocina uma linha divisória intransponível que separa a natureza dos entes com bases biológicas distintas. No exemplo citado, ao se ser uma mulher, não se pode ser homem, pois essas categorias são discretas, descontínuas e, como tais, não permitem essa sobreposição, nem qualquer amálgama entre elas.
A crença de que as pessoas são dotadas de essências é provavelmente a característica mais marcante da estereotipização de algumas categorias sociais, especialmente daquelas mais facilmente sujeitas ao raciocínio naturalista (Eagly, & Steffen, 1984; Fazio, & Dunton, 1997; Gaertner, & McLaughin). Em uma importante revisão dos estudos empíricos, Haslam, Rothschild e Ernst (2000) sintetizam o nível de essencialização ao qual é submetido cada uma das principais categorias sociais. O gráfico da figura 108 não deixa dúvidas acerca do impacto do pensamento categórico na essencialização do gênero, da etnia e raça, indicando, adicionalmente, que outras categorias como as subordinadas à orientação política e à doença mental não estão sujeitas ao mesmo padrão de essencialização do que as previamente citadas.
Exemplificaremos, a seguir, como a essencialização de algumas categorias se sustenta na articulação das proposições identificadas nas quatro crenças básicas essencialistas previamente referidas.
Sexo e gênero
As categorias sociais sexo e gênero são provavelmente as que apresentam a essencialização no mais alto grau, vez que, desde muito cedo, as crianças essencializam as diferenças entre os sexos e adotam padrões estereotipados de condutas em função do sexo (Taylor, 1996). Esta tendência se manifesta de forma muito nítida em vários domínios da vida cotidiana, tal como se observa nas diferenças de escolha dos carrinhos em um parque de diversões pelas crianças representadas nas fotografias da figura 109.

Notemos como as diferenças são construídas desde muito cedo e se refletem em vários parâmetros: nas cores dos trajes e dos brinquedos escolhidos, na postura, nas atitudes e nas expressões faciais e gestuais. Se conduzirmos mais inferências podemos identificar vários outros domínios nos quais as diferenças entre os meninos e as meninas permanecem essencializadas: nas brincadeiras em parques, jardins e condomínios, nas escolhas dos brinquedos, na decoração dos quartos, nas ambientações das festas de aniversários e afins e, até mesmo, nos programas de televisão e nos canais favoritos do You Tube.
A literatura tem identificado inúmeras evidências do impacto do pensamento essencialista na manifestação de preconceitos e estereótipos de gênero. Coleman e Hong (2008) sugerem que mulheres que acreditam na determinação biológica das diferenças de gênero tendem a endossar mais os traços estereotípicos associados às mulheres e demoram muito mais a rejeitar as explicações estereotipadas que aquelas que rejeitam o determinismo biológico. Na mesma direção, Gaunt (2007) assinala que os pais com uma visão mais essencializadora sobre as diferenças entre os sexos provém menos cuidados diretos e são menos envolvidos com a educação dos filhos do que os pais com crenças menos essencializadoras. O impacto do pensamento essencialista também contribui para as dificuldades de desempenho, a se considerar as evidências apresentadas por Dar-Nimrod e Heine (2006) de que se forem fornecidas explicações essencializadoras para as diferenças no desempenho em matemática, as mulheres tenderão a apresentar um desempenho significativamente inferior em testes de matemática quando comparadas com os resultados obtidos pelos homens.
A influência da essencialização biológica não se manifesta exclusivamente nas culturas ocidentais como mostra os argumentos apresentados por Mahalingam (2003) sobre o impacto da essencialização na sociedade indiana, na qual foram encontradas evidências de que as mulheres desfrutam de menos prestígio e são mais essencializadas ao serem percebidas como mais naturais e corporificadas do que os homens.
Raça e etnia
Os primeiros estudos psicossociais na área de socialização para o preconceito já assinalavam que a categorização racial de crianças difere muito da aplicada a outras categorias como, por exemplo, a ocupação (Hirshfield, 1995; 1996). O fundamento para esse modo de essencialização é uma espécie de raciocínio por analogia; ele se manifesta nas circunstâncias em que os grupos sociais são percebidos como entes que se comportam de uma maneira que pode ser interpretada como semelhante às espécies biológicas, ou seja, quando se percebe que os membros se acasalam com membros do próprio grupo, o que facilita a percepção de endogamia, e reproduzem novos membros, o que facilita o entendimento de que eles geram descendência (Gil-White, 2001).
Muitos estudos documentam associações consistentes entre altos níveis de essencialização étnica ou racial e a tendência ao preconceito ou à estereotipização. Haslam, Rothschield e Ernst (2002) relataram uma correlação positiva entre essencialização e atitudes negativas em relação aos negros. Um estudo conduzido na Alemanha encontrou associações entre o grau de essencialização e o acolhimento de preconceitos raciais em relação aos turcos e africanos e seus descendentes (Keller, 2005). O impacto do essencialismo, no entanto, é bem mais complexo do que simplesmente identificar correlações entre altos níveis de essencialização e altos níveis de preconceitos e estereotipização. Chao, Chen, Roisman e Hong (2007) constataram entre indivíduos residentes nos Estados Unidos da América com background bicultural (asiáticos e americanos) que quanto maior a tendência à essencialização, mais difícil era navegar entre as duas identidades culturais e fazer mudanças nos enquadres culturais, pois as identidades sociais e culturais se tornaram mais rígidas. Há de se assinalar, por outro lado, que os pensamentos essencialistas também podem cumprir um papel positivo de afirmação da identidade étnica (Verkuyten, 2003).
Orientação sexual
As crenças essencializadoras sobre a orientação sexual estão organizadas a partir de duas dimensões básicas: por um lado, um sistema de crenças na qual se sustenta a noção de que a orientação sexual é imutável, pois se fundamenta na biologia e, por outro lado, um sistema de crenças que se sustenta na suposição de que as orientações sexuais são profundamente diferentes e binárias (Hogarty & Pratto, 2001). A primeira formulação permite o desenvolvimento de atitudes mais positivas em relação às orientações sexuais não hegemônicas, enquanto a segunda está fortemente associada com o acolhimento de atitudes negativas extremadas em relação aos que são percebidos como associados às orientações sexuais não hegemônicas.
As principais evidências a respeito da essencialização da orientação sexual se referem à homossexualidade. A crença na descontinuidade, ou seja, a defesa da tese de que as categorias possuem fronteiras claramente delimitadas está firmemente associada com atitudes negativas em relação aos homossexuais, enquanto as crenças sobre a imutabilidade, ou seja, a de que a orientação sexual é biologicamente fundamentada, imutável e constante desde o nascimento, assim como a da universalidade, isto é, a noção de que a homossexualidade existe em todas as culturas e existiu em todas as épocas, estão associadas com atitudes mais positivas em relação à homossexualidade (Haslam & Levy, 2006).
Doença mental
Se as doenças estritamente médicas são interpretadas a partir de uma fundamentação claramente biológica favorecendo a expressão do raciocínio essencializador, tal tendência não é tão forte no caso das doenças mentais. Ainda assim, quando a essencialização da doença mental ocorre, acabamos por acreditar que a doença é uma categoria natural uma vez que a concebemos como natural e inevitável, dotada de fronteiras claramente definidas e com etiologia remontada a causas naturais. O acolhimento de um modelo biológico de doença mental acarreta uma menor tendência a responsabilizar o paciente pelos seus atos do que nas circunstâncias em que os sintomas são vistos como decorrentes da irresponsabilidade, ausência de controle ou mesmo de ‘falta de vergonha na cara’. Nesse sentido, as explicações fundamentadas em modelos psicológicos da doença mental podem engendrar manifestações mais acentuadas de atitudes negativas em relação ao doente. Em um estudo desenvolvido no Brasil no qual foram estabelecidas relações entre a essencialização e a atribuição de autonomia a pacientes diagnosticados com quadros compulsivos-obsessivos, depressivos ou esquizofrênicos, foi possível identificar que quanto maior o grau de essencialização, menor o grau de atribuição de autonomia, mais intensa a estereotipização e menor a percepção de flexibilidade mental atribuída aos pacientes (Matos, 2018).
Haslam (2004) identificou três modelos de anormalidades: o moralizador, o psicologizador e o medicalizador. As evidências encontradas na literatura sugerem que a essencialização é maior para sintomas psicológicos do que para sintomas médicos da doença mental, uma tese acolhida de forma mais acentuada entre leigos do que entre especialistas (Ahn, Flanagen, Marsh & Sanislow, 2006). Isso não significa afirmar, no entanto, que uma visão essencializadora biológica suscita, necessariamente, uma redução no preconceito; as evidências indicam que quanto mais intensa é a essencialização, mais negativas tendem a ser as atitudes e mais acentuado o grau de estigmatização em relação aos portadores de doenças mentais (Read, Haslam, Sayce & Davies, 2006; Read & Harré, 2001; Mehta & Farina, 1997).
Essencialismo e desumanização
Em concordância com o postulado da informatividade é de se imaginar que todos nós deveríamos ter sido agraciados com um potencial semelhante de sermos tratados como humanos; desafortunadamente, não é isso que ocorre. Conforme acentuamos na análise que fizemos do desenvolvimento histórico das crenças estereotipadas, pode ser identificada uma tendência em considerar alguns grupos como menos humanos ou, pelo menos, de tratá-los como não tão humanos quanto nós e o nosso grupo. Este potencial de desqualificar algumas pessoas em determinadas situações ou menosprezar alguns grupos classificando-os como não humanos, quase humanos ou sub-humanos pode fortalecer um modo recorrente de representação estereotipada encontrado nas relações intergrupais e que tem sido considerado umas das estratégias mais comuns de deslegitimação e posterior ativação de condutas discriminatórias em relação aos exogrupos (Bar-Tal, & Hammack, 2012; Fernandes, 2011; Dantas, 2014; Fernandes, & Pereira, 2019; Fleury, & Torres, 2007; Mata Filho, 2009).
As primeiras formulações dessa tese na psicologia social estão associadas ao entendimento de que a desumanização de alguns grupos assume que eles compartilham com os animais um conjunto de características que os aproxima do mundo da natureza e os aparta da cultura. Este sistema de crenças infra-humanizadoras se mostra presente desde o alvorecer dos primeiros grupos humanos, tal como discutimos no capítulo 2.
Nos nossos dias, e em algumas línguas, podemos identificar esta aproximação entre os exogrupos e a natureza e a articulação entre o endogrupo e a civilização a partir de alguns elementos utilizados tradicionalmente na linguagem cotidiana como, por exemplo, os termos ou expressões que se referem às emoções como meio de diferenciação das características dos grupos. Uma diferenciação importante se refere à adoção de referências às emoções básicas ou primárias para descrever estados emocionais comuns a animais e humanos e, por outro lado, o acolhimento da suposição de que alguns sentimentos representam estados mentais exclusivamente experimentados por seres humanos. Um animal, neste sentido, pode expressar emoções como a raiva, o medo, a alegria ou o asco; qual seja a expressão da emoção, ela não difere muito da experimentada por seres humanos. Em contrapartida, seria muito difícil imaginar que animais pudessem experimentar sentimentos ou estados mentais mais refinados como os remorsos, a devoção, a fruição estética ou o sentimento de justiça.
Esta diferenciação entre as emoções brutas compartilhadas com os animais e os sentimentos sublimes exclusivamente humanos tem sido identificada como um componente decisivo nas relações humanas, sobretudo quando estão envolvidas relações etnocêntricas entre os grupos. Muitos estudos têm evidenciado o quanto a conduta dos membros do endogrupo é interpretada a partir de sentimentos complexos como a compaixão e o orgulho (Koval, Laham, Haslam, Bastian, & Whelan, 2012), ao passo que a conduta do exogrupo é explicada levando em consideração as emoções mais básicas como medo ou raiva (Leyens, Paladino, Rodriguez-Torres, Vaes, Demoulin, Rodriguez-Perez, & Gaunt, 2000; Leyens, Rodriguez, Rodriguez, Gaunt, Paladino, Vaes, & Demoulin, 2001). A influência dessa modalidade de essencialização na expressão do racismo é muito importante e pode ser identificada no estudo conduzido no Brasil por Lima e Vala (2004b; 2005) no qual se expõe evidências de como a infra-humanização se relaciona com a percepção estereotipada dos negros; quanto mais os negros são associados ao sucesso, mais são percebidos como dotados de características humanizadoras, um efeito que se mostrou mediado pelo branqueamento. Uma vez que as emoções expressas pelos animais são mais espontâneas e se encontram fora do controle consciente é de se supor que estas emoções básicas sejam associadas de maneira mais intensa aos grupos considerados ameaçadores (Pereira, Vala, & Leyens, 2009), um efeito particularmente marcante entre os grupos de maior prestígio (Lammers, & Stapel, 2011)
A se considerar uma segunda tendência de estudos desenvolvida de forma praticamente concomitante à anterior, a infra-humanização não ocorre exclusivamente pela via da aproximação conceitual entre alguns grupos humanos e os animais. Neste caso, a desqualificação do exogrupo ocorre pela via da desumanização, sendo fortemente associada à noção de autômatos. Uma máquina ou um robô não é tão humano quanto nós, humanos. Esta estratégia de desvalorização é utilizada prioritariamente para desqualificar alguns exogrupos retratados como distantes, frios, pouco emocionais e insensíveis; ou ainda para o desenvolvimento de teorias implícitas nos quais os membros do exogrupo são vistos como seres aos quais faltam todos os elementos empáticos que nos caracterizam como humanos. É um sistema de crenças implícitas, amiúde aplicadas às categorias sociais cujos afazeres profissionais as tornam acostumadas a lidar com a dor e o sofrimento, donde o desenvolvimento da suposição de que, por lidarem de uma maneira tão pouco sensível e distante em relação aos pacientes, alguns médicos e enfermeiros deveriam ser qualificados como autômatos ou máquinas e não como humanos (Haslam, & Loughnan, 2014; Loughnan, Haslam, & Kashima, 2009).
Dadas as diversas maneiras pelas quais a desumanização é expressa (animalização, robotização, demonização, coisificação etc.), elaboramos um modelo capaz de diferenciar as distintas formas de expressão. A formulação psicossocial mais sistemática dos modelos de desumanização pode ser encontrada na obra de Haslam e colaboradores, a partir da qual elaboramos o gráfico da figura 110 onde podem ser identificadas três grandes modalidades de teorias desumanizadoras (Bain, Park, Kwok, & Haslam, 2009; Bastian, & Haslam, 2011; Haslam, 2004, 2006, 2014, 2015; Haslam, Bastian, Laham, & Loughnan, 2012; Li, Leidner, & Castano, 2014).
Uma forma básica de desumanização se refere à animalização. Ilustramos, no gráfico, algumas formas de expressão comumente utilizadas na nossa linguagem cotidiana para estabelecer essa aproximação entre a representação animalizada e algumas categorias sociais. Um exemplo é o termo cobra, utilizado com uma certa frequência para se referir às pessoas de má índole, perversas e traiçoeiras. Trata-se de um termo desqualificador, facilmente substituído por outros substantivos como víbora ou passível de ser utilizado como adjetivo no caso da expressão ‘língua viperina’. Qual seja a acepção, trata-se de desqualificar a categoria e, como tal, é um processo que não difere da utilização de termos como parasita para se referir aos pedintes, macaco como referência aos negros no Brasil ou aos brasileiros em outros países da América Latina, ou a expressão “cachorro louco” usada como referência aos motoboys.
Em que sentido uma categoria social objeto de animalização é diferenciada dos humanos? Uma das formulações iniciais de Haslam (2006) postulava que algumas características pertencem única e exclusivamente aos humanos como é o caso de elementos resultantes da ação dos processos cognitivos superiores (Vaes, & Paladino, 2010). Assim, se aos humanos sobrariam traços como a moralidade ou a civilidade e estariam presentes características como o refinamento, a inteligência e o autocontrole, muitos grupos, destituídos desses atributos humanizadores, se limitam a ter as condutas explicadas levando em consideração fatores como a vontade, o desejo e os impulsos, ou seja, aquilo que sobra nos animais.
Esta perspectiva se diferencia de uma segunda modalidade de desumanização, a que ocorre pela via da sub-humanização onde a referência aos animais é substituída por alusões a entes que estariam abaixo de um patamar que poderia ser caracterizado como humano; por exemplo, os termos monstro para aludir à categoria social dos criminosos, bárbaro para se referir aos estupradores, selvagem como referência aos indígenas, infantis em se tratando dos loucos ou mesmo fofinho, um termo usado com frequência para infantilizar os idosos.
A terceira modalidade de desumanização envolve a utilização de uma estratégia na qual o grupo a ser desqualificado é tratado como supra-humano, um ente depositário de características que se situam em um outro domínio que não o do humano. Nesse caso, a referência é menos direta que nas anteriores, pois é marcada, sobretudo, pela utilização de metáforas que se assemelham à afirmação de que os médicos são máquinas ou robôs insensíveis, que calmamente esperam terminar o lanche ou o cochilo para, somente depois e calmamente, se dirigir à sala de atendimento e finalmente prestar socorro a um paciente que há horas urrava de dor. Esta estratégia também tem sido utilizada para a desumanização de conotação religiosa, ao se qualificar um líder religioso como um santo, uma religiosa como imaculada ou ao se considerar os adeptos das religiões afro-brasileiras criaturas desprezíveis que mantêm pactos com o capeta..
A robotização dos grupos humanos, uma das principais vias da sub-humanização, é uma estratégia de desqualificação elaborada a partir da acusação de que estão ausentes os fatores que podem ser considerados naturalmente humanos, a exemplo da individualidade e da profundidade. Os alvos, usualmente vinculados às categorias sociais relacionadas com os cuidados de saúde ou com o campo de trabalho da área da tecnologia de ponta, ao não serem vistos como depositários de atributos naturalmente comuns aos humanos são caracterizados a partir de traços como a indiferença, a rigidez ou ausência de empatia.
Conforme assinalamos previamente, as consequências da adoção da desumanização no âmbito das relações sociais não se restringem unicamente ao domínio da linguagem ou da comunicação, pois o raciocínio essencialista desumanizador está fortemente vinculado tanto às formas menos duras (Lima, Faro, & Santos, 2016; Maoz, & McCauley, 2008) quanto às formas mais extremadas de discriminação, sendo um elemento comum na elaboração de justificativas que procuram dotar de uma aura de legitimidade ações completamente injustificadas, a exemplo da violência, do extermínio, da tortura ou do genocídio (Goff, Eberhardt, Wiliams, & Jackson, 2008; Moller, & Deci, 2010; Viki, Osgood, & Phillips, 2013).
Essencialismo e estereotipização
Em resumo, podemos dizer que o essencialismo psicológico é a tendência a se atuar como se as coisas fossem dotadas de essências, como se existissem estruturas subjacentes que tornam as coisas o que elas em definitivo são (Medin, 1989). Em contraposição às teorias clássicas da categorização, o essencialismo sugere que a semelhança entre os objetos é a consequência, não a causa da categorização, donde ser possível afirmar que tanto as similaridades quanto as teorias implícitas permitem que os indivíduos sejam categorizados, daí a necessidade em se admitir que a categorização resulta tanto dos fatores de superfície quanto dos fatores de profundidade (Yzerbyt, Rocher, & Schadron, 1997; 2002).
As consequências do pensamento essencialista são claras: uma vez essencializada, ainda que pessoa possa modificar o aspecto externo ou os padrões aparentes de conduta (a estrutura superficial), ela continua a ser percebida como dotada de uma essência que a torna inelutavelmente vinculada à categoria social à qual originalmente estava adscrita. Além disso, em decorrência do raciocínio entitativo, a suposição de que os grupos são estruturalmente organizados e que os indivíduos compartilham traços e características semelhantes entre si permite o desenvolvimento de um forte potencial indutivo, o que facilita o surgimento da tese de que os membros de um grupo compartilham um destino comum.
A adoção do pensamento essencialista é decisivo na formulação de juízos negativos sobre os membros do exogrupo, pois favorece a acentuação perceptiva das diferenças intergrupais, a tendência a tratar como menos humanos os membros do exogrupo, a promoção de atribuições causais internas e disposicionais, a intensificação da expressão dos preconceitos e a justificação das desigualdades sociais (Betancour, Rodríguez, Quiles, & Rodríguez, 2005; Estrada, Yzerbyt & Seron, 2004; Gelman, 2004; Haslam, Bastian & Bisset, 2004; Jost & Major, 2001; Haslam, Bain, Douge, Lee & Bastian, 2005; Keller, 2005; Picket, 2001).
Uma vez apresentadas as duas grandes modalidades de teorias implícitas fundamentadas na causalidade, passaremos a discutir as teorias fundamentadas na noção de intencionalidade, o que nos preparará para enfrentar as dificuldades relacionadas com a construção de cenários mais abrangentes para a pesquisa dos estereótipos.
4.3.2.2. Teorias implícitas fundamentadas na intencionalidade
Se as explicações causais aludem aos comportamentos expressos sem que esteja envolvida qualquer intenção por parte do agente, as explicações intencionais se referem aos comportamentos que levam em conta as razões e os motivos dos agentes. Uma ação de discriminar, decorrente de um julgamento estereotipado, pode ser definida em algumas circunstâncias como um ato estritamente intencional. Consideremos o caso de uma pessoa que considera justificado subtrair a vida de um indígena baseado na convicção de que os indígenas, por não terem recebido o sacramento do batismo, não alcançaram o estatuto de humanos (Berny, 2020; Mieder, 1993). O primeiro elemento a se considerar é a presença de um agente, isto é, alguém que possui um desejo, geralmente explícito, de justificar e racionalizar o julgamento acerca de um outro a partir de um dado critério categórico, não individualizante. Em segundo lugar, presume-se, além do desejo, a presença de uma crença essencializadora a respeito de uma determinada ação que potencialmente permita a operacionalização do julgamento. Além do desejo e da crença, é importante incluir uma intenção, um elemento capaz de transformar o que até então existia apenas em potência em um ato manifesto. Uma intenção, no entanto, não se transforma em uma ação caso o agente não possua as habilidades necessárias ou não encontre à disposição os fatores que o habilite a transformar aquilo que almeja em um ato concreto. Finalmente, uma teoria folk da mente requer um quinto elemento, a consciência de que a ação está sendo conduzida de uma forma consistente com as intenções que se expressaram na crença decorrente do desejo do agente.
Uma vez que nem toda intenção pode ser transformada diretamente em ação, as explicações folk fundamentadas na noção de intencionalidade do agente assumem três formulações distintas conforme se observa no diagrama da figura 111.

A diferenciação das três modalidades de teorias intencionais pode ser compreendida se considerarmos o caso do oficial russo de origem sueca, tal como relatado nas Memórias de um Revolucionário do anarquista russo Piotr Kropotkin. Trata-se de um oficial do exército russo enviado para os Estados Unidos em 1870 com a tarefa de comprar fuzis para o exército russo, missão que cumpriu com correção, ainda que o resultado não tenha agradado ao encarregado da inspeção dos armamentos adquiridos pelo exército imperial russo, o príncipe Alexander Alexandrovich, o impetuoso irmão do czar. Sentindo-se humilhado e insultado pelo príncipe, o ofendido, nas palavras de Kropotkin, um tipo de homem digno e respeitável com frequência encontrado na nobreza sueca instalada na Rússia, se retira de imediato enviando, em seguida, uma carta ao ofensor na qual informa que se uma retratação não fosse apresentada no prazo de vinte quatro horas ele se sentiria obrigado a dar fim à própria vida. Kropotkin relata ter encontrado o oficial na casa de um amigo em comum, contando os minutos à espera da salvadora retratação (Kropotkin, 2009).
Uma teoria implícita capaz de explicar o ato do oficial russo, o suicídio à japonesa, nas palavras de Kropotkin, se refere diretamente às razões do agente que, mediadas pela intenção, se transformam diretamente em um evento comportamental. É absolutamente plausível conceber que o oficial encontrou motivos e razões suficientes para cometer um ato desta natureza, especialmente por se tratar de um militar, regido por um sistema de regras rígidos no que concerne à honra que se sentiu injustamente acusado e não vislumbrou alternativas a não ser o autoextermínio para salvar a honra conspurcada por uma falsa acusação. A relação entre os motivos e a ação é direta, sendo irrelevante adicionar outras fontes de explicação que não as razões ou motivos de quem comete o ato.
Nas circunstâncias em que não é possível estabelecer um vínculo direto entre a intenção e a ação introduz-se uma outra teoria implícita, a história causal das razões. Em tal situação, as teorias explicativas são elaboradas com base no background das razões dos agentes e de como estes fatores impõem um determinado curso de ação. Aqui, o que se pergunta não é, a exemplo do primeiro caso, como a intenção se transforma imediatamente em comportamento. Interessa identificar o que favorece a acolhida daqueles motivos ou razões específicas. Nesse caso, elementos como as crenças, as atitudes ou os valores desempenham um papel decisivo na identificação da história causal das razões. Provavelmente, o oficial não seria tão sensível às questões de honra ou à acusação por parte do príncipe se não dispusesse de um sistema de crenças relativamente consistente sobre a vida na corte ou no exército. Da mesma forma, uma atitude positiva sobre a honra, os deveres e as obrigações militares por certo desempenhou um papel importante na decisão que levou ao suicídio. Ademais, como dotar de sentido uma decisão desta natureza sem fazer alusão a um sistema de valores no qual a honra pessoal, familiar ou profissional ocupa uma posição destacada?
Uma terceira teoria implícita se refere aos fatores habilitadores e contempla os elementos presentes na situação que favorecem ou inibem a transformação da intenção em um comportamento manifesto. Quais tipos de pressões inerentes à situação contribuíram para que o oficial agisse de forma a dar cabo à própria vida? Qual o papel desempenhado pela promessa escrita na carta enviada ao irmão do czar? Como quebrá-la, como voltar atrás sem desonrar o próprio nome, o da família e mesmo o do exército imperial? Poderia olhar para os colegas oficiais ou mesmo dar ordens aos subalternos? Pressões situacionais nada desprezíveis podem explicar o ato do oficial, além das intenções e da história causal das razões. Estas três modalidades de teorias, os fatores situacionais que habilitam à ação, a história causal das razões e as razões e motivos correspondem às teorias explícitas fundamentadas na intencionalidade que, em conjunto com as teorias fundamentadas na causalidade, contribuem para fornecer as teorias adotadas para a formulação dos estereótipos. As teorias implícitas são adotadas durante a ativação dos estereótipos nas circunstâncias em que o agente dispõe de elementos perceptuais capazes de fazer com que os indivíduos sejam percebidos de uma forma não individualizada e passem a ser tratados como partes de uma entidade social mais ampla.
Os estereótipos entre a entitatividade e as teorias implícitas
A definição de estereótipos proposta no início do presente capítulo retoma algumas tradições de estudo dos mesmos e introduz algumas rupturas. Em relação aos estudos tradicionais, ela é compatível com o entendimento de que os estereótipos são crenças, ou seja, produtos mentais e, como tais, produzidos por alguns processos psicológicos e sociais. Ademais, reconhece que, mediante o impacto da entitatividade, os estereótipos contribuem de forma sistemática para o agente cognitivo encontrar meios para mapear as regularidades e impor ordem à experiência perceptual e cognitiva; em decorrência da ativação de teorias implícitas, também considera a importância da adoção de estratégias de racionalização e justificação das desigualdades sociais, operações importantes no curso das relações intergrupais. A inspiração da presente definição origina-se, em particular, em estudos desenvolvidos pelo grupo de Louvain, em particular no esforço em caracterizar os estereótipos pela dupla via da entitatividade e do essencialismo (Yzerbyt, Corneille & Estrada, 2001), embora se diferencie por relativizar o papel da homogeneidade enquanto dimensão essencial da entitatividade e do essencialismo como elemento decisivo na construção das teorias implícitas.
Por outro lado, a definição estabelece uma ruptura com a tradição de circunscrever os estereótipos apenas a um determinado tipo de ente, as categorias sociais. O reconhecimento de que os agregados e os grupos sociais potencialmente podem ser objetos de julgamento estereotipados impõe necessariamente a aceitação de que a estereotipização é uma operação que envolve elementos de natureza cognitiva, mas que também devem ser considerados as relações mútuas entre os diferentes tipos de entes, sejam eles agregados, membros de distintas categorias sociais e os diversos grupos de pressão. Esta relação entre estes dois planos, o pensamento e a ação, não se restringe exclusivamente ao esforço para internalizar as vinculações entre os distintos entes sociais. Um ato como o do oficial sueco relatado por Kropotkin é tão social na sua natureza quanto íntimo no seu desfecho. Ele não apenas ensina o quão cada um cotidianamente enfrenta os desafios da própria consciência, como também demonstra que atos aparentes irracionais podem ser explicados de forma racional desde que sejam consideradas as forças presentes na situação, os hábitos e costumes, bem como as idiossincrasias que cada ser humano carrega na caixa torácica ao longo da existência.